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Antologia de Mário de Andrade é traduzida para Libras

O processo de tradução de uma língua oral e escrita para uma gestual-visual envolve muitas etapas e desafios

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Contos de Mário de Andrade, lançado pela Editora da Unicamp, é uma antologia composta por cinco narrativas. Organizada por Orna Levin, a obra já havia ganhado uma tradução para o inglês, contribuindo para a internacionalização do autor. Agora, por meio de uma parceria entre a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal do ABC (UFABC), ela tornou-se acessível em Libras (Língua Brasileira de Sinais).

A Editora da Unicamp conversou com as coordenadoras de tradução, Ivani Rodrigues, docente no curso de fonoaudiologia da Unicamp, e Kate Kumada, professora adjunta no Centro de Ciências Naturais e Humanas da UFABC, para saber mais sobre o processo de transposição do português, língua oral e escrita, para a Libras, língua gestual-visual. As duas docentes trouxeram ainda importantes reflexões sobre a integração da Libras na educação e na sociedade e apontaram os desafios a serem enfrentados para isso. 

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Uma das coordenadoras da tradução, Ivani Rodrigues: importantes reflexões sobre a integração da Libras na educação e na sociedade e apontaram os desafios a serem enfrentados para isso

Editora da Unicamp: Como ocorre o processo de tradução do português, língua oral e escrita, para Libras, língua de natureza gestual-visual? Quais os desafios desse processo?

Ivani Rodrigues e Kate Kumada: O processo tradutório inicia-se muito antes da gravação final. Para este livro, ele começou com a leitura da antologia de Mário de Andrade e com o entendimento do contexto em que as histórias acontecem. Em seguida, estabelecemos quem seria o responsável por uma primeira versão em Libras, de modo a verificar quais palavras eram desconhecidas na língua de sinais. Então, começamos a pensar na criação de cenários para as histórias. Foram escolhidas duas pessoas para a tarefa da tradução, um surdo, Erik Honorato Nunes, e uma ouvinte e intérprete de Libras, Leilane Morgado. Eles se encontraram para discutir as escolhas tradutórias, por exemplo, os sinais, os classificadores, a caracterização, os sinais pessoais para os personagens e sua disposição espacial ao longo das histórias. Isso garantiu a maior fidelidade possível aos efeitos de sentido que a obra transmite. Os textos e vídeos eram compartilhados com a coordenação da equipe, composta por nós, para uma leitura conjunta, com o intuito de apontar os aspectos tradutórios a serem aprimorados nessa primeira versão dos vídeos. Essa revisão foi contínua e, até o momento da gravação em estúdio, o texto foi constantemente analisado e ajustado pela equipe.

A próxima etapa foi gravar vídeos informais (fora de estúdio), que passaram por revisões até se chegar a uma versão satisfatória. Na sequência, para a gravação em estúdio, um dos tradutores copiava a sinalização em vídeo, já revisada (acompanhando-a pela tela do notebook), enquanto o outro, na frente da câmera, visualizava o colega e o notebook e copiava os sinais, sendo essa a versão final. Depois, foi a vez de legendar os sinais próprios ou técnicos (pouco conhecidos) e as ocorrências de datilologia em Libras (a soletração manual de letras do alfabeto), chegando finalmente à edição dos vídeos.

Alguns contos foram produzidos separadamente e depois discutidos em dupla. Para outros, todo o processo foi feito em dupla. O fato de termos um surdo na equipe foi um diferencial. O trabalho do Erik trouxe muita vitalidade ao processo, pois além de Libras ser sua primeira língua, ele acumula experiência com a tradução de textos literários e acadêmicos. O envolvimento de um membro da comunidade surda neste trabalho valorizou ainda mais o processo tradutório.

Os intérpretes, Leilane e Erik, no estúdio da UFABC
Os intérpretes, Leilane Morgado e Erik Nunes, no estúdio da Universidade Federal do ABC

Um ponto importante, já mencionado, foi a busca por um cenário imagético que estivesse de acordo com a gramática da Libras, garantindo a tradução fidedigna. O grau de dificuldade variou entre os contos: por exemplo, a tradução de “Será o Benedito! ” foi mais tranquila, já a de “O ladrão” foi mais desafiadora. Por serem textos literários, com palavras raramente usadas no cotidiano (como barafustar, fermatas, claraboia, mocetona, bulha), foi necessário modelar as narrativas de uma forma única e atribuir sentido visual a partir da língua de sinais, buscando sensibilidade na tentativa de recriação. Pensamos em traduções que pudessem aproximar o surdo da literatura produzida por um ouvinte para, então, desenvolver descrições imagéticas, como o uso de classificadores, escolhas de espaço de sinalização e expressões faciais e corporais, usando, dessa forma, certos verbos de concordância em Libras.

Kate conferindo a marcação do intérprete e Leilane, de costas, analisando o vídeo para fazer o espelhamento da Libras
Kate Kumada conferindo a marcação do intérprete e Leilane Morgado, de costas, analisando o vídeo para fazer o espelhamento da Libras

Em relação à nomeação ou à caracterização dos personagens, com o intuito de evitar que fossem referidos apenas pelo uso da soletração manual de seus nomes próprios, decidimos “batizá-los” com sinais em Libras. O Erik nomeou cada personagem com um sinal em Libras, apoiando-se nas características que percebeu ao ler os contos. Decidimos que, na primeira vez em que um personagem aparecesse, o nome seria apresentado por meio da datilologia e, em seguida, o sinal em Libras seria apresentado. Assim, sempre que o personagem aparecesse novamente, seria referenciado pelo seu sinal.

Devemos destacar que não foi necessária a criação de novos sinais para a tradução dos contos. A pesquisa para a tradução ocorreu por meio de diferentes dicionários e glossários, buscando sinais desconhecidos e, ao mesmo tempo, pesquisando registros de sinalização em determinados contextos, ampliando as possibilidades de tradução. Os maiores desafios tradutórios foram encontrar sinônimos entre as línguas e construir representações que dessem conta do sentido de certas palavras, como “vanity-case”, ou expressões, como “cheiro de cama quente”, e de trechos com adjetivos ou termos pouco usuais. Por exemplo, no conto de “Frederico Paciência”: “Chamado pelo diretor, lá veio o marista, irmão Bicudo o chamávamos, trazendo na mão o burro de Virgílio em francês, igualzinho o que me servira de cola. Meio que turtuviei, mas foi um nada. ” Pelo fato de os contos terem sido escritos no século passado e com muito cuidado aos detalhes - Mário de Andrade demorou quase 10 anos para finalizar alguns deles -, as dificuldades de tradução surgiram especialmente por nos preocuparmos em manter uma tradução cultural (para que os surdos pudessem compreender e ter uma impressão análoga à dos ouvintes que leem os textos em português), procurando, simultaneamente, manter o mesmo sentido do texto de partida. Buscamos, ainda, manter a riqueza dos detalhes em Libras, visto que, por estarem agora acessíveis em formato bilíngue, esses textos poderão ser aproveitados em aulas de literatura ou avaliações de diferentes proporções (vestibulares, concursos etc). A construção do ritmo narrativo das histórias foi um outro desafio. Ele foi obtido a partir do ritmo da sinalização e dos significados dos sinais de Libras, procurando mostrar os momentos do clímax do enredo.

Ainda tivemos a possibilidade de criar um glossário português-Libras. A escolha das palavras que o compõem foi feita com o intuito de refletir o vocabulário específico da época de Mário de Andrade. Em suma, almejamos entregar um trabalho com recursos estéticos da Libras, com estratégias focadas no contexto em que os contos estavam inseridos e, ainda, recuperar as relações icônicas dos contos por meio de ações não verbais.

A equipe no estúdio: os intérpretes, Leilane Morgado e Erik Honorato, a técnica em audiovisual, Letícia Pericin, e a professora Kate Kumada
A equipe no estúdio: os intérpretes, Leilane Morgado e Erik Honorato, a técnica em audiovisual, Letícia Pericin, e a professora Kate Kumada

Editora da Unicamp: Ivani Rodrigues disse, em uma conversa com o Núcleo de Direitos Humanos da Unicamp, que a gramatização da Libras se tornou uma demanda para a integração social e acadêmica dos surdos, desde que a língua foi reconhecida como oficial no Brasil. No que consiste essa gramatização, principalmente no contexto universitário? O que são os glossários em Libras?

Ivani Rodrigues: O que quis dizer é que vivemos um momento muito propício ao desenvolvimento da Libras, pois ela tem o status de língua natural por força da Lei 10.436 de 2002 e do decreto 5626 de 2005, entrando, assim, no espaço escolar. Nesse espaço, vocabulários em Libras compostos por termos acadêmicos das diversas disciplinas escolares -- ciências, geografia, história entre outras -- são cada vez mais necessários. Por isso, há uma enorme demanda por glossários e dicionários em Libras, que resolvam essa questão da mesma forma que os dicionários monolíngues de português a resolvem. O procedimento tem sido a criação, por surdos, de sinais que correspondam a termos técnicos e científicos, visto que a maioria dos sinais registrados em dicionários de Libras são referentes a conceitos do cotidiano. São questões práticas, com encaminhamentos facilmente realizáveis, mas que exigem uma discussão maior nas comunidades surdas, que são as que têm as condições de eleger sinais para esses vários termos e, de certa forma, de padronizar o uso da língua, evitando prejuízos nos exames que envolvem comunidades surdas de todo o Brasil, como, por exemplo, o Enem.

O que enfatizo é que, embora oficializada, a Libras ainda possui um léxico escasso, mesmo nos dicionários gerais da língua, o que é uma grande lacuna em relação aos glossários, dicionários e outros materiais que podem, efetivamente, dar maior condição ao ensino e à aprendizagem de alunos surdos em todos os níveis escolares. O processo de gramatização da Libras tem a ver com essa proliferação de glossários e dicionários e com a necessidade da língua de se equipar. Isso também aconteceu no Brasil à época da chegada dos portugueses, a construção do português como língua nacional passou por essas etapas de dicionarização. A tradução dos clássicos da literatura para Libras, sem dúvida, também ajuda nesse processo, pois demanda o escrutínio dessas línguas e a reflexão sobre novos termos.

Editora da Unicamp: A literatura pode ser objeto de estudo acadêmico, mas é, primeiramente, um marco da relação entre sujeito e mundo. Qual a importância de integrar clássicos da literatura brasileira à Libras?

Ivani Rodrigues e Kate Kumada: A importância do ensino da literatura brasileira para os surdos funda-se no direito à formação educacional integral desses sujeitos. Lendo os clássicos da literatura, os alunos podem conhecer os diversos contextos históricos da sociedade, o que faz com que compreendam melhor a realidade brasileira, dada a grande diversidade regional em que se inserem nossos autores. Além desse aspecto, ler um clássico brasileiro possibilita o conhecimento de vários recursos estéticos utilizados na linguagem literária, o que enriquece a produção textual dos alunos de maneira geral, inclusive a dos surdos.

Também por meio da tradução de literatura brasileira para a Libras, crianças e jovens entram em um mundo com muitas possibilidades e podem experienciar outras culturas, além de conhecer novas palavras e expressões. Por esses motivos, o acesso a livros é muito importante para todos nós. Por meio da leitura podemos viajar para lugares distantes sem sair de casa e imaginar outros mundos, outras formas de viver, coisas fundamentais para a formação de um indivíduo. No Brasil, já há experiências de êxito com o que se denominou “literatura surda”, isto é, trabalhos de autores surdos publicados, difundindo suas produções culturais, de forma a enriquecer o contato linguístico da comunidade surda com a comunidade ouvinte e vice-versa. Além desse contato proporcionar o encontro entre essas duas línguas, a pessoa surda também pode experienciar a escrita em língua portuguesa, seus sentidos e efeitos. Muitas vezes, as adaptações ou releituras não fazem jus aos originais e, portanto, não conseguem provocar as mesmas emoções no leitor, fazendo com que os alunos achem os textos chatos e sem sentido. Foi pensando nisso que nos debruçamos sobre a tradução dos Contos de Mário de Andrade. Tentamos nos aproximar dos efeitos de sentido que o autor promove em sua obra original para assegurar aos surdos a oportunidade de também serem conquistados pela literatura deste autor.

Editora da Unicamp: A integração da literatura enriquece o repertório da Língua Brasileira de Sinais?

Ivani Rodrigues e Kate Kumada: Com certeza! A literatura enriquece o repertório da Libras, reiterando sua importância na promoção do conhecimento de si e do mundo dos sujeitos surdos, possibilitando situações de aprendizagem mediadas pelo livro e permitindo também o prazer da leitura. Nas últimas décadas, ocorreram no Brasil importantes conquistas das comunidades surdas em diferentes espaços. Houve, como já mencionado, o reconhecimento da cultura surda e a oficialização da Libras. Aos poucos, vemos a ocupação de mais espaços por essa língua. Além disso, investigações nas áreas da educação e da linguística já mostraram a importância da língua de sinais na educação dos surdos e a destacaram como uma das principais razões de encontro entre eles, pois é por meio de seu compartilhamento que eles têm oportunidades de trocar experiências, conversar e aprender um com o outro. A literatura, além de nos introduzir no mundo da escrita, ao tratar a linguagem como arte traz as dimensões ética e estética da língua. O contato de surdos com a literatura é, assim, essencial para sua formação como leitores de mundo. Quanto mais cedo as narrativas orais e escritas forem inseridas em seu cotidiano, maiores serão as chances de desenvolvimento do prazer da leitura e do interesse por ela.

Editora da Unicamp: Por fim, como facilitar o processo de integração entre português e Libras? Que papel a tecnologia pode ter nessa facilitação?

Ivani Rodrigues e Kate Kumada: Vivemos em um país multilíngue, com cerca de 180 línguas indígenas, 30 línguas de imigrantes e pelo menos duas línguas de sinais reconhecidas (Libras e Urubu-Kaapor). Garantir que todos os que não têm o português como primeira língua sejam respeitados em suas singularidades linguísticas é um grande desafio para a escola e para a sociedade e ultrapassa o potencial da tecnologia, pois requer novas políticas linguísticas. Muitas iniciativas têm sido tomadas para que haja maior equiparação nas condições de acesso à informação e à educação para surdos e ouvintes. Por exemplo, as legendas e janelas de intérpretes em várias programações de TV, os sites que contam com tradutores de língua de sinais (a maioria deles avatares), o uso de QR Codes e de realidade aumentada, como foi feito nos Contos de Mário de Andrade. Nesse sentido, temos encontrado muito suporte da tecnologia para garantir que textos em português que circulam na sociedade possam ser oferecidos também no formato bilíngue, propiciando sua acessibilidade às comunidades surdas. Todas as formas mencionadas são maneiras de respeitar a condição bilíngue dos cidadãos surdos, integrando português e Libras e divulgando a língua de sinais entre as pessoas ouvintes. Acreditamos que a tecnologia tem um grande potencial para facilitar a integração de português e Libras nos diferentes espaços sociais, bem como para promover maior autonomia e independência dos surdos. No entanto, para isso, além de produzir novas tecnologias e aprimorar as ferramentas existentes, é necessário que tenhamos políticas públicas de difusão da língua de sinais entre as pessoas ouvintes.

Confira o lançamento no site da Editora.

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Serviço:

Título: Contos

Autor: Mário de Andrade. Organização: Orna Levin

ISBN: 978-65-86253-78-8

Edição: 1a

Ano: 2021

Páginas: 152

Dimensões: 10,5 x 18 cm

Imagem de capa JU-online
O processo de tradução de uma língua oral e escrita para uma gestual-visual envolve muitas etapas e desafios

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