Edição nº 565

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de junho de 2013 a 23 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 565

Nos folguedos, a fé na arte


O primeiro contato de Amilton Damas de Oliveira com a gravura foi em uma oficina cultural oferecida pela prefeitura de Jacareí, interior de São Paulo, em meados dos anos de 1990. Bem antes, ele vivenciou outras experiências: da violência e da religiosidade. Recém-nascido, com três dias de vida, Amilton foi sequestrado por uma mulher que o tirou do colo da mãe. Ela procurou uma vidente, cuja “receita” para ter a criança de volta era que a porta da casa não fosse aberta para ninguém até um determinado horário do dia seguinte. E conta Amilton que assim foi feito. Ele foi resgatado pela polícia.

Se a história parece ficção, ela vem contada em prosa e verso num cordel, feito por um amigo da família, e que acabou estampado em uma das páginas da dissertação de mestrado de Amilton, defendida no programa de Artes Visuais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Não por coincidência, a xilogravura costuma ilustrar os folhetos da literatura de cordel. Não por coincidência, a pesquisa de Amilton é sobre a xilogravura. O cruzamento da fé com a arte integra a sua vida e também permeia o trabalho científico “Festas populares paulistas: impressões xilográficas”.

Arquiteto por formação, Amilton registrou tradições do catolicismo popular nas matrizes da xilogravura. As gravações possibilitaram uma investigação que prioriza o uso das cores e a técnica da matriz perdida, ou seja, na mesma matriz os desenhos são modificados para receber novas camadas de tinta. A gravação vai sendo trabalhada desta maneira. Primeiro nas cores mais claras e, por último, as mais escuras, até o preto. A matriz é “perdida” porque o desenho vai sendo alterado a cada gravação.

A técnica ele aprimorou com o tempo. A primeira gravura feita na oficina cultural foi por linoleogravura, semelhante à “xilo” mas sem produzir texturas ou relevo, ou seja, a impressão a partir de uma matriz uniforme. “Caipira subindo pro céu” já trazia as referências importantes para a história de Amilton. Tratava de gente simples e de sua relação com o divino.

Desde pequeno, o autor frequenta as festas do catolicismo popular. Foi por sete anos tropeiro de uma companhia de reis em sua cidade, acompanhava e ainda hoje está por perto, quando é época de Moçambique, Folia de Reis, Dança São Gonçalo e Cavalhada.



Catolicismo popular

Terça-feira, feriado de Carnaval de 2011. Com tempo fechado, nublado, sigo pela estrada de terra e lama pisoteada por rebanhos de gados. No percurso quase inacessível e inexistente tamanho lamaçal, surge a impressão tensa de que alguma coisa caminha junto no ar. É algo que observa e envolve minha mente, como se estivesse bem próximo, como se essa coisa estivesse a ponto de golpear-me com um só bote. Estradas, caminhos revelados, ir ao encontro de homens e suas histórias e com eles falar sobre a Cavalhada.

O trecho acima, da dissertação de mestrado de Amilton, narra a sua chegada na zona rural de Igaratá (SP), onde vive o chefe da cavalaria do Jogo da Cavalhada, uma das festas do catolicismo popular que ele retrata em xilogravura e que é tradição na cidade. A partir de encontros assim, entre 2008 a 2011, o pesquisador fez várias séries de desenhos que compuseram o processo de criação das gravuras de matrizes perdidas.

Além da Cavalhada e da Folia de Reis, ele retratou o Moçambique de São José dos Campos e o grupo de folguedo Dança de São Gonçalo da cidade de Santa Isabel, próximo a Jacareí. A Dança de São Gonçalo é realizada por violeiros, conhecidos como folgazões, que fazem evoluções em torno de um altar ou oratório. “Nas três primeiras voltas, cantam-se 66 versos, aproximadamente, com duração de uma hora e dez minutos. Na última volta, a de despedida do santo, cantam-se cerca de 126 versos, com a duração de uma hora e quarenta minutos”, descreve o autor.

No Moçambique crianças carregam a bandeira. A apresentação de dança é organizada por três personagens: o mestre, o contramestre e o capitão, que se alternam nas tarefas de dirigir e fiscalizar o conjunto. Também ocorre a coroação do rei e da rainha do Moçambique em ritual de louvação.

Na dissertação, Amilton escreve: “No Moçambique, a bandeira é sagrada ao santo protetor, Santo Benedito, e Nossa Senhora do Rosário tem lugar de destaque. A família Gusmão conta que a tradição vem do Sr. Antonio Gusmão, casado com Maria Helena, com quem teve doze filhos – Antonia, Clementina, Donizete, Isabel, José Aparecido, João, Luiza, Neuza, Norberto, Nelson, Justino, Rosa–, setenta e três netos e trinta e quatro Bisnetos”.


Planejamento

Além da memória e dos desenhos em cadernos, blocos e folhas avulsas, Amilton registrou as imagens em fotografias. Para entalhar as matrizes, ele utilizou uma prancha de madeira da dimensão de uma porta. O processo da matriz perdida é também chamado de subtrativo. “Cada gravação recebe uma cor diferente e volto a entalhar na mesma matriz. Gravo partes que eu quero – ‘estico’ a tinta com rolo de borracha numa chapa, faço a impressão e retiro o papel”.

A pesquisa originou mais de 50 gravuras que têm cores predominantes: o amarelo claro, o vermelho, o verde, o azul e o preto. As cenas mostram violeiros, personagens tocando instrumentos, leilões, bandeiras. Com a técnica da matriz perdida, Amilton precisa fazer um planejamento minucioso de como serão as impressões. “A matriz perdida demanda um planejamento para cada impressão”, observa.

Amilton ressalta que a pesquisa com as cores foi favorecida pelo tamanho das matrizes. “Em tamanho maior a gravura expande as cores. Em tamanho menor normalmente as nuances estagnam”. Este resultado deixou o artista e pesquisador satisfeito. Para ele, as cores levam para a grande gravura as impressões e emoção de quem estava por lá, bem perto da festa.

 

Publicação
Dissertação: “Festas populares paulistas: impressões xilográficas”
Autor: Amilton Damas de Oliveira
Orientadora: Lúcia Eustáchio Fonseca Ribeiro
Unidade: Instituto de Artes (IA)