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Campinas, maio de 2001 - ANO XV - N. 162.........
     
   
 

.O circuito da brutalidade

CARLOS LEMES PEREIRA

Falsa virgindade – Para a extensão da crítica ao Poder Judiciário, basta que Ferreira leia um trecho de uma sentença de processo de estupro: “(...) será justo o réu, trabalhador (...), sofrer uma pena enorme [em um caso] de fato sem qualquer conseqüência (sic), oriundo de uma falsa virgem (sic)? (...) Afinal, amorosa com outros rapazes, ela vai continuar a sê-lo (...)”. Eticamente, o médico omite a identidade do juiz e dos demais envolvidos. Mas revela dois pontos estarrecedores. O processo é recente e transcorreu não num tribunal perdido em algum feudo dos bolsões mais atrasados do Brasil: trata-se do Rio de Janeiro, capital. “Para agravar, eu não consigo entender a relevância da hipótese da ‘falsa virgindade’ para um crime de estupro”, indigna-se.

Quando se refere aos serviços públicos de saúde, o ginecologista fala ainda com mais desenvoltura: “Neles, essas mulheres são reduzidas, logo de cara, a ‘nervosas e inflamadas’. Digo isso porque as unidades de emergência vão ministrando imediatamente um calmante e um antiinflamatório. O calmante, eu até entendo, dada a dificuldade, a atonia para qualquer mulher lidar emocionalmente com o trauma recente. Mas o antiinflamatório, estou tentando entender até agora; sem um exame clínico prévio, como podemos saber qual ponto do organismo foi ‘inflamado’ pelo estupro?”

“Em contrapartida, é raro oferecermos emergencialmente a essas vítimas uma prevenção à DST/Aids”, continua. “Precisamos encarar os motivos que nos tolhe a iniciativa de examiná-las de imediato. Mais de um profissional prefere chamar um colega, tentando convencê-lo de que ‘é a sua vez de atender’. Ou, então, diz diretamente à paciente: ‘Não posso pôr a mão na senhora; o IML não permite; posso ser processado’. E outras desculpas esfarrapadas. Tratando-a como ‘a mulher proibida’, o serviço que deveria acolher essa vítima, o faz muito precariamente”.

Cumplicidade familiar – O estudo revela também o quanto é freqüente a omissão e até o comprometimento deliberado de familiares em casos de abusos sexuais. Ferreira cita o depoimento da mãe de uma adolescente estuprada pelo avô materno, no qual o ato é justificado pelo entendimento de que, “tendo o velho trabalhado a vida inteira para sustentar a família e, por isso, exaurido suas forças, seria justo que buscasse satisfação sexual dentro dessa própria família”.

Por fim, ele lamenta ter detectado esse tipo de proteção tácita ao agressor até nas instituições religiosas: “A própria Igreja Católica, que tem uma posição de repúdio a essa violência – e não poderia mesmo ter outra – já produziu publicamente pareceres tais como ‘o crime sexual geralmente é compartilhado’. Afinal, várias mulheres mantêm a altura das saias acima daquela que a Igreja admite, para que elas não sejam ‘provocadoras’ do estupro”.

O autor da pesquisa tem o cuidado de ressalvar: “Não estou afirmando que todos os juízes, policiais ou médicos agem assim”. Mas bate firme: “Talvez, só quando conseguirmos superar esses anacronismos, pautados sobretudo nas questões de gênero, teremos os direitos das mulheres realmente como universais e indivisíveis”. Esperança que ele expressa já nas primeiras páginas da tese, recorrendo a Albert Einstein para epigrafá-la: “O mundo é perigoso não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa daqueles que vêem e deixam o mal ser feito.”

 

 

Estupro lidera o ranking da barbárie

O estudo mostra que o tipo de crime sexual predominante é o estupro. Isoladamente ou associado a outras formas de atentado violento ao pudor, vitimou 59,2% das adolescentes e 62,1% das mulheres adultas pesquisadas.

A incidência em crianças também é alta (16,9%). Só que, aí, é sobrepujado pelo atentado violento ao pudor com coito anal (18,3%). Um resultado, porém, que deve ser relativizado, por causa das limitações legais, resultantes de um código penal defasado em mais de 60 anos.

“A legislação brasileira só considera estupro a penetração, mediante uso de força física ou grave ameaça, do pênis do agressor na vagina da vítima”, observa Drezett Ferreira. “O que está longe de significar que a violação anal seja menos grave. Mas, infelizmente, temos que respeitar tais conceitos, na interface que fazemos com a Justiça” (veja nos gráficos os principais dados estatísticos da tese)

 

 

‘O tempo não importa, parece que foi ontem’

 

A empregada doméstica I.R.C., 23 anos, moradora em Campinas, foi estuprada há um ano e três meses. “Pouco importa o tempo; pra mim, parece que foi ontem”, conta. “Apesar do meu marido ter sido dos mais compreensivos, eu ainda não consigo transar direito com ele. Cada vez que a gente tenta, dói muito. Acho que nunca mais vou experimentar um orgasmo de novo”.

Pelos estudos de Drezett Ferreira, a vítima estaria atravessando a fase crônica da chamada Síndrome da Desordem Pós-Traumática. “Atualmente, de acordo com a American Psychiatric Association Committee on Nomenclature and Statistics (1994), a violência sexual associa-se com a SDPT, entidade nosológica desenvolvida após qualquer evento traumático ou extraordinário, dentro da experiência humana (...)”, ressalta a tese.

Segundo ele, nesta fase, que pode durar de meses a anos, “desenvolve-se um processo de reorganização psíquica (...). A vítima passa a rememorar intensamente a violência, construindo pensamentos estupro-relacionados (...). Podem se estabelecer diversos transtornos da sexualidade, incluindo o vaginismo, dispareunia [cópula dolorosa para a mulher], diminuição da lubrificação vaginal e perda da capacidade orgásmica”. Também é provado que a prevalência de idéias suicidas persistentes e de tentativas de suicídio é elevada nos casos de SDPT.

 


 
 
 

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