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Descobrindo a aura de positividade da literatura

Marcos Natali traz reflexões acerca das demandas feitas à literatura, examinando sua relação conflituosa com os direitos humanos, a sala de aula, as discursividades indígenas, o luto, o racismo, a loucura e a violência

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Ao ser encoberta por uma aura de positividade, a literatura deixa de estar em questão e passa, assim como a democracia, a ser sinônimo de segurança e garantia. Em A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária, Marcos Natali traz reflexões acerca das demandas feitas à literatura e sua resposta – ou recusa de resposta – a elas, examinando sua relação conflituosa com os direitos humanos, a sala de aula, as discursividades indígenas, o luto, o racismo, a loucura e a violência.

Marcos Natali concedeu entrevista para a Editora da Unicamp para falar de seu novo livro. O autor é livre-docente da USP, onde ensina Teoria Literária e Literatura Comparada e desenvolve pesquisas sobre a literatura latino-americana contemporânea, teoria pós-colonial e a relação entre literatura e ética. Natali detalhou alguns pontos de A literatura em questão.

Editora da Unicamp: O título do livro sugere que a literatura passa por um momento de redefinições. O que ocorreu no processo histórico de formação da disciplina para chegarmos a esse contexto teórico?

Marcos Natali: A ideia de que a literatura estaria “em questão” não é nova, e a formulação que aparece no título, e é retomada nas primeiras páginas do livro, vem do texto “A literatura e o direito à morte”, publicado pelo escritor francês Maurice Blanchot em 1948. Blanchot sugeria que a literatura “começaria” (em um início que não é cronológico ou histórico) no momento em que se torna uma questão, definindo esse “estar em questão” (em disputa, em tensão, em dúvida) como a condição de possibilidade da literatura. Admitindo o potencial da hipótese, que associa literatura e indeterminação, os capítulos reunidos no livro, em vez de enfatizarem situações em que a literatura, ameaçada e em perigo, precisaria ser “defendida” (ainda que se reconheça que essas ocasiões também existem), vão se ocupar de cenas em que as circunstâncias parecem exigir uma postura diferente da mera defesa da literatura, cenas que parecem recomendar ao menos alguma hesitação, inclusive para que seja possível reconhecer a heterogeneidade das demandas que são feitas à literatura, nem todas ilegítimas. O interesse, sinalizado no título, será por conjunturas em que a literatura deixou de estar em questão, tornando-se sinônimo de segurança e garantia. A proposta, então, é que aquilo que é necessário pensar no processo histórico de formação da disciplina é também como chegamos a contextos teóricos em que a palavra literatura serve para atenuar a energia crítica presente em alguns debates contemporâneos, como a que se nota em torno de discussões sobre o antirracismo, o feminismo, os direitos indígenas e a descolonização, debates que colocam em questão o imaginário que inclui a crença na possibilidade infinita de inclusão e a confiança na possibilidade da assimilação da alteridade sem atrito ou restos.

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Editora da Unicamp: A respeito do subtítulo da obra, sobre a responsabilidade da instituição literária, o que você entende por “instituição literária” e pelo que ela estaria sendo responsabilizada?

Marcos Natali: A estranha expressão “instituição literária” vem da obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida, em que é associada imediatamente ao problema da responsabilidade. É peculiar, na longa história de discussões sobre a literatura, o modo como Derrida contorna tanto o elogio automático à literatura quanto a sua simples denúncia. Exemplos de um ou de outro – celebrações ou censuras do literário – encontramos em muitas obras e tradições, mas meu interesse pela formulação de Derrida vem da maneira como ele insiste que a recusa, por parte da literatura, a responder e se justificar diante dos poderes constituídos pode ser tanto transgressora (pode ser até uma “forma elevada de responsabilidade”, ele diz) quanto conservadora. E desdobrando mais uma vez o dilema, a literatura pode vir a ser conservadora naquilo que ela tem de institucional ou, ao contrário, naquilo que há nela de anti-institucional; da mesma forma, a literatura pode ser subversiva quando recusa a institucionalização ou quando a busca ou reafirma. Esse quadro intrincado e incerto não permite grandes generalizações sobre a desejabilidade do literário, exigindo atenção às particularidades e contradições de cada caso para poder chegar a uma avaliação dos modos como cada obra responde ou se recusa a responder, e a quê. Não é, talvez, um lugar muito confortável para se estar. Mas a reivindicação de segurança, a reivindicação de que se garanta, de uma vez por todas, o valor, a ética, a desejabilidade e a especificidade da literatura, caso fosse atendida, seria também a possibilidade da neutralização de qualquer energia crítica que pudesse ainda vir dela, agora anulada e circunscrita como “mera” ficção.

Editora da Unicamp: Em que medida a ideia de "responsabilidade da instituição literária" afeta a seleção e a análise dos autores e obras presentes no livro?

Marcos Natali: Os autores mais comentados no livro – os escritores José María Arguedas e Roberto Bolaño, além de Derrida e Mario Bellatin – têm em comum a dúvida em relação ao tom piedoso às vezes encontrado em referências à literatura, sobretudo quando essa, de modo semelhante àquilo que acontece com certa concepção de democracia, é vista como uma forma de justiça já conquistada, precisando agora apenas de proteção e preservação. Em Arguedas, por exemplo, um escritor peruano que publicou romances, contos, poemas e estudos antropológicos dos anos 1930 aos anos 1960 do século passado, a hesitação diante da literatura, rara entre escritores que eram seus contemporâneos, origina-se na desconfiança em relação à possibilidade de o conflito cultural nos Andes ser resolvido através da mescla, em alguma versão de literatura regional ou nacional, interpretada por ele como a exigência da inserção subalternizada do indígena em formas e cosmovisões modernas. Nesse sentido, a categoria literatura tinha uma lógica próxima da do imaginário nacionalista do período, uma forma que se acreditava que seria capaz de receber conteúdos de diferentes tipos e origens, tendo como premissa sua suposta neutralidade. O caminho que percorre o chileno Bolaño para chegar à indecidibilidade diante do literário é muito diferente, não passando pela questão da diferença cultural. Nesse caso, ela surge da recusa da dissociação entre literatura e mal, em uma prática escrita que se forma nas últimas décadas do século XX a partir da percepção da persistência da violência em contextos pós-ditatoriais.

Editora da Unicamp: Na quarta capa do livro, o professor Alfredo César de Melo faz uma provocação: "e se a literatura, que o establishment dos estudos literários tanto reverencia, servir de engrenagem para injustiças, preconceitos e violências simbólicas? O que fazer com a constatação de que muitas vezes a instituição literária sufoca outros modos de produzir cultura ou até mesmo outros modos de estar no mundo?" Como você responderia a essas questões?

Marcos Natali: Pode parecer estranho que essas colocações críticas, que ecoam preocupações que são também as do livro, apareçam em um estudo sobre literatura, em um texto dirigido em parte a quem se interessa por literatura, em diálogo com pessoas que se dedicam a acompanhar e estudar literatura. Mas, por isso mesmo, pareceu-me importante que uma parte do experimento mental que é o livro envolvesse a pergunta sobre a possibilidade de que os estudos literários em determinadas situações pudessem ser um obstáculo ético e político, e não uma solução. Ao levar a sério essa possibilidade, a literatura acaba ocupando, em diferentes trechos do livro, o lugar de antagonista, o que é compreensível se pensarmos que é a ela – a certa ideia de literatura – que o campo recorre em momentos de incerteza e crise. O exercício é semelhante, acredito, ao esforço de reflexão a respeito dos próprios pressupostos que acontece periodicamente em qualquer área do conhecimento, e que também acontece o tempo todo na teoria literária. No entanto, haveria um estudo comparado a ser feito sobre as exigências específicas de fidelidade que caracterizam a teoria e a crítica literárias, em contraste com as lealdades mais claramente em disputa em outras disciplinas (penso, por exemplo, na Antropologia). Entender isso exigiria compreender melhor essa reverência ao literário de que fala o Alfredo César de Melo, uma reverência que, de resto, não é simples, pois inclui gestos ambivalentes que neutralizam aquilo que elogiam e elevam.

Editora da Unicamp: Em geral, a literatura é recoberta por uma aura de positividade, mas o livro mostra uma relação conflituosa entre a literatura e questões caras ao nosso tempo como o racismo e os direitos humanos. Você poderia comentar essa relação?

Marcos Natali: A aura difusa de positividade que recobre a literatura, tanto em textos especializados quanto em certo senso comum (embora, nesse, talvez menos hoje em dia do que há algum tempo), diminui nossa disposição para calcular o custo da fidelidade à instituição literária. Essa fidelidade – e a exigência da performance pública da lealdade – tem uma série de consequências práticas, começando pela demarcação das fronteiras da área (decisões sobre currículos, concursos e processos seletivos etc.), e epistemológicas (gerando aquilo que mais de uma geração de pensadores vai chamar de “resistência à teoria”).

Traz também desafios específicos para a reflexão sobre práticas e demandas que não têm a literatura como ponto de chegada. No caso específico de debates sobre a relação entre racismo e representação estética, o livro dedica um capítulo a Monteiro Lobato, especialmente ao debate público sobre as denúncias de racismo dirigidas à obra do autor em 2010. Aqui também o foco vai concentrar-se naquilo que a discussão revelou sobre a extensão e variedade das forças que se organizaram em defesa da instituição literária, apesar dos deslocamentos que estão acontecendo, dentro e fora do campo do estudo universitário da literatura (mais fora do que dentro), na reflexão sobre o racismo que estrutura a injustiça brasileira. Alguns desses posicionamentos expunham a preocupação de que a esfera da estética pudesse ser submetida a considerações éticas ou políticas, definindo essa possibilidade como uma espécie de risco existencial para a literatura, sugerindo não só a crença continuada na oposição estética/ética como a suspeita de que a literatura não sobreviveria sem ser soberana.

Seria possível imaginar ainda outra forma de desenvolver a reflexão sobre o racismo na área, uma que não colocasse em dúvida, desde o princípio, a legitimidade da pergunta sobre o racismo de uma obra ou até do pensamento de um autor, e aproveitasse, inclusive, ferramentas desenvolvidas pela teoria literária ao longo dos tempos. O racismo poderia até ser entendido nesse caso como uma espécie de gênero literário, uma ficção que, apesar da “ausência” de referente (a ideia de “raça” sendo uma criação do racismo), tem consequências concretas variadas no mundo. Mas com isso já estou entrando naquilo que é uma tarefa por vir.

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Editora da Unicamp: O livro traz discussões que fazem repensar os modos de ver a literatura. Quais são suas propostas para renovar as disciplinas dos estudos literários e da história literária?

Marcos Natali: Se propostas e colocações prescritivas não estão inteiramente ausentes no livro, elas têm peso menor, acredito, do que a busca de formulações mais difíceis e matizadas para representar alguns dilemas que atravessam o contexto teórico contemporâneo. Ainda que decisões – sobre a disciplina, sobre a área – precisem ser tomadas, há um esforço que é talvez anterior ou paralelo à tomada de decisão, e que passa por permitir que alguns antagonismos e atritos se desenvolvam mais, revelando o que está em jogo nas diferentes posições disponíveis e, além disso, quais posições ainda não haviam sido imaginadas.

Em relação à história literária, imagino que as discussões revisitadas pelo livro poderiam levar a uma reavaliação das consequências de ter a literatura como télos, nosso horizonte teórico e político. Em obras importantes da crítica literária latino-americana do século XX que o livro analisa, sobretudo textos de Ángel Rama e Antonio Candido, o que encontramos não é apenas uma descrição (antropológica ou historiográfica) da constituição e expansão da instituição literária, processo que incluiu a subordinação de outras práticas discursivas e cosmovisões. Como observou o crítico Alberto Moreiras, conceitos como transculturação e super-regionalismo não são a denominação de processos evolutivos naturais; são já uma forma engajada e interessada de representação dos conflitos culturais da região, identificando a mescla e a assimilação como objetivos a serem alcançados. Por tudo isso me pareceu importante dar atenção aos custos desse processo, isto é, para tudo aquilo que precisou ser marginalizado, subordinado ou excluído para que a instituição literária se consolidasse.

É possível que algumas dessas esperanças, como a ideia da literatura como mediadora e incorporadora de vidas subalternas, não tenham hoje o mesmo sentido que tinham nos estudos literários de algumas décadas atrás, mas a resistência à discussão sobre o racismo em Monteiro Lobato sugere que de diferentes maneiras persiste a expectativa da soberania da literatura.

Editora da Unicamp: O livro se encerra com um texto ficcional que traz a experiência de uma professora. Em que medida a obra contribui para a reflexão sobre o ensino de literatura?

Marcos Natali: No caso desse último capítulo, a ideia era destacar o estranhamento que acompanha a entrada em sala de aula, tanto no início da experiência docente quanto (se tivermos a sorte de evitar o tédio e a exaustão da repetição e da vida administrada) ao longo dos anos. Há algo de atuação, algo de teatralização, na cena do ensino e minha impressão era que a noção de escrita ficcional, junto às bibliografias sobre o performativo e o lugar de enunciação, poderia ajudar a entender o que há de singular nessa experiência. Como a sala de aula imaginada no texto é uma que se dedica ao estudo da literatura, o exercício acaba sendo também uma maneira de abordar uma questão que aparece formulada em outros termos – como “problema teórico”, talvez se dissesse – nos capítulos anteriores. Em poucas palavras, o ponto é entender como a sala de aula e as instituições de ensino parecem preservar certa imunidade ao trauma que a literatura provoca na língua, quase como se o trauma não lhes dissesse respeito, como se o uso da língua nesses espaços pudesse continuar intocado. Trata-se, aí, de propor que a instabilidade instaurada por textos que costumamos chamar de literários é elucidativa não por nos revelar algo a respeito da especificidade da literatura, mas, na verdade, por explicitar um aspecto do funcionamento geral da linguagem. Outra maneira de colocar essa questão é dizer que, se é comum escutarmos que a literatura não é autobiografia, não é historiografia, não é panfleto, não é sociologia, seria preciso dar um segundo passo e dizer que, em certo sentido, a “autobiografia” também não é autobiografia, a “historiografia” também não é historiografia etc. – se esses conceitos forem entendidos como nomes de espaços discursivos em que o funcionamento da referencialidade é simples e livre de indeterminação.

Serviço: 

A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária

Autor: Marcos Natali

Editora da Unicamp

ISBN: 9786586253443

1a edição, 2020

Formato: 23x16 cm

280 páginas

R$ 60,00

Imagem de capa JU-online
Natali detalhou alguns pontos de A literatura em questão.

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