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A Guerra Fria para além do senso comum

Em novo livro, Marcelo Ridenti examina influência dos Estados Unidos e União Soviética sobre intelectuais e artistas brasileiros

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A expressão “Guerra Fria” é inseparável do forte imaginário construído a partir dela em notícias, representações cinematográficas e literárias, entre outros discursos. Ao tratar das pressões e influências exercidas pelos Estados Unidos e pela União Soviética sobre intelectuais e artistas brasileiros no período, o sociólogo Marcelo Ridenti busca destrinchar esse jogo de forças, sem cair em clichês ou julgamentos moralistas. O resultado pode ser lido em O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural, lançado este ano pela Unesp. No livro, Ridenti se debruça sobre três episódios reveladores de vários fatores envolvidos na internacionalização desses profissionais. Diferentemente de análises simplistas e binárias, a pesquisa revela movimentos de oscilação ideológica, conflito entre visões existentes no interior de agências de inteligência e respostas criativas elaboradas por intelectuais em meio a limitações diversas. Em entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, o professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) apresenta os três episódios examinados, comenta o papel do regime militar vigente no Brasil (1964-1985) nesse jogo de influências e o legado deixado pela Guerra Fria, identificado atualmente na academia e, de modo mais amplo, em todo o país. “O discurso anticomunista vem ganhando espaço na sociedade, manipulado pelos setores mais retrógrados, que recorrem a velhos fantasmas para atacar não só a democracia e as lutas por direitos sociais, mas também a produção de conhecimento na universidade”, afirma. Confira na íntegra a entrevista concedida pelo sociólogo.

Foto de um homem que aparece da cintura para cima. Ele é branco, tem barba e cabelo grisalhos. Usa uma jaqueta e cachecol e está sorrindo.
“Não existiam simples marionetes ou inocentes na Guerra Fria”, afirma o sociólogo Marcelo Ridenti (Foto: Divulgação)

Jornal da Unicamp: A Guerra Fria é até hoje um assunto que divide opiniões e paira no imaginário das pessoas. Quais são, em sua visão, os principais mitos que seu livro consegue quebrar ou ressignificar sobre o período?

Marcelo Ridenti: O livro questiona certa simplificação do senso comum – no qual os estudos sobre a Guerra Fria cultural às vezes também incorrem – ao tratar os sujeitos envolvidos como se fossem marionetes de Moscou ou de Washington. Não raro, eles são vistos como inocentes úteis manipulados pelas potências mundiais. Ou então são tratados com base em julgamentos morais sobre sua suposta cumplicidade com um lado ou outro.

Questiono essas visões a partir da análise de três episódios que atestam o impacto cultural da Guerra Fria sobre intelectuais e artistas brasileiros. Primeiro, conto a experiência de Jorge Amado e seus companheiros no exterior desde o fim dos anos 1940 e o legado desse meio cultural comunista nas lutas terceiro-mundistas. Segundo: trato do meio intelectual que existia em torno da revista Cadernos Brasileiros nos anos 1960 e seus patrocinadores, do Congresso pela Liberdade da Cultura, sediado em Paris e financiado secretamente pelos Estados Unidos. E, finalmente, abordo o intercâmbio promovido na mesma época por senhoras do círculo empresarial norte-americano em São Paulo, que todos os anos selecionavam uma elite estudantil de todo o país para fazer um curso de verão na Universidade Harvard.

Nos três casos, houve financiamento estrangeiro, mas minha pesquisa não se resume a descobrir quem bancava as ações, como se tudo se explicasse pelas ações encobertas das grandes potências. Analiso o contexto e verifico como ele se articulava aos sujeitos, que atuavam individual e coletivamente com base em suas ideias, ideais, ideologias e utopias em certo momento histórico.

Foto em preto e branco de quatro homens de pé. Eles são brancos e estão usando terno.
Da esquerda para a direita: Graciliano Ramos, Pablo Neruda, Cândido Portinari e Jorge Amado, 1945 (Foto: Divulgação)

Jornal da Unicamp: As pesquisas referentes às três partes do livro foram realizadas separadamente ou de forma simultânea?

Marcelo Ridenti: O livro resulta de pesquisa realizada durante vários anos no Brasil, com apoio do CNPq, e no exterior, com verba da Capes, da Fapesp e de outras agências de fomento à pesquisa. Ela foi pensada como um todo, embora desenvolvida ao longo do tempo na ordem em que aparece no livro. O estudo sobre a internacionalização cultural comunista, tratada nos primeiros anos de pesquisa, me levou a buscar compreender também o outro lado, o dos liberais apoiados pelos Estados Unidos, sempre realçando a relação entre os dois polos. A forma de exposição dos resultados encontrados na investigação e a redação do conjunto da obra foram realizadas recentemente, sintetizando o processo de investigação.

Jornal da Unicamp: Você acredita que a ditadura militar brasileira facilitou ou dificultou as influências dos dois polos antagônicos sobre os intelectuais do país?

Marcelo Ridenti: A formação de brasileiros nos Estados Unidos e na Europa foi incentivada pelo governo militar, que precisava preparar quadros para levar adiante seu projeto de avanço científico e tecnológico – parte do chamado “milagre brasileiro”, fenômeno de crescimento econômico acelerado e modernização conservadora do país. Essa necessidade de formar quadros técnicos levou até mesmo a certa tolerância em relação ao intercâmbio cultural e acadêmico com os países socialistas, algo que foi vigiado no tempo da ditadura, mas não proibido. Acontece que uma formação acadêmica sofisticada não combinava com um governo militar, de modo que a pressão por democratização passaria a ser crescente nos meios intelectuais.

Reprodução da capa de uma revista chamada Cadernos Brasileiros.
Ridenti analisou o grupos de intelectuais envolvidos na produção da revista Cadernos Brasileiros nos anos 1960 e seus patrocinadores (Foto: Reprodução)

Jornal da Unicamp: Qual foi a sua maior surpresa ao investigar os processos de “conquista de corações e mentes” do período?

Marcelo Ridenti: Uma surpresa foi verificar a habilidade em ocultar certos segredos de financiamento a atividades culturais, escondendo verbas obtidas sobretudo da CIA [Agência Central de Inteligência dos EUA], da Usaid [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] e do Ipes [Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais]. Outro aspecto que me surpreendeu foi a complexidade no interior das agências envolvidas. Por exemplo, o escritor John Hunt – comprovado agente da CIA na direção do Congresso pela Liberdade da Cultura – teve reservas quanto ao golpe de 1964 e aconselhou seus correspondentes da revista Cadernos Brasileiros a apoiar intelectuais perseguidos pelos militares, especialmente Celso Furtado, conselho que não foi ouvido de imediato. Mais uma surpresa foi verificar a oscilação ideológica de vários intelectuais ao longo da Guerra Fria, quebrando a construção de uma imagem de trajetória coerente para suas biografias.

Jornal da Unicamp: Qual a sua visão sobre a produção intelectual anticapitalista após a vitória dos EUA e do seu sistema econômico na Guerra Fria?

Marcelo Ridenti: A indústria cultural criou nichos de mercado para tudo, até mesmo para um público consumidor de mercadorias críticas no cinema, no teatro, na imprensa, nas editoras, na canção popular, nas artes em geral. Tudo deglutido na reprodução da ordem estabelecida. É quase impossível escapar dela. Mas as obras têm um valor de uso que pode ir além de seu valor de troca. Como diria Jameson, há um potencial utópico e transcendente de insatisfação implícito até nos produtos da cultura de massa considerados como os mais degradados pelos críticos de arte. Já no âmbito da cultura produzida nas universidades, há espaço para uma relativa autonomia que permite a elaboração de pensamentos críticos, até porque o sistema precisa disso para se renovar.

Jornal da Unicamp: Como você avalia as heranças da Guerra Fria identificadas nas cenas acadêmica e científica da atualidade?    

Marcelo Ridenti: Houve clara vitória dos Estados Unidos, país que se consolidou como o mais influente no Brasil, inclusive academicamente. Isso não quer dizer que todos pensem da mesma forma, nem que digam amém à política externa daquele país. Lá, como aqui, são feitas críticas a diversos aspectos da sociedade capitalista, mas as possibilidades de uma alternativa socialista ficaram mais distantes no horizonte. Não obstante, o discurso anticomunista vem ganhando espaço na sociedade, manipulado pelos setores mais retrógrados, que recorrem a velhos fantasmas para atacar não só a democracia e as lutas por direitos sociais, mas também a produção de conhecimento na universidade.

Composição com duas fotos. À esquerda há um recorte de jornal e à direita há uma foto em preto e branco de um grupo de jovens ao lado de um avião.
Nos anos da Guerra Fria, senhoras do círculo empresarial norte-americano em São Paulo selecionavam uma elite estudantil de todo o país para fazer um curso de verão na Universidade Harvard (Foto: Divulgação)

Jornal da Unicamp: Há alguma hipótese a respeito da autonomia possível dos artistas e intelectuais que se encontravam no interior da chamada “gaiola de ouro”?    

Marcelo Ridenti: Seguindo pistas teóricas de Raymond Williams sobre a questão da determinação, procurei demonstrar que, nas circunstâncias da Guerra Fria, certos artistas, pesquisadores e estudantes encontraram respostas criativas para realizar seus projetos. Tudo era feito de acordo com o contexto local e o embate entre as duas grandes potências no cenário internacional, do qual os intelectuais participavam a seu modo. Ou seja, apesar da pressão social e dos limites impostos à ação, esta encontrou espaço para dar respostas diferenciadas às constrições sociais.

Jornal da Unicamp: Sua investigação abriu caminhos para estudos futuros (seus ou de outros pesquisadores) sobre o tema da internacionalização cultural na Guerra Fria?

Marcelo Ridenti: O livro não tem a pretensão de esgotar o tema da internacionalização de intelectuais brasileiros na Guerra Fria cultural. Ele é imenso e multifacetado, apresenta muitos aspectos a investigar, como a participação em congressos mundiais da juventude e outros promovidos por países comunistas e seus homólogos ocidentais, em festivais de teatro, cinema, música, literatura, dança e artes, além de intercâmbios estudantis pelo mundo afora, congressos científicos, cursos de formação política ou profissional, estágios institucionais de funcionários do Estado no exterior, incluindo políticos e militares, em disputas veladas ou expressas para ganhar corações e mentes.

Esta entrevista foi elaborada por alunos do curso de Estudos Literários, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a supervisão da professora Daniela Birman.

Imagem de capa JU-online
Reprodução da capa de um livro que traz uma foto em preto e branco de uma mulher sentada. Ela usa um vestido de renda enfeitado com uma flor e luvas até o cotovelo.

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