| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 346 - 4 a 10 de dezembro de 2006
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6-7

Unidade de ensino idealizada pelo crítico celebra
os 30 anos de sua certidão de nascimento

Candido reencontra o
instituto que criou na Unicamp

Antonio Candido fala durante a cerimônia no auditório do IEL: “Quem vê o começo e vê hoje essa floração extraordinária da Unicamp, só pode ficar orgulhoso”A carta já tem importância histórica por fundar as bases inovadoras do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Sua dimensão torna-se ainda maior quando se sabe que foi redigida e subscrita pelo professor, ensaísta e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza.

No documento, datado de 30 de novembro de 1976 e hoje uma preciosidade do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” (Cedae/IEL), Antonio Candido sugere ao então reitor e fundador da Universidade, Zeferino Vaz, a criação de um instituto que se diferençasse das demais faculdades de letras do país. O autor e sua obra, no sentido mais amplo, reencontraram-se, exatos 30 anos depois, na última quinta-feira, no auditório do mesmo IEL do qual Candido foi fundador, primeiro diretor e professor durante dois anos e meio.

“A presença de Antonio Candido no IEL foi fruto de uma conjunção muito interessante”, afirmou a professora e lingüista Charlotte Galves. A docente, que deixa a direção do instituto em janeiro próximo, foi mais longe ao abrir a sessão solene da última reunião da Congregação de sua gestão: disse que estar ali, ao lado do decano do IEL, era “uma imensa honra e uma grande sorte”. Diz o célebre poema de Mallarmé que “um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Quis o destino que o calendário jogasse a favor da história neste 30 de novembro. A sorte mencionada pela diretora do IEL foi lançada com estilo. Alunos, funcionários, docentes e testemunhas do nascimento do Instituto lotaram o auditório para receber o mestre e decano da unidade.

Autografando a agenda do IEL: ovacionado ao finalizar o discurso em que explicou a carta a Zeferino Vaz (à direita) Candido assumiu a palavra com sua modéstia habitual. Tratou logo de deixar a platéia à vontade ao mencionar, em tom de blague, o romance “Vinte anos depois”, de Alexandre Dumas, trocando o “vinte” pelo “trinta”. A partir daí, deu início, didaticamente, à “tradução” do conteúdo do documento enviado a Zeferino. Despretensiosamente, e sempre fazendo questão de ressaltar o caráter coletivo da proposta de criação do instituto, Candido contou a história dos primórdios da unidade, ressaltando que “quem vê o começo e vê hoje essa floração extraordinária da Unicamp, só pode ficar orgulhoso de ter dado alguma contribuição, por menor que seja”.

O ensaísta revelou que, apesar das investidas de Zeferino, negou-se sistematicamente a assumir a direção do instituto. Foi demovido da idéia quando soube, por intermédio de Carlos Vogt, então chefe do Departamento de Lingüística do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que o fundador da Unicamp, “perdendo a paciência”, criara uma faculdade de letras nos moldes tradicionais.

“O Vogt me disse: ‘olha, aquilo que o senhor acha que está errado, está sendo feito em Campinas. De modo que, se o senhor topar, talvez a gente consiga desfazer’. Eu topei e o Zeferino, com sua extraordinária capacidade de decisão, em 15 dias dispensou o diretor e conseguiu que o governador anulasse o decreto e fizesse outro”, afirmou Candido, relembrando que em seguida foi nomeado presidente da comissão formada para implantar o IEL.

O primeiro ponto básico da concepção que norteou a criação do instituto, revelou Candido, foi o de trabalhar para a construção de um modelo que privilegiasse o crescimento de dentro para fora. O primeiro diretor do IEL lembrou que, à época, o modelo predominante era o da faculdade de filosofia, ciências e letras, “que começava em matemática e acabava em letras”. Na opinião de Candido, essa estrutura mimetizava o que ele chamou de “mania de organograma, que é criado para depois ser preenchido”.

Candido cumprimenta a diretora Charlotte Galves ao chegar no IEL“Nosso ponto de vista foi o contrário. Utilizamos os elementos disponíveis para fazer um núcleo mínimo, que pudesse crescer de acordo com a sua própria iniciativa. Foi proposta então a criação de um instituto que tivesse os estudos gerais”, revelou Candido, lembrando que, além de o Departamento de Lingüística já estar funcionando junto ao IFCH, havia o grupo de letras, “que se reduziu ao que há de mais geral no estudo das letras, que é a teoria da literatura”. A partir daí, afirmou o ensaísta, criou-se um núcleo de teoria da literatura, ao lado de um núcleo já existente de lingüística. “Esta seria a semente do IEL”.

A idéia, prosseguiu Candido, era que, a partir dessa semente, o instituto evoluísse. Paralelo ao crescimento, procurou-se privilegiar uma concepção democrática da universidade. “Em vez de impormos um modelo, nós reunimos um grupo. A proposta era que esse grupo evoluísse para, depois, ampliar-se o instituto. Foi o que aconteceu. Um grupo inicial, uma vez formado, desenvolveu os prolongamentos que achou necessário”. Para mostrar o quanto era democrático esse ambiente, Candido lembrou que, antes de deixar a direção, sugeriu “um certo prolongamento”, mas não foi atendido, sendo derrotado em sua proposta. “O grupo fez o que quis, e essa era a nossa intenção”.

Eleição — “O instituto cresceu a partir de um grupo geral, para depois criar as particularidades que lhe pareceram oportunas, por meio de um amadurecimento interno que assegurasse a concepção mais democrática possível da gestão desse núcleo”, afirmou o primeiro diretor do IEL. Candido lembrou que essa opção pela livre escolha prevaleceu na sua sucessão. Pouco antes de deixar o cargo, o professor pediu que Zeferino promovesse uma eleição para a escolha do seu substituto, em vez de indicá-lo, como era comum naqueles tempos. “O professor Zeferino Vaz atendeu e foi eleito o professor Carlos Franchi”.

Antonio Candido conversa com o Paulo Franchetti: auditório lotadoCandido lembrou ainda que o próprio nome do IEL foi muito debatido. A professora Vera Chalmers, por exemplo, lutou para que a unidade não fosse batizada de Instituto de Ciências da Linguagem. “Instituto de Estudos da Linguagem dava um toque humanístico, mais flexível, e permitia afastar as concepções eventualmente um pouco pedantes do estudo das humanidades”, afirmou o crítico, famoso por sua aversão às fórmulas rebuscadas.

Antonio Candido observou que foi um “prazer extraordinário” desempenhar suas tarefas no período em que ficou à frente do Instituto. “Costumo dizer que a estadia de dois anos e meio na Unicamp foi um momento de grande felicidade na minha vida, mesmo porque eu saí num momento em que ainda reinava a paz. Eu estava acostumado a viver, na minha universidade, em estado permanente de guerra e, aqui, nesses dois anos e meio, houve grande cooperação e grande entendimento”.

Para finalizar, Antonio Candido ressaltou o papel de Zeferino Vaz e a rapidez com que ele assimilava idéias que não eram de seu campo de conhecimento, lembrando que o criador da Unicamp sabia exatamente o momento e como tomar a decisão adequada. “Contamos com esse apoio do professor Zeferino Vaz, que compreendeu imediatamente o nosso propósito. Aí eu fecho voltando ao começo: ele destituiu o diretor e dissolveu o instituto para adotar uma fórmula que lhe pareceu a melhor”. Candido foi ovacionado ao finalizar seu discurso.

Ao assumir o microfone, o professor Carlos Vogt – ex-reitor da Unicamp, ex-diretor do IEL e um dos responsáveis pela vinda de Candido para a Universidade – afirmou que o encontro servia para que a memória fosse preenchendo os detalhes dos acontecimentos, lembrando que as relações do professor com IEL remontavam à própria criação do Departamento de Lingüística do IFCH. “Não é por acaso que essa relação estabelecida pelo professor Antonio Candido e o professor Zeferino foi fundamental para que essas medidas ousadas tivessem as conseqüências que tiveram para a criação do Instituto, num momento em que o Plano Diretor preconizava a criação deu uma faculdade de letras tradicional”.

O atual presidente da Fapesp lembrou que, à época da implantação do instituto, seu objetivo e de outros colegas era o de tentar atrair o professor Antonio Candido para uma coisa que “ele não tinha feito, não queria fazer e dificilmente teria feito não fossem as circunstâncias que ele encontrou, que era assumir um cargo administrativo tal como ele assumiu. Penso que a singularidade da passagem do professor Antonio Candido pela direção do IEL, desde sua criação e durante os dois anos e meio de sua gestão, está ligada ao fato de talvez esta ter sido sua única atividade em cargo diretivo”.

Vogt lembrou ainda que todos os docentes que formaram o Departamento de Lingüística, o IEL e o Departamento de Teoria Literária foram alunos de Candido. “Nossa relação não é apenas de encontro fortuito pelos cruzamentos da vida institucional e administrativa. Eu e muitos colegas que aqui estão hoje discutimos a vinda do professor Antonio Candido para Campinas”.
“Faço essa digressão um pouco na inscrição da viagem sentimental para dizer que este é um momento auspicioso porque o IEL tem essa história singular e um universo de referências intelectuais e afetivas que são muito importantes. Com essa cerimônia, estamos refazendo o ritual de fundação do IEL. A vinda do professor Candido nos dá esse momento em que nós nos encontramos afetiva, intelectual e existencialmente”, finalizou Vogt.

 

‘Foi uma experiência única’

“O Brasil sempre foi um país de excelente crítica literária”Encerrada a cerimônia, Antonio Candido dirigiu-se à sala onde, durante dois anos e meio, deu as coordenadas do então recém-implantado Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, para conceder a entrevista que segue. Em menos de 10 minutos de conversa, com a objetividade e a lucidez costumeiras, Antonio Candido falou dos primórdios do IEL, de sua relação com Zeferino Vaz e deu sua opinião sobre os rumos da crítica literária.

Jornal da Unicamp – O senhor está na origem do IEL ao estruturar as suas bases. Como o senhor recorda o início dessa história?
Antonio Candido –
O início foi muito bom. Um grupo de lingüística já havia sido formado pelo professor Fausto Castilho. Formei o grupo de teoria literária com especialistas que já haviam sido meus alunos. Eu quis apenas mestres e doutores que fossem especializados em teoria literária, de maneira que eu estava trabalhando em casa. É uma coisa rara a gente poder trabalhar com uma equipe que, de uma certa maneira, é a sua equipe. Isso, para mim, foi uma experiência única.

JU – Em sua opinião, há algo que diferencie o IEL da Unicamp das demais escolas de letras e linguagem do país?
Antonio Candido –
Eu acho que há muita diferença. O IEL foi concebido de uma maneira nova. As antigas faculdades e institutos de letras pressupunham uma justaposição linear de línguas e literaturas variadas, enquanto que o IEL foi concebido de uma maneira completamente diferente, começando apenas com disciplinas gerais, não específicas. A partir daí, o grupo formado foi criando as diferentes particularidades, de acordo com seu estudo da situação e a sua concepção das possibilidades.

JU – Como o senhor avalia sua experiência acadêmica na Unicamp? Que importância teve para o senhor?
Antonio Candido –
Teve uma importância extraordinária. Pude trabalhar com um reitor absolutamente excepcional, que foi o professor Zeferino Vaz. Ele era um homem dotado de uma percepção e de uma capacidade de decisão que, acopladas, produziam algo de muito raro no Brasil. Não é à toa que ele organizou a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto [USP] e a Unicamp. Eu, pessoalmente, pude aplicar idéias que eu tinha e que eram partilhadas por companheiros que estavam comigo. Isso nos deu uma grande alegria porque nós sentíamos que estávamos fazendo uma inovação.

JU – A Unicamp completa 40 anos em 2006 a partir do lançamento de sua pedra fundamental. Como o senhor vê hoje a figura do fundador Zeferino Vaz? Como eram suas relações com ele?
Antonio Candido –
As relações com o professor Zeferino Vaz eram ótimas. Eu tinha despacho com ele uma vez por semana. Eu ia sempre com o professor Carlos Franchi, que era vice-diretor do IEL. Nós ambos ficávamos impressionados com a facilidade com que ele assimilava idéias e noções de disciplinas completamente diferentes da dele – ele era especialista em parasitologia; nós, professores de literatura. Quando nós apresentávamos as nossas idéias e problemas, ele entendia como se fosse um especialista. Ele sabia sempre optar pela melhor solução. De modo que o convívio com o professor Zeferino sempre foi para mim uma grande aprendizagem e um grande prazer.

JU – Ele entendia de literatura?
Antonio Candido –
Não sei se ele entendia. O fato é que ele agia como se entendesse.

JU – Como o senhor avalia a Unicamp hoje?
Antonio Candido –
A Unicamp, 40 anos depois, é uma das três ou quatro universidades que realmente são do mais alto nível no Brasil. De certa maneira ela é filha da USP e de outras universidades de fora de São Paulo, representando, vamos dizer assim, o coroamento de algumas gerações de esforço universitário feito no Brasil. E, como coroamento, a Unicamp honra o seu destino.

O professor Fernando Costa, coordenador geral da Universidade, fala durante a cerimônia: mesa reuniu ex-colegas, discípulos e docentes do IEL

JU – Para concluir, uma pergunta mais voltada para a literatura. A crítica literária está em crise no Brasil?
Antonio Candido –
Eu creio que não. O Brasil sempre foi um país de excelente crítica literária, desde o tempo da Independência. O Brasil sempre teve e continua tendo bons críticos literários. Eu diria que pode ser até que a literatura criativa esteja em crise no Brasil, mas não a crítica. Ela está florescendo e produzindo cada vez mais, sobretudo em nível universitário, com muito bom resultado.

JU – O senhor não acha que ela se distanciou do público?
Antonio Candido –
A crítica literária não foi feita propriamente para o público. Ela foi feita para auxiliar os interessados em literatura. Talvez ela tenha se afastado um pouco do público ledor de jornal, mas ela não se afastou do público estudioso.

JU – Ela está confinada à academia?
Antonio Candido –
Eu não gosto dessa expressão. Se a pessoa não se confina, ela não produz. É como os frades no convento. O importante é que os produtos do seu confinamento possam ser transformados em bem coletivo. E isso a crítica universitária está conseguindo através dos milhares de professores de literatura e de língua que ela forma.

(*) Colaborou Álvaro Kassab

 

Campinas, 30 de novembro de 1976.
Of. IFCH/DL 70/70

Magnífico Reitor:
Tenho a honra de passar às suas mãos a proposta de um Instituto de Estudos da Linguagem, nome que nos pareceu mais adequado a uma concepção renovadora que o de Instituto de Letras, anteriormente previsto, por motivos que Vossa Magnificência verá expostos no documento anexo.

Este provém das atividades da comissão eleita pelos docentes de Lingüística e de Teoria Literária a fim de elaborá-lo. Como convidado por Vossa Magnificência para coordenar oportunamente a implementação do novo Instituto, atendi ao chamado dos colegas para presidir os trabalhos e, a partir da primeira quinzena de outubro, tivemos reuniões semanais, de que resultaram alguns documentos e notas preparatórias, bem como extensa troca de idéias. A seguir, o texto foi apresentado, para apreciação e comentário, a uma assembléia de docentes daquelas disciplinas, que o discutiram amplamente e propuseram modificações. A redação final, encaminhada agora à alta consideração de Vossa Magnificência e dos órgãos competentes, representa, assim, o resultado de um processo que lhe assegurou elevado teor consensual.

Neste ensejo, apraz-me ressaltar a dedicação dos membros da comissão, a cuja lucidez e espírito universitário se deve o presente documento, e que são os seguintes colegas: Aryon Dall’Igna Rodrigues, Ataliba Teixeira de Castilho, Carlos Alberto Vogt, Haquira Osakabe, Maria Lucia Dal Farra, Vera Maria Chalmers, Yara Frateschi Vieira.
Queira Vossa Magnificência aceitar a expressão dos meus sentimentos de perfeita estima e real consideração.

Antonio Candido de Mello e Souza
Ao Magnífico Reitor
Prof. Dr. Zeferino Vaz
Universidade Estadual de Campinas
ACMS/ gsf

*Ofício de Antonio Candido de Mello e Souza a Zeferino Vaz encaminhando
projeto de estruturação do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL.

 



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