Untitled Document
PORTAL UNICAMP
4
AGENDA UNICAMP
3
VERSÃO PDF
2
EDIÇÕES ANTERIORES
1
 
Untitled Document
 



A poesia e o 'discurso da crise'

A centralidade do “discurso da crise” na poesia moderna ocupa boa parte dos ensaios do livro Poesia e Crise (Editora da Unicamp), que o poeta, tradutor e professor Marcos Siscar lança no próximo dia 29, a partir das 11 horas, na Livraria do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “As leituras que fiz, ao longo da última década, me permitiram constatar que os poetas, nos seus poemas ou na sua crítica, têm apontado periodicamente a falência ou o desaparecimento do gênero poético, diante da emergência de valores que lhes parece inconciliável com a atitude artística. A palavra ‘crise’ não demorou muito a se impor, graças não apenas a seu uso obsessivo pelo jornalismo, mas também porque é uma palavra de rica tradição sob a pena dos poetas”, revela Siscar. Os textos reunidos na obra abrangem período que vai da segunda metade do século XIX ao final do século XX – dos franceses Baudelaire, Mallarmé e Valéry, entre outros, a poetas brasileiros contemporâneos. Na entrevista que segue, o coordenador do programa de pós-graduação em Teoria e História Literária do IEL fala sobre o livro e analisa o papel e o lugar da crítica, da poesia e do ensino de literatura hoje.

Jornal da Unicamp – O que sr. destacaria no eixo temático de Poesia e Crise? O que o motivou a elegê-lo e em que medida as reflexões contidas na obra podem, em sua opinião, lançar luz sobre os debates acerca da literatura hoje produzida no país?

Marcos Siscar – Já há algum tempo senti a necessidade de organizar um livro de ensaios, a fim de interromper o fluxo de artigos soltos e dar forma às coisas que vinha pensando. A Editora da Unicamp me deu a oportunidade de fazer isso com esse Poesia e Crise. Reuni nele vários ensaios originados em leituras e cursos sobre crítica e poesia brasileira – do concretismo até o presente –, bem como em projetos sobre poesia francesa, em especial [Charles] Baudelaire [1821-1867] e [Stéphane] Mallarmé [1842-1898], duas das referências mais renomadas – e, de certo modo, mais “gastas” – da modernidade em poesia.

A ideia do livro nasceu quando essas duas vertentes do trabalho – a exegese dos primórdios da poesia moderna e a reflexão sobre o estado contemporâneo da poesia, especialmente no Brasil – acabaram convergindo. A meus olhos, passaram a convergir quando percebi que determinadas considerações feitas sobre o presente da poesia, hoje, curiosamente eram as mesmas que encontrava em textos escritos há mais de um século.

A constatação me levou a pensar que estava diante, não apenas de meras coincidências, mas de um traço constitutivo do discurso poético, que reconheço como raiz de uma vertente cultural da poesia, historicamente atenta e crítica.
As leituras que fiz, ao longo da última década, me permitiram constatar que os poetas, nos seus poemas ou na sua crítica, têm apontado periodicamente a falência ou o desaparecimento do gênero poético, diante da emergência de valores inconciliáveis com a atitude artística. A palavra “crise” não demorou muito a se impor, graças não apenas a seu uso obsessivo pelo jornalismo, mas também porque é uma palavra de rica tradição sob a pena dos poetas.

O resultado dessa observação é que, dos pós-românticos aos decadentes, das vanguardas e seus diversos espasmos à discussão contemporânea, cada geração atualiza a seu modo a ideia de que a poesia estivesse acabando ali. Como se cada geração tivesse a necessidade de reconhecer sua própria experiência como experiência de crise – o que também é um modo de apontar um novo começo. Claro, as situações são bem distintas e têm que ser analisadas caso a caso, mas me pareceu que a descrição desse “discurso da crise” poderia ser oportuna para o debate contemporâneo, uma vez que oferece um contraponto a uma discussão às vezes vaga, ou imediatista, ainda que baseada sobre os “fatos” da dita falência, em sérias constatações sociológicas, históricas ou estatísticas do “fim” da poesia – ou da literatura.

Parece que uma espécie de desejo de escrever as novas páginas da história nos leva com certa facilidade a constatar rupturas, crises, movimentos de época cada vez mais rápidos, como se a história estivesse sempre acabando – ou recomeçando. O que me pareceu importante acrescentar é que o debate sobre a literatura, e em especial sobre a poesia, hoje, é herdeiro desses paradigmas. Como não chegamos a reconhecer o que está em jogo na atualização do procedimento, o risco é acabarmos ficando reféns do discurso dos fatos, que aliás varia bastante de conteúdo, dependendo das filiações e dos interesses das fontes.

JU – Na apresentação do livro, o sr. assinala que “o discurso poético é aquele que não apenas sente o impacto dessa crise, não apenas deixa ler em seu corpo as marcas da violência característica da época, mas que, a partir dessas marcas, nomeia a crise – a indica, a dramatiza como sentido do contemporâneo”. Quais são os efeitos mais deletérios dessa mimetização?

Siscar –
Não quero negar que existe uma “crise”, pois é assim que, muitas vezes, os artistas e os observadores do contemporâneo sentem a situação dita “moderna”. Esse sentimento é mesmo, mais do que admissível, crucial para entender o sentido de nossa arte e de nossa literatura. Mas achar que a arte e a literatura são apenas “expressão” desse mal-estar é ignorar fundamentalmente sua própria constituição. Eu chegaria a dizer que a poesia, gênero ao qual me refiro, é uma das grandes responsáveis pela caracterização, pela explicação e pela formalização desse sentimento de crise, que tem versões conhecidas na filosofia, na psicanálise, na economia política. Essa caracterização ocorre não apenas nos poemas, mas nos ensaios, nas correspondências, nas entrevistas, nos artigos, enfim, em todo esse material de pensamento e de criação que faz parte da vida literária, num determinado período.

No caso específico do texto poético, não se trata de ver o poema apenas como vítima passiva ou iludida de uma crise que está “fora” dele, uma crise de ordem histórica e social, como se afirmou com muita frequência, inclusive na crítica literária. Parte da história literária do século XX nos acostumou a enxergar a poesia – e a arte, de modo geral – como sintoma de problemas cujo esclarecimento estaria a cargo de outros saberes sobre o homem. O resultado negativo desse procedimento, sem dúvida coerente com o aparato crítico das ciências humanas, é um certo silenciamento do saber formulado nas obras literárias, que se manifesta pela amputação de partes do corpus poético ou até pela recusa em considerar as convenções internas do gênero, a fim de “enquadrá-lo” em determinadas situações discursivas.

Não nego o interesse e a necessidade dessa leitura a contrapelo, segundo a expressão de um crítico conhecido, mas acho importante lembrar os pontos obscurecidos pelo hábito. Em especial que, além de ser contemporânea da dita crise, a poesia também a nomeia, isto é, também a descreve, e por isso mesmo a constitui: dá corpo, nome e existência a algo desse tipo. O “microscópio” crítico aqui tem que estar ajustado à linguagem do gênero, ou seja, ao modo pelo qual este gera sentido. Noto que o que há de nocivo historicamente no “desajuste” entre os valores humanos e a crescente racionalização da vida, entre o discurso da pluralidade e a força da exclusão, faz aparição na poesia não no modo da “expressão” (como quem recolheria em sua linguagem aquilo que já teve lugar na ordem histórica), tampouco necessariamente como quem o deixa ler sob seus mal disfarçados subterfúgios. Creio que a poesia dispõe-se a chamar a atenção, de modos variados, para as contradições de que participamos, históricas ou afetivas; não só não as evita, como faz dessas contradições um “drama”, agravando na ordem do sensível, do afetivo, aquilo que aparentemente nos rodeia.

JU – As distorções do jornalismo, entre as quais a generalização, as abordagens ligeiras, a queda por números e planilhas e o discurso recorrente sobre o “anacronismo” e a “morte” da poesia – e, em última instância, da literatura – são analisados em parte da sua obra. Em que medida esses componentes afetam a difusão da literatura e alimentam uma percepção equivocada do que é produzido?

Siscar – É importante dizer, de início, que a difusão da literatura sempre dependeu das “mídias”, quaisquer que fossem, desde as mais rudimentares. É uma ilusão típica de décadas passadas (por exemplo, das contestações antissistema da poesia marginal) considerar que se pode romper com os “atravessadores”, se entendermos essa instância de modo amplo como o conjunto dos meios que permitem o contato com a informação e sua difusão. Mas o sentido desses processos tem consequências muito diferentes, de caso a caso, que é preciso analisar. Não retomo a questão, na sua abrangência, mas, como você percebeu, chamo a atenção, no livro, para alguns aspectos que se comunicam com meu interesse principal.

O caso do jornalismo, em específico, é dos mais instigantes, por várias razões. Em primeiro lugar, porque o jornal – impresso ou on-line – continua a ser um elemento importante do nosso “espaço público” – o que atendia por esse nome, ou o que sobrou dele. O jornal continua sendo um espaço onde se constroem e onde se destroem reputações. Mas é relevante, também, porque os jornalistas constituem, hoje, uma das classes profissionais mais envolvidas na produção da literatura, como já foi o caso no passado dos bacharéis ou dos funcionários públicos. Isso apenas reforça a constatação mais geral de que não são apenas testemunhas neutras e desinteressadas da vida literária.

Num dos textos do livro, abordo episódios recentes e mais delicados envolvendo a poesia. Sugiro que o discurso jornalístico tem passado pelo processo de construção de uma autoimagem heroica que, para ganhar legitimidade, precisa de vítimas substitutivas, como a poesia, a serem acusadas de anacronismo. Até que ponto estamos diante de informações e de fatos, quando abrimos ou acessamos um jornal? O próprio uso generalizado e inconsistente de estatísticas para comprovar os abalos da leitura e da literatura, mostra que a questão está longe de ser apenas a da “informação”. Ou seja, há uma questão de “pauta” jornalística que é tão importante quanto os acontecimentos da vida cultural.

Mas, embora eu exprima reservas sobre o modo como os jornais recortam, justificam e opiniam sobre a situação atual da poesia, acho que a discussão sobre literatura não pode prescindir desse espaço e dos desafios que ele coloca. O tratamento da “informação” faz parte da construção do sentido do contemporâneo, inclusive do contemporâneo da poesia. Há, é claro, outras redes de difusão de informações, que estão em plena emergência, hoje, o que pode vir a transformar os dados. Mas elas não mudam essencialmente o que está em jogo.

 

Continua nas páginas 6 e 7

 



 
Untitled Document
 
Untitled Document
Jornal da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas / ASCOM - Assessoria de Comunicação e Imprensa
e-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP