Edição nº 556

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 08 de abril de 2013 a 14 de abril de 2013 – ANO 2013 – Nº 556

Rastilho de pólvora


O instante da morte de um soldado republicano durante a Guerra Civil Espanhola foi flagrado pelo fotógrafo Robert Capa, em 1936. Não foi apenas a primeira vez que uma guerra recebeu a cobertura de fotógrafos profissionais. A partir desse momento, as imagens testemunhais seriam cada vez mais difundidas, seja pelas facilidades tecnológicas, seja pelo impacto que causam em quem as vê. Muitos anos depois, durante os protestos no Irã em 2009 contra a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, um vídeo sintetiza as duas coisas. As imagens capturadas por um telefone celular mostram os últimos momentos de uma adolescente atingida por um tiro no peito em meio à manifestação. Em rede, o martírio de Neda Soltan comoveu o mundo. A jovem se transforma em símbolo da Revolução Verde e aquelas imagens, amadoras, repercutem nas mídias de todo o mundo.

As dimensões, especialmente políticas, que tais imagens ganham quando compartilhadas na internet, são estudadas na tese de doutorado “Estéticas políticas da tela: ativismo e o uso da imagem em redes de comunicação digital”, de autoria de Tarcisio Torres Silva. Ele dividiu o trabalho em dois momentos de análise: na primeira metade são feitos estudos de cenas da Revolução Verde no Irã (2009) e da Primavera Árabe (2010-2011). Na segunda, o objeto são as ações da ativista egípcia Aliaa Magda Elmahdy e dos grupgrupos feministas Femen (Ucrânia) e Pussy Riot (Rússia).

A pesquisa revelou um paradoxo: se o alcance e efeito das imagens em rede surpreendem, nem sempre os valores ali agregados estão relacionados a questões públicas, mas sim de interesse privado. Tarcisio lança mão de um termo recorrente na obra de Michel Foucault, que “é a biopolítica, ou seja, a política voltada para as questões biológicas que têm permeado discursos do mundo liberal e capitalista”. A biopolítica se traduz, de acordo com o pesquisador, nas ações governamentais e também corporativas que sustentam o sujeito de um ponto de vista biológico. Seria governar a partir de questões vitais, fornecer condições saudáveis de vida. “Eu não poderia fechar minha análise em como as imagens mobilizariam a população do norte da África ou Irã. Não fui até esses locais. Estava mais interessado em como essas causas se transformam em questões globais. E, se a questão é global e não regional, comecei a olhar a política de outra maneira: as grandes forças que atuam no mundo contemporâneo e como se dialoga com os afetos das pessoas”.

O CORPO EM DISCUSSÃO

Tarcisio chegou à conclusão de que essas imagens impactam porque, entre outros fatores, trazem o corpo em evidência. “A questão do corpo, do sofrimento, é recorrente nesses eventos”. Um exemplo é a imagem produzida por um fotógrafo na Praça Tahrir, no Egito, em 2011. Com uma mão, ele segurou a câmera e, com a outra, mostrou para as lentes uma bala disparada pela polícia contra a multidão. “As imagens discutem temas amplos como o papel do Estado, o que é uma ditadura no norte da África, qual a relação disso com outros e Estados que têm interesse naquela área. São questões de macropolítica. Só que, para dialogar com essas questões, acabo vendo elementos privados. O ‘meu corpo’ estaria sendo ameaçado por um Estado que, em vez disso, deveria oferecer todo o suporte para a população”, detalha.

Da mesma forma, o pesquisador chama a atenção para a cena de um vídeo feito também durante os protestos no Egito, que mostra um manifestante se colocando à frente de um canhão d’água. Ele compara a imagem com a histórica fotografia de Jeff Widener do solitário jovem chinês em frente a uma fileira de tanques de guerra em 1989 durante a revolta na Praça da Paz Celestial, em Pequim. “Em função do poder icônico dessas imagens, podemos pressupor sua influência sobre a recepção do novo vídeo”, observa o pesquisador na tese.

Durante a Primavera Árabe, Tarcisio fazia doutorado sanduíche na Inglaterra e acabou ouvindo muitos depoimentos de pessoas que participaram dos movimentos. As falas o ajudaram a construir a percepção do estudo em torno do sentimento dos mais afetados com as manifestações.

Apesar de trazer embutidas as questões privadas, nas imagens da Revolução Verde e da Primavera Árabe, a leitura do autor da tese é otimista. O mecanismo da biopolítica dá enlevo aos temas da macropolítica. Não é a mesma interpretação que ele tem do corpo nas imagens destacadas na segunda etapa do trabalho: as ações da ativista egípcia Aliaa Magda Elmahdy e dos grupos feministas Femen e Pussy Riot.

“O Femen sempre é pauta nas mídias. Por outro lado, quando se politiza o corpo dessa forma, e elas normalmente têm um corpo escultural, são escolhidas, e há um jogo no qual se trabalha com o imaginário da cultura ‘pop’, ficam de lado reflexões mais amplas no sentido da política clássica”, explica Tarcisio.

Uma das ações do Femen foi contra a igreja russa ortodoxa por ocasião da prisão do grupo feminista de punk rock Pussy Riot. Em Kiev, as integrantes serraram uma cruz. “Elas provocam instituições seculares de poder, mas, ao mesmo tempo, trabalham com o sistema da biopolítica e das causas privadas, o que é contraditório”, reafirma.

A blogueira egípcia Aliaa Magda Elmahdy postava suas fotos nua em protesto contra o conservadorismo, o que provocou um grande debate entre fundamentalistas e liberais daquele país. As fotos foram replicadas como ‘memes’ ou mensagens simplificadas e replicadas nas redes sociais “fragmentando cada vez mais o discurso inicialmente proposto pela ativista”, diz o autor. Ele ainda considera o caso interessante porque mostra uma intenção de mudança no Egito, mas ainda dentro dos valores muçulmanos.

“Ao clamarem por uma liberdade de ‘fazer o que se quer com o corpo’, as ativistas procuram derrubar instituições como o patriarcalismo, a polícia, o governo e a Igreja, por entenderem que as mesmas reprimem o corpo feminino. Elas esteticizam os principais elementos da sociedade de controle, convidando-os involuntariamente a participar desse jogo”, traz o texto do pesquisador.

Outra reflexão proposta é que a produção e a recepção das imagens podem ser classificadas como trabalho imaterial. “Esta condição é ruim pela precariedade, instabilidade, mas, por outro lado, é um trabalho que mobiliza o intelecto e a criatividade, tornando os sujeitos mais livres até para reinventar uma forma de vida, e isso é o que move a sociedade contemporânea para um ‘politizado’ mais positivo, utilizando as redes”, ressalta.

 

Publicação
Tese: “Estéticas políticas da tela: ativismo e o uso da imagem em redes de comunicação digital”
Autor: Tarcisio Torres Silva
Orientador: Hermes Renato Hildebrand
Unidade: Instituto de Artes (IA)

Comentários

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PARABÉNS AO PROF. DR. TARCISO!
MUITO INTERESSANTE!
ABRAÇOS

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Muito interessante também a velocidade que a Internet permite que essas discussões baseadas nas imagens aconteçam e repercutam!

Comentário: 

Excelente materia nos leva ao local dos fatos"

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Ótima reportagem e belo trabalho do colega professor Tarcísico.