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A contundente resposta do ex-diretor do Inpe ao presidente da República

Ricardo Galvão afirma que já digeriu sua exoneração e dá uma aula sobre o monitoramento da Amazônia na Unicamp

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Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, em palestra de hora e meia no Instituto de Física Gleb Wataghin
Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, em palestra de hora e meia no Instituto de Física Gleb Wataghin

Oficializada sua exoneração como diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) por conta de um embate com o presidente Jair Bolsonaro, o professor Ricardo Galvão foi contatado de imediato por uma aluna de doutorado: “Estou muito contente no Inpe, que possui o melhor curso de sensoriamento remoto do país [único com nota 7] e tenho aula com um orientador que é chamado de mentiroso pelo presidente. Você não vai fazer nada?”. “Realmente, aquilo me tocou. Porque nós da comunidade científica sabemos que alguém dizer que um cientista mente sobre seus resultados, vai significar o fim da carreira dele. Principalmente se é o presidente da república”, recorda o professor da USP, que esteve na Unicamp para falar sobre “O Inpe e o monitoramento dos biomas brasileiros”, em 31 de outubro.

Ricardo Galvão admite que o baque inicial foi grande, já que nunca esperava, na sua idade, ter de enfrentar o presidente da República. “Quando tomei a decisão de responder de forma contundente, claro que sabia que seria exonerado. Por outro lado, o retorno que tive da sociedade e do meio acadêmico não só do Brasil como exterior, me ajudou a passar por esse período difícil de transição. De certa forma, posso dizer que digeri [a exoneração] e retornei à USP, onde estou refazendo minha vida como pesquisador. Difícil de digerir é o fato de que eu tinha mais um ano de mandato e muitos planos do que fazer.”

Para o ex-diretor do Inpe, seu sucessor, Darcton Policarpo Damião, foi uma escolha inteligente de Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), e não deve prejudicar as atividades de monitoramento. “Quem me substituiu é um oficial reformado da Aeronáutica e, naturalmente, tem bom diálogo com o pessoal do governo. Como fez mestrado no Inpe e doutorado na UnB justamente sobre a ocupação sustentável da Amazônia, entende do assunto e deve ter bom diálogo também dentro do Instituto. Além disso, devido a todo esse embate, o governo não vai querer que o Inpe caminhe para trás agora; vai investir recursos e fazer com que tenha sucesso, acredito nisso.”

Apenas relembrando o embate público, na sexta-feira de 19 de julho, o presidente Jair Bolsonaro acusou Ricardo Galvão de passar dados mentirosos sobre o desmatamento da Amazônia e de estar a serviço de alguma ONG. O ex-diretor do Inpe retrucou no sábado, classificando a atitude do presidente de “pusilânime e covarde”, “uma ofensa de botequim”. Os dados divulgados pelo Inpe davam conta de um aumento de 88% no desmatamento da floresta amazônica em junho, em comparação com o mesmo período de 2018. “Foi muito mais que isso. O que apareceu na imprensa foi apenas a superfície, consequência de algo que começou desde janeiro. Vou falar disso na palestra”, adiantou Galvão.

O docente da USP ressalta que o Inpe continua divulgando os dados sobre desmatamento, como prometeu o novo diretor, seguindo um critério preventivo adotado ainda em sua gestão, para garantir as ações de fiscalização e autuação. “O Ibama continua tendo acesso imediato aos dados de monitoramento, mas eles agora são retidos por cinco dias antes da divulgação na página do Inpe. A medida se justifica porque já no governo anterior, em 2017, o Ministério do Meio Ambiente identificou que grandes madeireiras ilegais contrataram especialistas para acessar os dados e saber se tinham sido descobertos ou não. O acordo foi para que o Ibama tenha tempo de agir contra os madeireiros ilegais.”

Sobre o grave derramamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste, o pesquisador explica que as ações exigidas fogem da competência do Inpe, que tem todos os satélites voltados para o monitoramento da Amazônia e outros biomas brasileiros. “O órgão segue a tarefa de observação da terra. Seus satélites ópticos tiram fotos que registram cada tipo de solo conforme a reflectância (cor e intensidade diferentes). No mar é muito mais difícil devido às mudanças de cores e, para detectar manchas de óleo, deve-se utilizar principalmente o satélite de radar, de abertura sintética, capaz de penetrar na água e medir as diferenças.”

Segundo Galvão, o Brasil não possui satélites de radar, mas poderia acessar os de outros países enquanto membro do consórcio internacional Charter. “O governo deveria ter solicitado ao Inpe e não o fez, demorou 41 dias para tomar qualquer atitude. Em incidentes como derramamento de óleo ou erupção, um país pode acionar os outros membros para que disponibilizem imediatamente as imagens de seus satélites para aquele evento. Ao que me consta, o governo não acionou, mostrando inépcia em tratar de desastres naturais, sem saber como deve operar. De qualquer forma, seria complexo, já que mesmo o satélite de radar, ao passar por uma área do oceano onde não se espera por fenômenos, ele deixa de tomar os dados, pois seria em quantidade imensa e difícil de armazenar.”

Nem esquerda, nem direita

Em sua palestra no auditório lotado do IFGW, Ricardo Galvão exibiu um gráfico que considera a melhor série temporal de medidas de desmatamento de florestas tropicais do mundo, com margem de acerto de 95% e que o Inpe começou a desenvolver em 1988. No eixo vertical é marcada a área desmatada por mil quilômetros quadrados, enquanto nas barras de valores está sobreposto um tracejado marcando as médias no período entre 1995 e 2005. “Aos alunos que acham que os ataques vêm de um governo capitalista, a primeira coisa que digo é que a ciência não pertence a nenhuma ideologia política, assim como a burrice não pertence a nenhum partido político, todos têm um pouco.”

O docente da USP aponta no gráfico o grande pico de desmatamento de 29.100 km2 em 1995, no governo Fernando Henrique, e um segundo pico de 27.600 km2 em 2004, no governo Lula. “Só que em 2004 tínhamos como ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Ao contrário desse governo, que desde que tomou posse nunca dialogou com o Inpe, Marina foi até nós, interessada no sistema Prodes [Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite], que fornece a taxa de desmatamento anual no país – mas que de nada serve para as ações do Ibama, pois o desmatamento já ocorreu. Daí, a ministra ter sugerido um sistema que desse o alerta diário das áreas que estão sendo desmatadas.”

O Inpe desenvolveu então o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), que conforme Galvão serviu como base para seu embate com o governo. “Foi com o Deter que Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira reduziram a taxa de desmatamento em quase 80% até 2012, para pouco mais de 4.500 quilômetros quadrados; sistema que, segundo o ministro Ricardo Salles, não funciona. Mas sabemos que no próprio governo Lula havia embates entre Marina Silva e Dilma Rousseff sobre o desmatamento da Amazônia, principalmente ligados às duas hidrelétricas. Depois que Dilma assumiu, as ações do Ibama arrefeceram e o desmatamento recomeçou a crescer, chegando no ano passado a 7.500 km e devendo ficar esse ano na ordem de 10.000 km.”

O ex-diretor do Inpe lembra que, embora Bolsonaro tenha-lhe negado uma conversa pessoal, sustentou um debate tenso com o ministro Ricardo Salles no programa “Painel” da Globonews em 11 de agosto, sobre a importância de preservar a Amazônia. “Eles dizem que ainda temos muito a desmatar. Em 1500, a Amazônia total tinha da ordem de 6 milhões de quilômetros quadrados e a Amazônia brasileira, cerca de 4 milhões. Desde então desmatamos perto de 20%, mas o problema está na taxa: 11% dos 20% foram a partir de 1988. Todos aqui já ouviram falar do trabalho bastante importante de Carlos Nobre e outros estudiosos: segundo eles, se a Amazônia total for desmatada em mais de 25% a 40%, a tendência de se tornar uma savana é irreversível.”

Rios atmosféricos

Ricardo Galvão adverte ainda que o desmatamento no lado brasileiro não é uniforme, estando concentrado no arco que desce pelo Pará, Maranhão e Mato Grosso – região em que o período da seca já está durando de uma a duas semanas a mais que no resto da Amazônia. “Um vídeo no Youtube de Antonio Nobre (irmão de Carlos Nobre) mostra os famosos rios troposféricos ou atmosféricos. Vemos [no mapa-múndi] que na latitude da Amazônia quase tudo é deserto, mas na região, não. Por que? Por que o principal fluxo de umidade vem do Atlântico e, felizmente, temos os Andes, onde por milhares de anos essa umidade vem batendo, voltando e criando a floresta amazônica. A floresta possui árvores com copas de 10 a 20 metros e cada uma bombeia de 600 a 1.000 litros de água por dia – responde por quase 20% da água bombeada para a atmosfera do planeta. É esta a água que desce até Ushuaia [Terra do Fogo], influenciando a agricultura e todo o regime pluviométrico da América do Sul.”

Uma das muitas razões que o físico pesquisador teve para o forte embate com o governo Bolsonaro – “deu a impressão de que eu perdi a paciência” – está na reportagem da BBC de 25 de julho mostrando a mineração ilegal em terra indígena. “O Inpe tinha dado o alerta em 18 de março, sem nenhuma resposta do Ibama, e em maio demos mais detalhes, como as coordenadas fornecidas pelo Deter, também sem resposta. Falei com o ministro Ricardo Salles nos bastidores do debate [na Globonews] e ele disse que ‘isso é besteira porque precisamos de recursos e é importante extrair nióbio’. O Brasil detém 90% das reservas de nióbio do mundo, para quê tirar mais de terra indígena?”

A insistência do governo no negócio da mineração deixou o professor da USP “com a pulga atrás da orelha”, ainda mais depois que esteve na Amazônia (na semana anterior à palestra na Unicamp) para gravar com uma TV holandesa e conheceu as pesquisas do professor Alfredo Wagner de Almeida e seu grupo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “Eles fazem um trabalho espetacular não só sobre a questão do desmatamento, mas sobre como está a ocupação de terra na Amazônia. Se o governo quisesse fazer uma política de desenvolvimento sustentável para a região nem precisaria do Inpe, porque o que eles têm lá é impressionante.”

Almeida mostrou a Galvão o mapa da confluência do rio Tapajós com a BR-163, formando o triângulo onde ocorreram as queimadas combinadas a partir de 10 de agosto, o “dia do fogo”, sendo que entre abril e junho o Inpe deu pelo menos 15 alertas de desmatamento de grandes áreas naquela região, sem nenhuma ação do Ibama. “No governo Bolsonaro tivemos 7.287 requerimentos de lavras (licenciamentos) em toda essa área. Qual a razão? A rodovia 163 é onde o governo quer construir uma nova ponte ligando ao Suriname – que a equipe de TV holandesa iria visitar exatamente para cobrir as minerações, feitas em quase 90% por chineses. Existe um claro propósito de explorar a mineração na Amazônia – não só a brasileira, infelizmente – e o governo está apoiando essa atividade de forma intensa, falando em injeção de recursos.”

Auditório lotado na Unicamp: confiança na habilidade dos alunos nas redes sociais para divulgar a ciência
Auditório lotado na Unicamp: confiança na habilidade dos alunos nas redes sociais para divulgar a ciência

Defesa da ciência como tema

O ex-diretor do Inpe concedeu uma palestra de praticamente hora e meia, com interrupções para goles d’água – “ainda me emociono, mas não choro mais” – quando recordava dos ataques ao órgão e seus pesquisadores, e principalmente da solidariedade da comunidade científica nacional e internacional, bem como da sociedade civil. “Fiquei preocupado com esses ataques que começaram mesmo antes da posse do governo, com declarações de Bolsonaro sobre ‘xiitas ambientalistas’ e fiscais que queriam apenas tomar dinheiro.”

Em 15 de janeiro, prossegue Galvão, o ministro Ricardo Salles fez pesadas críticas ao sistema de alerta do Inpe e, em 31 de março, anunciou a intenção de comprar o sistema da Planet. Veio o dia que o professor define como fatídico, 2 de julho, quando o general Augusto Heleno [chefe do Gabinete de Segurança Institucional, GSI] declarou à BBC que os dados sobre o desmatamento eram manipulados. E ainda houve o discurso do presidente na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 24 de setembro, negando que o desmatamento na Amazônia está acima da média.

O docente da USP ressalta como contrapartida o apoio imediato da comunidade acadêmica e científica do Brasil, e também de inúmeros pares no exterior, que inclusive compilaram dados da Nasa e da Agência Espacial Europeia para confirmar as informações do Inpe. “Colegas advogados da USP perguntaram se eu queria entrar com uma representação contra o presidente. Mas não deixemos que convicções políticas e ideológicas turvem os nossos olhos quando temos que defender a ciência – fui ver as muitas mensagens boas que me animaram para esse tema. Também fui ver a razão deste obscurantismo moderno. Antes, obscurantismo envolvia posições religiosas extremadas que se opunham à ciência; agora temos um negacionismo que se opõe a resultados científicos. Estamos de volta às trevas.”

Ao se perguntar se haverá uma resposta também da sociedade, Ricardo Galvão, ainda que considere que “as redes sociais são do demo”, deposita sua confiança na habilidade dos alunos nestas ferramentas para que façam uma divulgação científica melhor. “No Metrô de São Paulo, uma senhora com seus 70 anos me abordou de celular ligado, não para uma foto, mas para gravar: ‘Queria agradecer pela posição que teve em defesa do ambiente e da Amazônia. Porque para mim, paulistana, a Amazônia era um matinho no norte do país que nada tinha a ver comigo. O que aconteceu me fez abrir os olhos para a importância de preservarmos o nosso meio ambiente. Comecei a ler a respeito e, tanto no meu trabalho, como na minha paróquia, fiz dois grupos de trabalho para, nas redes sociais, mostrar aos políticos que a sociedade brasileira, sim, se preocupa com isso.”


QUEM É

Ricardo Magnus Osório Galvão completa 49 anos de serviço público no próximo ano. Iniciou a carreira científica no Inpe em 1970, mas passado um ano veio para o mestrado na Unicamp, onde permaneceu como professor no Instituto de Física Gleb Wataghin até 1982. Obteve livre-docência em 1983 pelo Instituto de Física da USP (1983), ao qual ainda está vinculado. Fez doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pós-doutorado na FOM-Rijnhuizen da Holanda. Dirigiu o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) de 2004 a 2011 e presidiu a Sociedade Brasileira de Física (SBF) de 2013 a 2016. É membro do Conselho da Sociedade Europeia de Física e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Teve passagens pelo Centro Técnico Aeroespacial (CTA) entre 1982 e1986 e pelo próprio Inpe entre 1986 e1991. Em 2016 foi eleito pelos pares para a direção do Inpe com mandato até 2020.

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: em auditório, imagem em plano médio e em perfil, homem em pé, à direita na imagem e com olhar voltado para a esquerda, fala durante apresentação de data show projetada em ampla tela, ao fundo. A imagem no data show traz um funcionário do Ibama, de costas, com colete, chapéu e camisa de mangas compridas, em área ao ar livre e com mata ao fundo e várias toras de árvores de grande porte. O homem que apresenta o data show veste terno preto e gravata, e tem sombra projetada na tela. Imagem 1 de 1

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