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A cena política vista por
Fábio Wanderley Reis




ÁLVARO KASSAB


O professor e cientista político Fábio Wanderley Reis: "Uma concepção minimalista da democracia é inconsistente, não se sustenta"A polarização PSDB-PT, delineada nas últimas eleições municipais, será saudável para o fortalecimento da democracia brasileira na medida em que a cena política terá como protagonistas representantes de dois partidos cujas trajetórias estão fundadas em bases progressistas. A avaliação é do cientista político mineiro Fábio Wanderley Reis, que esteve no último dia 2 na Unicamp, onde proferiu palestra a convite do Instituto de Economia.

Professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard e autor, entre outros livros, de Tempo Presente: do MDB a FHC (Editora UFMG, 2002), Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira (Edusp, 2000) e Política e Racionalidade (Editora UFMG, 2000), Fábio Wanderley Reis analisa a conjuntura política na entrevista que segue.

JU - Suas análises fogem do figurino convencional ao trazer à luz elementos indispensáveis à compreensão da práxis política, entre os quais o diálogo permanente com o rigor. Como é este exercício num mundo volátil como a cena política, em especial a brasileira?

Fábio Wanderley Reis – Isso é parte, me parece, de uma maneira de entender o que seria o trabalho de uma disciplina como a ciência política, em contraste como a atividade jornalística ou eventualmente historiográfica. O empenho é o de estruturar os eventos da conjuntura analiticamente e eventualmente com respaldo empírico adequado. Eu não acredito em “análise de conjuntura” como um tipo especial de trabalho, também a análise de conjuntura tem de estar enquadrada teoricamente, esta é a única maneira de você estruturar analiticamente aquilo que se passa no dia-a-dia. Do contrário, você está exposto a ficar permanentemente à deriva, a ficar correndo atrás dos eventos. Acho inclusive que muito do que se faz na ciência política como disciplina acadêmica, que supostamente deveria ter essa preocupação estruturante, analítica e teórica, acaba sendo essa perseguição meio resfolegante aos eventos.

JU – Que tipo de evento?

Fábio Wanderley Reis – Um exemplo muito claro é a literatura sobre as transições, sobretudo aquelas relacionadas às turbulências vividas recentemente por países latino-americanos. Primeiro, uma certa experiência democrática; na seqüência vêm a ruptura que redundou no autoritarismo, os processos de abertura, a suposta transição para a democracia e, por fim, a suposta consolidação da democracia. Enfim, a cada dia os autores estão tratando de um tema do momento sem se dar conta de que, para apreender o que está ocorrendo em cada momento, não é possível abrir mão do esforço de apreender a lógica do processo. E é principalmente disso que, com freqüência, se abdica. Faço um esforço de rigor nesse sentido. Não abro mão de uma reflexão mais ambiciosa, que tem essa preocupação de situar os eventos numa perspectiva mais ampla.

JU – Nesse contexto, o senhor escreveu recentemente que a ciência política brasileira não raro é “mera ‘consumidora’ da reflexão teórica de americanos e europeus”, além de “mal-equipada e desatenta quanto ao rigor”. Em que medida esse anacronismo impede uma leitura mais acurada daquilo que o senhor chama de “base factual”?

Fábio Wanderley Reis – Essa feição um tanto jornalística e historiográfica, mencionada na primeira resposta, sem demérito aos jornalistas e aos historiadores, envolve essa abdicação teórica. Um aspecto que está diretamente relacionado com essa abdicação é a negligência com a fundamentação empírica e o adequado equipamento metodológico para lidar de forma rigorosa com dados. Vivemos uma tensão que está longe de se resolver – por um lado, um empenho na busca do rigor; por outro, uma certa postura mais frouxa, mais próxima de uma tradição ensaística, humanista e até beletrista em alguma medida. Isso pode produzir coisas interessantes, válidas, mas que são diferentes daquilo que, me parece, deveria corresponder ao compromisso da disciplina ou em geral do esforço que se faz na área das ciências sociais. Para quê ter algo que se pretende ciência social, se o que essa ciência social vier a fazer não for mais do que aquilo que faz o pessoal que está na área de letras ou jornalismo? Tenho uma experiência que ilustra isso de maneira dramática. Há alguns anos, ao examinar um programa de pós-graduação em ciência política de uma de nossas grandes universidades, constatei que os alunos de doutorado não sabiam reagir de maneira minimamente inteligente diante da pergunta sobre como é que os trabalhos que estavam fazendo se diferenciava do trabalho que algum jornalista pudesse fazer sobre o mesmo tema. Eles ficaram perplexos. Isso é clara indicação de que há alguma coisa errada.

JU – Essa falta de densidade pode ser nociva?

Fábio Wanderley Reis – Acho que sim. Com muita freqüência, os especialistas acabam não fazendo mais do que vocalizar as preocupações do leigo, do cidadão.

JU – O que ocorre também no caso da mídia.

Fábio Wanderley Reis – Sim, mas no caso dos jornais, em alguma medida, isso é justificável. O jornal pretende ser o veículo, entre outras coisas, que canaliza as preocupações do cidadão. Do cientista social, porém, se espera algo mais do que a denúncia da fome dos famintos... É preciso que haja uma contribuição específica na condição de analista. Quando vejo um trabalho de um instituto acadêmico relacionado com o tema da violência, o que quero, antes de mais nada, é análise. É a informação factual envolta na análise adequada, que enriqueça a compreensão do fenômeno, e não, por exemplo, a mera manifestação de indignação. Na faixa da política, evidentemente, estamos muito mais expostos a problemas desse tipo.

JU – Qual a razão dessa vulnerabilidade?

Fábio Wanderley Reis – Você tem toda a mídia repercutindo os problemas importantes da sociedade. Com freqüência, isso acaba produzindo a tendência a que o suposto analista diga aquilo que se espera dele. Ele acaba expressando um pouco o senso comum que se difunde com a veiculação das preocupações do cidadão e dos conflitos de interesses.

JU – Em que medida a avaliação fica comprometida?

Fábio Wanderley Reis – Evidentemente ela se torna precária, pobre, acaba se colocando a reboque da imprensa. Isso é muito claro. Inclusive temos um certo desvirtuamento no próprio âmbito da universidade, já que muitas vezes os critérios até de êxito acadêmico acabam sendo extra-acadêmicos. Você passa a ter reconhecimento depois que publica num grande jornal... Mesmo algumas publicações propriamente acadêmicas costumam ser guiadas tortamente por esse tipo de critério.

JU – Um de nossos problemas crônicos, a desigualdade social é recorrentemente usada para fundamentar teses à esquerda e à direita do espectro político. Até que ponto essa visão maniqueísta não contamina as análises?

Fábio Wanderley Reis – Estamos vivendo isso claramente. O governo Lula é denunciado pela esquerda, o que culminou recentemente no afastamento de diversas figuras que são tomadas como emblemáticas no que diz respeito ao compromisso social do PT. E há, por parte do establishment, uma visão que ressalta a correção das políticas econômicas adotadas pelo governo. Eu diria que, numa perspectiva ambiciosa em relação à problemática política em geral (o diagnóstico das perspectivas da democracia brasileira, da estabilidade e de construção institucional sólida), o tema da desigualdade social é crucial. Certamente, apesar da pretensão de alguns analistas, não faz sentido sustentar uma concepção minimalista e reducionista de democracia em que ela é reduzida à observância de certos procedimentos formais, entre os quais o fato de termos eleições regulares. É claro que uma concepção adequada de democracia vai envolver a exigência de que se tenha não só direitos civis preservados, mas também direitos sociais que assegurem ao cidadão os recursos materiais e intelectuais que lhe permitam situar-se adequadamente diante das informações sobre aquilo que se acha em jogo na arena política.

JU – De compreender o que está em jogo.

Fábio Wanderley Reis – Exatamente. São os interesses de categorias de atores sociais diversos. E é claro que aqueles interesses que podem ser ligados ao tema da desigualdade – a pobreza ou mesmo a indigência de grande parte da população brasileira – são cruciais do ponto de vista dos ingredientes do jogo político. Como disse, uma concepção minimalista da democracia é inconsistente, não se sustenta. É preciso reconhecer a importância de se afirmar uma concepção mais ambiciosa. Agora, o problema está em como você tem condições de operar com eficácia para obter os objetivos envolvidos numa concepção ambiciosa de democracia. Num caso como o do Brasil, você tem como ponto de partida, para esse esforço, condições que são extremamente adversas, com o enorme legado da escravidão, que a gente tende a esquecer. Os problemas que resultam disso do ponto de vista político-eleitoral não são poucos: exclusão política de ampla parcela da população, o desinteresse ou a desatenção política de grande parte do eleitorado popular, a falta de apreensão da relevância que, digamos, o que se decide em Brasília pode ter para a sua vida cotidiana, para a sua possibilidade de botar feijão na mesa...

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