Do racionalismo escolástico à loucura persecutória no século XV

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O diabo sempre foi um traço essencial na história do Cristianismo? Essa é uma das questões que Alain Boureau responde em seu livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa Medieval (1280-1330) lançado pela Editora da Unicamp com o apoio do Laboratório de Estudos Medievais (LEME), em 2016. Embora seja um autor muito prolífico, trata-se de sua primeira obra publicada no Brasil, traduzida pelo professor Igor Salomão Teixeira, da UFRGS.

O livro começa demolindo a imagem popular de uma Idade Média aterrorizada pelas forças demoníacas. O ponto de partida é a convocação, de 1320, feita pelo papa João XXII a dez teólogos para que se pronunciassem sobre a possibilidade de práticas mágicas e invocação demoníaca serem entendidas como heresia. Iniciou-se, assim, uma revolução doutrinal que consistiu em tratar atos ou fatos como heréticos, rompendo com uma velha tradição (de treze séculos!) que concebia a heresia como opinião.

Entre 1280 e 1330, momento de viva tensão entre os poderes espiritual e secular, teria ocorrido, segundo Boureau, uma “virada demonológica”, a partir da qual a preocupação com as forças demoníacas ganharam destaque na sociedade. A identificação da presença de Satã ao lado ora do papado, ora dos monarcas em conflito com ele deu lugar a procedimentos jurídicos especializados e a grandes debates. A partir de então, ganhou força a ideia de que as empreitadas heréticas ocorriam em segredo. Se antes era preciso esperar a expressão aberta da heresia para identificá-la, agora essa ideia parecia perigosa. A classificação de heresia como ato abriu via aos procedimentos excepcionais de inquérito e repressão dos tribunais inquisitoriais. Estariam postas, aí, as origens da loucura persecutória da Igreja em relação às bruxas no século XV ao XVII.

Grande especialista da história escolástica, o medievalista francês não se contentou em atribuir a “virada demonológica” apenas à sua coincidência com os diversos conflitos políticos do período. Para ele, esse fenômeno deve ser estudado como um problema da história intelectual. Desse modo, a condenação, feita pelo bispo de Paris, Hugo Tempier, de 219 proposições ensinadas na universidade da cidade ganha grande destaque em sua narrativa. Um golpe decisivo que derrubou o racionalismo aristotélico, preocupado em compreender as causas dos fenômenos, para dar lugar ao neoagostinianismo, de matiz franciscana, que privilegiava a vontade sobre a razão e libertava Deus dos limites das leis naturais, tão caros ao pensamento aristotélico.  Foi na oposição entre essas duas antropologias que Satã se fez presente nas ideias e nas doutrinas.

Boureau discute como a comissão composta pelo papa deu um novo, e forte, sentido ao rito satânico, que passou a ser visto como análogo ao sacramento divino, instituição central da religião cristã. Henrique de Carreto, um dos dez teólogos convocados, defendeu a possibilidade de um sacramento diabólico, através de um pacto acordado entre o herege e o diabo. A heresia, portanto, não tinha necessidade de se valer da adoração explícita, ela consistia no ato propriamente dito de estabelecer um contrato ou um pacto, a capacidade de engendrar associações e complôs.

Os pactos não eram tudo. Os demônios foram arrancados de sua morna atemporalidade e se tornaram ativos participantes da história da salvação. Um poderoso exemplo disso, brilhantemente explorado por Boureau, foi o surgimento de reflexões sobre a possessão demoníaca. A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, descreveu as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana, espaços em que as forças malignas poderiam atuar. Esse tipo de debate especializado foi um dos traços marcantes de uma nova disciplina, a demonologia, surgida nas últimas décadas do século XIII e que buscava compreender a ação demoníaca no plano terreno.

Boureau rejeita duas atitudes historiográficas opostas: a de lançar a caça às bruxas para fora da Idade Média e a tese de que esse fenômeno foi a expressão direta de uma tendência opressora das Igrejas e dos governos monárquicos. Ao fazer isso, defende que a racionalidade escolástica não constituiu nem o princípio de uma resistência ao delírio, nem a causa de um desvio. O que se poderia dizer, nesse sentido, é que a valorização do inquérito, o cuidado contínuo de rever as categorias tradicionais e a individualização crescente da busca da verdade, características fundantes do método escolástico, abriram perigosos campos de reflexão e acordaram antigos demônios.

O infeliz epílogo do racionalismo escolástico foi a ensandecida caça às bruxas. Ao se aprofundar nessa transição, Boureau, realizou, por meio de um corpus documental pouco conhecido, uma reflexão densa, erudita, e, acima de tudo, acessível a qualquer leitor.

Rafael Bosch é formado em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e, atualmente, faz doutorado em História Medieval na Unicamp.

Foto: ReproduçãoSERVIÇO

Título: Satã Herético – O nascimento da demonologia na Europa Medieval (1280-1330)

Autor: Alain Boureau

Tradução: Igor Salomão Teixeira

Editora da Unicamp

Páginas: 256

Área de interesse: História medieval

Preço: R$ 50,00

www.editoraunicamp.com.br

 

Imagem de capa JU-online
Recorte da ilustração da capa do livro O ‘Satã Herético’  de Alain Boureau

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