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‘Mar imenso sem limites’, o particular universo de Tom Jobim

Examinando 145 canções do compositor, Carlos Almada pretende traçar os aspectos harmônicos do maestro carioca

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Produto de uma longa pesquisa empreendida por Carlos de Lemos Almada, a obra A harmonia de Jobim é o novo lançamento da Editora da Unicamp. Autor de Arranjo (2001) e Harmonia funcional (2009), Almada analisa em seu mais recente livro o modus operandi jobiniano, correlacionando três esferas essenciais do particular universo composicional de Tom Jobim: a harmonia, a melodia e os elementos textuais.

A Editora da Unicamp entrevistou o autor, docente dos cursos de graduação e pós-graduação na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para entender a relevância de aprofundar estudos sobre a imensa discografia jobiniana. Almada responde ainda a questões relacionadas ao diálogo das composições de Tom Jobim com as de seus contemporâneos e ao legado musical que o Maestro deixou para a posterioridade.

Retrato de Carlos Almada, ele é um homem branco, de cabelos brancos, penteados para trás e usa óculos
Em  novo livro, Carlos Almada explora três esferas do universo composicional de Tom Jobim: a harmonia, a melodia e os elementos textuais. Crédito: UFRJ

Editora da Unicamp: Existem inúmeras publicações a respeito de Tom Jobim. Em que A harmonia de Jobim se diferencia desses trabalhos?

Carlos Almada: Sim, de fato, há no mercado editorial brasileiro diversas obras – várias excelentes, aliás – sobre Jobim, porém, em sua grande parte, trazem abordagens históricas, biográficas e estéticas. Eu proponho uma perspectiva diferente, na qual busco um exame dos aspectos essencialmente estruturais da música do compositor, algo que, até onde vai meu conhecimento, nunca foi feito nos níveis de abrangência, consistência e profundidade desse projeto. O livro resulta de uma pesquisa acadêmica iniciada em 2017, na qual desenvolvi metodologias analíticas e modelos teóricos originais, de modo a dar conta de uma tarefa tão ambiciosa quanto é entender essa notável música em seus próprios termos.

Editora da Unicamp: Por que o foco na “harmonia”? E que outra noção de “harmonia” o livro oferece para além do conceito mais comum de “ciência que se dedica ao estudo dos acordes e de suas relações”?

Carlos Almada: A harmonia é, no meu entendimento, o elemento mais complexo, vistoso e distintivo da música jobiniana, o que motivou que fosse selecionada como o parâmetro de análise inicial da pesquisa. Isso não significa, de modo algum, que outros domínios da música de Jobim – como melodia, forma, arranjos – não mereçam ser estudados em profundidade (o que faz parte, aliás, dos meus planos mais imediatos).

Em resposta à segunda questão, minha concepção particular de “harmonia” (aqui inserida num contexto tonal, evidentemente) é mais ampla do que sugere a definição apresentada: vejo o conceito como resultante da interação entre a estrutura melódica e os acordes que a sustentam, uma interação mediada pelas forças funcionais que emanam, em última instância, da tônica referencial, bem como as possíveis correlações, desde as mais óbvias e centrípetas às mais complexas e de tendência centrífuga.

Editora da Unicamp: Sabe-se que Tom Jobim possui variadas maneiras de expandir a função harmônica em sua música. É possível resumir, em rápidas palavras, o que, principalmente, caracteriza a harmonia jobiniana?

Carlos Almada: Eis uma pergunta muito difícil de ser respondida “em rápidas palavras”... Talvez possa fazê-lo não apontando especificidades (que são inúmeras – daí a grande dificuldade), mas mencionando que é exatamente uma das marcas características da harmonia jobiniana a expansão funcional, o que é efetivado por meio da exploração extremamente original e criativa dos recursos harmônicos disponíveis, em níveis talvez únicos. Atribuo isso a uma sensibilidade refinadíssima e a uma intuição composicional sem precedentes. Há inúmeros aspectos na harmonia do nosso grande mestre que evidenciam tais atributos. Uma das propostas de meu livro é justamente identificá-los sistematicamente, de modo que possam ser incorporados à teoria da harmonia em música popular.

Editora da Unicamp: Pela Editora da Unicamp o senhor já publicou Arranjo (2001) e Harmonia funcional (2009), além de outros três títulos por outras editoras, sempre sobre variação musical, harmonia e música popular brasileira. Por que só agora, 21 anos depois da sua estreia em livro, faz uma obra exclusivamente sobre a harmonia de Jobim?

Carlos Almada: Bem, posso responder que somente agora – após acumular mais 21 anos de experiência e conhecimento – sinto-me suficientemente capacitado para escrever um livro sobre esse assunto. Espero ter sido bem-sucedido.

Editora da Unicamp: Como está estruturado o livro? O público-alvo é o músico já formado ou foi pensado como material a ser usado por professores na graduação e na pós-graduação de cursos de música?

Carlos Almada: A estrutura do livro reúne 11 capítulos, distribuídos em três grandes partes: (I) Formulações teóricas (caps. 1-3), contemplando os principais elementos da pesquisa que deu origem ao próprio livro; (II) Estruturas funcionais (caps. 4-8), em que são apresentadas diversas abordagens referentes à funcionalidade, em seus vários formatos e níveis (classes de acordes, modalismo, regiões tonais etc.); e (III) Perspectivas complementares (caps. 9-11), parte na qual discuto a presença de elementos característicos da música jobiniana (acordes com sexta, a estética blues, acordes híbridos etc.), bem como as influências da melodia e do texto na construção harmônica.

Em relação ao público-alvo de A harmonia de Jobim, penso que seja bastante amplo, já que os assuntos contidos no livro poderão interessar a instrumentistas, compositores e arranjadores (profissionais ou não, estudantes e professores). A aplicação pedagógica, em níveis de graduação e pós-graduação (como, aliás, venho experimentando ao longo da pesquisa em minhas classes de Harmonia na Escola de Música da UFRJ), é também uma das metas idealizadas no projeto.

Tom Jobin, fotografado em preto e branco, da cintura para cima, em uma praia. Ele é branco, tem o cabelo curto, usa blusa de manga comprida e está sorrindo.
Segundo Almada, desde o início de sua carreira, Jobin foi reconhecido como um compositor refinado e de estilo único. Crédito: Otto-Otto Stupakoff

Editora da Unicamp: Mundialmente reconhecido, Tom Jobim é um compositor presente no cenário musical tanto pelas gravações originais como pelas novas interpretações de suas canções. Como o senhor avalia o diálogo de Jobim com outros compositores e arranjadores?

Carlos Almada: Pelo que sabemos, desde o início de sua carreira, Jobim foi reconhecido como um compositor extremamente refinado e de estilo único. Talvez a interlocução mais marcante desse período inicial tenha sido com Newton Mendonça, uma amizade iniciada nos tempos de colégio. Mendonça foi um pianista talentoso e compositor inspiradíssimo, parceiro de Jobim em clássicos como “Samba de uma nota só”, “Desafinado”, “Meditação”, “Caminhos cruzados”, entre vários outros títulos. Infelizmente, morreu muito novo, em 1960, vítima de um enfarte. Além dele, muitos outros compositores de primeiro time, entre letristas e músicos, certamente contribuíram para a formação do estilo jobiniano, por meio de parcerias, influências e admirações mútuas. Citaria aqui alguns (entre muitos nomes): Vinicius de Moraes, Luiz Bonfá, Aloysio de Oliveira, João Gilberto, Dolores Duran, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Eumir Deodato, Dori Caymmi etc. É preciso também mencionar as inúmeras relações, profissionais e de amizade, que Tom manteve em seu período nos Estados Unidos, nos anos 1960, numa fase em que sua música teve enorme peso, de reconhecida influência, sobre o jazz, algo que se reflete não apenas na quantidade de gravações de suas canções por grandes nomes daquele país, como no aspecto composicional: Bill Evans, Stan Getz, Charlie Byrd, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, entre muitos e muitos outros. A destacar também o trabalho conjunto de Jobim e o arranjador de origem alemã Claus Ogerman, que conseguiu traduzir perfeitamente em timbres e texturas a delicadeza e a sutileza da estética da Bossa Nova.

Editora da Unicamp: Quais os elementos da música de Antonio Carlos Jobim, em sua opinião, possibilitaram sua enorme popularidade no Brasil e uma tão boa recepção no exterior?

Carlos Almada: Eu listaria os seguintes atributos da música jobiniana como os principais fatores que justificam a admiração que desperta em todos: sua incomparável originalidade, sua extraordinária diversidade, sua única e complexa simplicidade e, principalmente, sua infindável beleza, bem além da conta.

Editora da Unicamp: Qual o legado de Jobim para as novas gerações da MPB?

Carlos Almada: O legado foi deixado, na verdade, para todos, músicos ou não, habitantes do Brasil ou do resto do planeta inteiro: a música do Tom é um mar imenso sem limites, um bem cultural e artístico maravilhoso que nos dá tanto orgulho e esperança no futuro.

Imagem de capa JU-online
capa de livro que mostra um piano preto em fundo branco. À direita aparece Tom Jobim, homem branco, com uma praia ao fundo.

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