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O livro "Carta de achamento do Brasil" é lançado em edição modernizada

O coordenador da Comvest, José Alves e a organizadora da edição, Sheila Hue, falam sobre o importante registro histórico que também é leitura obrigatória para o Vestibular Unicamp

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A carta de Caminha é riquíssima em detalhes; no século XIX, já chegou a ser designada como o documento da fundação nacional brasileira. As descrições narrativas da terra que hoje chamamos de Brasil e do encontro entre seus habitantes originais e os portugueses tornam evidentes as diferenças entre as expectativas desses povos ao se conhecerem.

A Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest) estabeleceu esse escrito como obra literária obrigatória a todos os vestibulandos da Universidade a partir deste ano. É importante ter contato com esse registro histórico que anuncia a tensão latente entre os povos indígenas e os europeus, cujos desdobramentos coloniais ecoam até hoje no Brasil.

À época que Pero Vaz de Caminha escreveu a carta ao rei Manuel, não havia normas gramaticais unificadas; esse fato, unido à linguagem típica do século XVII, torna o texto original difícil de ser compreendido. A Editora da Unicamp lançou recentemente a versão comentada e modernizada da Carta de achamento do Brasil, tornando o escrito mais inteligível e enriquecendo-o com os comentários da especialista Sheila Hue, permitindo, assim, que os leitores contemporâneos depreendam bem a temática e as nuances desse documento.

Para introduzir o leitor em mais detalhes sobre este lançamento, sua atualidade e sua importância, a Editora da Unicamp conversou com José Alves, diretor da Comvest, e Sheila Hue, comentadora da obra.

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Editora da Unicamp: Quais são os objetivos que a Comvest tem em mente ao escolher as obras obrigatórias ao Vestibular Unicamp?

José Alves: A existência de uma lista obrigatória de textos atende a múltiplos objetivos. O primeiro e mais importante é fazer com que candidatas e candidatos tenham contato com as obras, formem-se como leitores e ampliem as suas referências culturais e literárias. A inexistência de uma lista de leituras obrigatórias favorece a leitura de resumos e empobrece a experiência da leitura, fazendo também com que o acesso às obras não seja prioridade. A Comvest, com sua lista, sinaliza o contrário: menos obras, mas que sejam lidas, debatidas e conhecidas pelas candidatas e candidatos. O segundo objetivo é que, havendo uma lista, é possível dizer que o processo seletivo é mais claro e menos aleatório, ou seja, não vai cair uma questão sobre qualquer obra da literatura portuguesa, de qualquer gênero ou de qualquer período. Dessa forma, as pessoas sabem que as questões estarão relacionadas exclusivamente às dez obras que devem ser lidas ao longo dos três anos do ensino médio.

Editora da Unicamp: Por que a carta de Pero Vaz de Caminha foi escolhida como obra obrigatória para o Vestibular Unicamp 2022?

José Alves: A escolha da Carta de Achamento de Pero Vaz de Caminha dirigida a el-rei D. Manuel é para apresentar ao aluno e à aluna um documento histórico-literário que remete ao olhar de um europeu sobre terras e gentes que, ao longo do tempo, foram apresentadas como sendo a origem do Brasil. O olhar das e dos estudantes do século XXI problematiza noções como “descoberta”, a visão sobre os povos originários e sobre a flora e a fauna encontradas neste território. Trata-se de uma experiência de leitura que, com a excelente introdução de Sheila Hue, contextualiza a carta e permite que o leitor se conecte com o tipo de visão, preocupações e encantamentos da viagem liderada por Pedro Álvares Cabral e com uma descrição pormenorizada dos idos de 1500 e, ao mesmo tempo, possa observar questões próprias ao debate político atual, como a exploração da natureza e as ameaças aos povos indígenas.

Editora da Unicamp: No prefácio, você diz que, no século XVI, a carta servia como “instrumento de governação e de comunicação”. Como as cartas articulavam essas duas funções no período das navegações?

Sheila Hue: A carta foi um instrumento muito usado no século XVI, tanto pelos homens de letras do período, os humanistas, que cultivaram de forma erudita esse gênero de escrita, quanto pelos agentes das navegações oceânicas, que ligaram partes longínquas do globo criando rotas em que circulavam papéis dos mais variados tipos. As relações entre os funcionários régios na colônia portuguesa e a Coroa em Lisboa ocorriam por meio de papéis enviados nos navios, como os regimentos e outros gêneros de documentos, e cartas que tratavam do governo do território, como as escritas pelos governadores-gerais, por exemplo. Conhecemos também missivas redigidas por mercadores, com análises do território do ponto de vista do comércio e das oportunidades de negócios, cartas jesuíticas, escritas para serem divulgadas e logo publicadas, e diversos tipos de trocas de informações sobre os territórios atingidos pelos europeus; epístolas escritas no Congo, no Japão, no Brasil, na Índia etc.

Outros membros da tripulação de Pedro Álvares Cabral enviaram cartas escritas na Bahia ao rei de Portugal, D. Manuel, mas as únicas que chegaram até nós foram a de Pero Vaz de Caminha e a do mestre João, um cosmógrafo, que desenha a mais antiga representação conhecida do Cruzeiro do Sul. O outro texto escrito por um integrante da viagem, o Relato do piloto anônimo, não foi produzido no Brasil mas no final da navegação, quando voltam da Índia para Lisboa. Caminha declara na carta que não vai discorrer sobre navegação ou aspectos técnicos e científicos, porque tais dados constavam nas cartas que pilotos e capitães haviam preparado. O objeto de seu texto é outro. Ele esmera-se em descrever os povos que encontra. São descrições visuais de homens e mulheres, das ornamentações corporais, e também dos artefatos que ali encontrou, verdadeiros quadros em movimento, pintados por sua expressiva narrativa. A carta tem uma estrutura interessante porque é composta por trechos do diário de bordo, sendo uma espécie de colagem de passagens do diário, seguindo cronologicamente, dia a dia, e contendo também seções específicas do gênero carta, como a introdução e a petição final.

Descolonize o descobrimento do Brasil, de Baniwa
Descolonize o descobrimento do Brasil, de Baniwa

Editora da Unicamp: Por que é importante ler a carta de Pero Vaz de Caminha?

Sheila Hue: A carta foi escrita em 1500 e enviada ao rei, a quem era destinada. Ao contrário de outras cartas que mencionam o “descobrimento” do Brasil, a de Caminha não foi publicada no século XVI, nem nos seguintes. Foi somente no século XIX que a carta foi editada num livro, em 1817, transcrita em um longo rodapé, atravessando 22 páginas. Depois da independência do Brasil, ela ganha outro estatuto. Capistrano de Abreu cunha uma expressão que terá vida longa e que marcará a interpretação da carta: o documento escrito por Caminha seria a “certidão de nascimento” do Brasil. Esse é o lugar simbólico que ela ocupa e ocupou desde o século XIX. Muitas foram as interpretações e apropriações culturais e políticas da carta, que foi lida como um emblema da conciliação entre os povos indígenas e os europeus, imagem reproduzida na literatura e na pintura, como na sempre presente Primeira missa no Brasil de Victor Meirelles, de 1860, e constante nos livros didáticos até hoje. Em nossa edição da carta, incluímos uma releitura contemporânea do quadro oitocentista A primeira missa, de Luiz Zerbini, tela de 2014, e uma figura de Pedro Álvares Cabral, de Denilson Baniwa, intitulada Descolonize o descobrimento do Brasil, de 2017, que dialogam com o documento de 1500. A carta de Caminha, por sua centralidade nas representações e discussões sobre a identidade nacional, pode ser um interlocutor produtivo para a discussão de questões hoje agudas, como o descontrole da mineração ilegal, a devastação da Amazônia, os constantes ataques armados a povoações indígenas e mesmo os recentes crimes contra meninas e mulheres indígenas.

Editora da Unicamp: Como a carta de Pero Vaz de Caminha dialoga com outras cartas da época? Que elementos narrativos o autor usou que são característicos desses escritos do século XVI?

Sheila Hue: Caminha era um membro da alta burguesia letrada, herdou do pai um importante cargo, era cavaleiro do rei e foi nomeado para escrivão da primeira feitoria portuguesa na Índia, de onde grandes lucros eram esperados e onde viria a falecer ainda em 1500. Era um funcionário régio versado nas artes da escrita, sabia fazer, como se dizia na época, uma pintura com as palavras, trazendo as coisas descritas diante dos olhos do leitor. A extraordinária capacidade narrativa de Caminha torna sua carta uma singularidade no conjunto dos documentos relativos à viagem de Cabral. É um texto, ainda hoje, belíssimo. Outra peculiaridade é uma certa intimidade demonstrada entre o autor da missiva e o rei, evidente em passagens com duplo sentido de cunho erótico. Na verdade, comparado com outros documentos do período, é um documento muito singular, também pela ironia empregada nas narrativas de interações e mal-entendidos entre os navegadores portugueses e os habitantes da terra.

Editora da Unicamp: A ameaça à existência indígena é institucional e constante, como o avanço do PL 490 evidencia. A carta de achamento e as tensões culturais nela presentes dialogam com o nosso presente? A que reflexões a leitura de Carta de achamento do Brasil pode levar?

Sheila Hue: Caminha sublinha, em sua narrativa dos contatos entre os portugueses e os indígenas, a desigualdade das intenções e expectativas. Num determinado momento, afirma: “são muito mais amigos nossos do que nós deles”. O mercantilismo capitalista europeu era totalmente estranho à cultura tupi. O que o “povo da mercadoria”, como designa Davi Kopenawa em A queda do céu, entende como terras a conquistar para o rei e para a expansão da religião católica representa a invasão do território para os povos indígenas que estavam ali havia milhares de anos. Caminha ainda não descreve a violência colonial que se sucederia e que hoje parece mais do que nunca presente nos constantes atentados contra as populações indígenas e nos muitos projetos de lei que visam minar direitos e promover a devastação. Não descreve, mas anuncia. Desta forma, a leitura da carta pode ser um importante instrumento de reflexão sobre o nosso presente e as possibilidades de futuro, num contexto político tão grave como o que vivemos hoje.

Por outro lado, hoje, podemos “ouvir” na carta de Caminha os discursos silenciados ou não entendidos, como a exuberante arte plumária, a oratória dos antigos tupis, e a pintura e a ornamentação corporal. Na capa de nossa edição pudemos contar com desenhos de padrões gráficos ancestrais, parte do trabalho Fome de Resistência do artista Jonathas de Andrade com um coletivo de mulheres Kayapó, com o apoio do Instituto Kabu, realizado em 2019. Os desenhos são “pata de lacraia” e “tamanduá”, pintados respectivamente por Ngreboj e Ireranti sobre mapas históricos do território demarcado.

Serviço: 

Título: Carta de achamento do Brasil

Autor: Pero Vaz de Caminha

Organizadora: Sheila Hue

ISBN: 978-65-86253-82-5

Edição: 1a

Ano: 2021

Páginas: 136 p.

Formato: 18 x 10,5 x 1,5 cm

Saiba mais informações na página da Editora da Unicamp. 

Imagem de capa JU-online
A primeira missa, de Zerbini e primeira missa no Brasil, de Meirelles, respectivamente

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