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A infância na obra de Clarice Lispector

Pesquisa analisa quatro contos voltados para o público adulto e cinco narrativas infantis da autora de A hora da estrela

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A abordagem da infância na obra de Clarice Lispector é o tema do livro As crianças de Clarice, de Mell Brites, lançado neste ano pela Editora da Unicamp. Resultado de pesquisa de mestrado em literatura brasileira desenvolvida na Universidade de São Paulo (USP), a obra analisa quatro contos voltados para o público adulto e cinco narrativas infantis da autora de A hora da estrela.

Em sua leitura dos contos, Brites avalia que a experiência da própria Clarice exerce grande influência na produção ficcional dessas histórias, todas narradas em primeira pessoa. Aqui, contudo, a infância encontra-se limitada, uma vez que o isolamento inerente às personagens cria cenários dos quais as únicas saídas parecem ser o despertar da fantasia e da sexualidade. Já nos livros infantis, as narradoras – mulheres adultas, mães e até escritoras – estabelecem um diálogo com o leitor e criam cenários mais acolhedores, de forma que há uma reação protetora e consciente em relação às dificuldades da vida.

Editora com experiência de mais de uma década de atuação em selos infantojuvenis, Mell Brites conversou com o Jornal da Unicamp sobre a sua pesquisa, a reverberação da infância na vida adulta e, em especial, nas obras literárias. “Em Clarice, essa busca pela infância, como o próprio Benjamin Moser mostra na sua biografia, de alguma forma era uma tentativa de aproximação desse lugar mais selvagem, desprovido das amarras da razão”, explica a pesquisadora, atualmente doutoranda em Letras na Universidade Estadual Julio Mesquita Filho (Unesp).

Foto de uma mulher que aparece do pescoço para cima. Ela é branca, tem o cabelo curto e ondulado e usa camisa branca e preta.
Para Mell Brites, a experiência de infância de Clarice exerce grande influência na produção ficcional de duas histórias (Foto: Acervo pessoal)

Jornal da Unicamp: Apesar da importância da infância em nossas vidas, muitas biografias tendem a retratá-la apenas nos primeiros capítulos. Como você avalia esse modelo?

Mell Brites: Por um lado, sim, as biografias talvez restrinjam o começo da vida ao primeiro capítulo. Mas, por outro, a gente sabe o quanto a infância também é matéria ficcional de grandes escritores brasileiros, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa. Então, tendo a achar que a infância e o infantil, como uma ideia de um olhar original para o mundo, são muito inspiradores para a ficção. E eles também podem ter esse caráter constitutivo muito forte, como conta Graciliano Ramos, em Infância, que por sinal teve uma infância repleta de muita dor. Acredito que, de fato, a infância reverbera para além da infância, é um período de origem no qual a gente se transforma no que a gente é. Na verdade, não tenho muita noção de como as infâncias são retratadas nas biografias, porque não consumo tanto esse gênero, então não sei se consigo opinar sobre isso. O que posso dizer é que, realmente, a infância cabe na vida adulta. Como trabalho com literatura infantil, para mim é muito evidente como ela, para além de um período da vida, é também um estado de espírito, uma maneira de enxergar as coisas. E, muitas vezes, a gente trabalha com livros que tocam mais a infância dos adultos do que a das crianças.

Jornal da Unicamp: Na análise dos contos “Restos do carnaval”, “Cem anos de perdão”, “Felicidade clandestina” e “Os desastres de Sofia”, você examina a relação entre memória e literatura. Podemos ler a memória do autor, tantas vezes explorada em sua produção literária, como um dado biográfico?

Mell Brites: A gente não pode ter a ingenuidade de partir do pressuposto de que a memória é um fato real e dado. Como estudam pesquisadores de áreas diferentes, seja da psicanálise, da própria literatura, entre outras, a memória por si só já é um recurso praticamente ficcional. Ela é uma criação do sentido do passado a partir do presente. Você não cria o sentido reconstituindo as coisas exatamente como elas foram. Você as reconstitui a partir das sensações que ficaram, das experiências vividas. Acho até que a memória está mais próxima da ficção do que da informação propriamente. Então, analisando os textos de Clarice, eu não tinha nenhuma pretensão de checar a biografia com o texto literário; isso não importava. Eu só parti do pressuposto de que a memória ali era mais um recurso usado como matéria ficcional. No livro, eu apontei que alguns fatos específicos da experiência que Clarice retrata nesses contos foram vividos por ela, porque suas irmãs os relataram, ou seja, temos evidências. Uma das coisas que parece que aconteceu, por exemplo, foi que ela conheceu a filha de um dono de livraria; mas se a filha era esse “monstro” que ela pinta no texto, nunca saberemos. E, para mim, essa é uma discussão inócua, porque o que importa é a experiência relatada e, acima de tudo, a ficção.

Jornal da Unicamp: De acordo com a sua análise dos livros A mulher que matou os peixes, O mistério do coelho pensante, A vida íntima de Laura, Quase de verdade e Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, o leitor torna-se parte integrante e ativa da obra. Sabemos, contudo, que os livros infantis geralmente também se apoiam em imagens. Qual a relevância das ilustrações desses cinco livros? Acredita que os efeitos produzidos pelas obras infantis de Clarice mudam com o lançamento de novas edições, nas quais as ilustrações são substituídas por outras?

Mell Brites: Legal você fazer essa pergunta, porque tenho a chance de falar um pouco sobre uma coisa que nem abordo no livro. Na dissertação, decidi não realizar uma análise das ilustrações. Analisei os livros infantis de Clarice apenas como contos. Os textos infantis dela já tiveram várias edições, com ilustrações diferentes. Só de A mulher que matou os peixes eu tenho três edições, por exemplo. Se eu fosse analisar as ilustrações, daria outra dissertação. E, como eu estava fazendo uma comparação entre aqueles contos memorialísticos e os livros infantis, achei que ficaria muito desequilibrado. Além disso, metade da minha análise não aborda o conceito de livro ilustrado, a relação texto-imagem. Mas é legal falar sobre isso aqui. Acho que cada ilustrador que acompanha a obra da Clarice traz um tipo de atmosfera completamente diferente.

 

Composição com as fotos das capas de três edições diferentes do mesmo livro.
Diferentes edições dos livros de Clarice Lispector trazem abordagens particulares da obra da autora por meio das ilustrações (Foto: Divulgação)

Jornal da Unicamp: Seja por meio da rememoração nostálgica ou do esforço reparador de “um tempo que deixou marcas”, a infância parece servir como campo de exploração literária de vários autores e autoras. O que é a infância para você? Você acredita que ela acaba?

Mell Brites: Eu acho que, em Clarice, essa busca pela infância, como o próprio Benjamin Moser mostra na biografia que ele escreveu sobre a escritora, de alguma forma era uma tentativa de aproximação desse lugar que ela sempre buscou, que é o mais selvagem, aquilo que está desprovido das amarras da razão. Nesse contexto, o universo da infância é uma porta de entrada para esse mundo, esse estado de existência que ela de alguma forma sempre buscava. E isso aparece muito por meio de suas narradoras: a G. H.; a própria Joana, de Perto do coração selvagem; as mulheres que são retratadas em Laços de família etc. A infância talvez fosse um ambiente em que Clarice sentia que o encontro com esse selvagem, com esse não-racional, era possível. Partindo da Clarice para responder essa pergunta mais ampla, acho que a infância é um período da vida, mas é muito mais do que isso. É um estado que a gente pode sempre acessar. Para mim, parece complicada essa ideia de que a gente tem períodos da vida que anulam os anteriores. A infância não é anulada, assim como a adolescência não é anulada. E a infância constitui um tempo de muita descoberta e muita novidade, e isso de alguma forma está sempre presente na vida. Não é à toa que, hoje, temos uma quantidade enorme de livros supostamente infantis lidos por adultos. Às vezes eles até são lidos mais por adultos do que por crianças. Porque eles estão dialogando com a infância do adulto. A parte que falta, de Shel Silverstein, por exemplo, é um livro publicado por um selo editorial infantil, mas ele foi comprado majoritariamente por adultos. A infância é mesmo um estado presente, às vezes mais escondido, às vezes menos, mas que está aí.

Esta reportagem foi elaborada pelos alunos do curso de Estudos Literários, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a supervisão da professora Daniela Birman.

Imagem de capa JU-online
Capa de um livro de cor rosa. No centro há uma ilustração que remete à um bordado.

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