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Mariléa (re)visita quilombos

Historiadora fez cerca de 50 entrevistas para mostrar o protagonismo feminino em 17 “territórios de afetos”

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Reprodução

Mariléa lembra Marielle Franco não apenas no jeito parecido do nome, mas no sorriso escancarado e na forma certeira como usa as palavras, como demonstrado no trecho acima. Ambas negras e preocupadas com os temas que afligem a população mais vulnerável do Estado do Rio de Janeiro: aquela que vive nas favelas ou em remanescentes de quilombos. No mesmo dia em que Mariléa dava esta entrevista (14 de março) ao Jornal da Unicamp, Marielle seria assassinada.

Mariléa de Almeida é autora da tese “Território de Afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ela percorreu 17 quilombos do Estado do Rio de Janeiro e realizou cerca de 50 entrevistas com o objetivo de conhecer as práticas políticas, sobretudo ligadas ao universo feminino e quilombola, presentes nas comunidades. A pesquisa foi orientada pela professora Margareth Rago.

Foto: Perri
Mariléa de Almeida, autora da tese “Território de Afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro”

A autora da tese detalha que territórios de afetos não são definidos pela identidade jurídica quilombola, mas pela relação que se estabelece com o lugar e com aqueles que nele vivem. “Trata-se de uma atitude política que privilegia os usos de saberes como forma de ampliar espaços de subjetivação, constituídos por meio de deslocamentos de sentidos que lideranças femininas quilombolas realizam em relação aos efeitos das exclusões de raça, de classe ou de gênero que afetam seus corpos e os territórios de suas comunidades”. 

O trabalho recorre ao termo afeto no caminho aberto por Spinoza, ou seja, como “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”, acrescenta a pesquisadora.

O ponto de partida para a investigação desenvolvida na tese foi a leitura de relatórios de identificação antropológica, documentos usados durante o processo jurídico de reivindicação de terras. Mariléa percebeu que, apesar de haver a presença constante de mulheres e de práticas culturais relacionadas ao campo do feminino, a literatura que tratou sobre a ressemantização do termo quilombo, durante a década de 1990 e início dos anos 2000, não enfatizou a dimensão de gênero no processo de construção dos significados sobre os territórios das comunidades negras rurais que reivindicavam o direito territorial.   

Para a autora, as práticas atribuídas à cultura feminina, como o cuidado por meio dos usos de ervas medicinais,  práticas religiosas, entre outras, mobilizaram na década de 1990 novos significados sobre o termo quilombo, que tradicionalmente foi construído sob a ideia de guerra, virilidade e força.  

Segundo Mariléa, isso não quer dizer que os homens não partilham dessas experiências em torno do cuidado e da transmissão dos saberes, mas a autora sugere que existe uma tecnologia política, que é feminina e fundamental para a sobrevivência das famílias nos territórios, que é a do cuidado. “Isso é extremamente político, sobretudo se você observa os índices de desenvolvimento dentro das comunidades quilombolas”.

De acordo com a historiadora, no quilombo geralmente não chega escola ou assistência médica. “Os dispositivos racistas de exclusão são muito mais perversos dentro das comunidades quilombolas. Os índices de desenvolvimento são alarmantes do ponto de vista do acesso à política pública”.

As práticas de cuidado, explica, envolvem transmissões de saberes, sejam relacionados a ervas medicinais, religiosidade ou práticas culturais. “Uma série de tecnologias que obviamente não são capazes de frear uma estrutura racista, mas foram fundamentais para tentativa de manutenção da vida nessas comunidades”.

Direito

Apenas na Constituição de 1988 foi reconhecido o direito quilombola aos territórios remanescentes. Segundo dados disponibilizados no site da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), não há um consenso acerca do número preciso de comunidades quilombolas no país. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) calculam atualmente 2.847 comunidades certificadas no Brasil. Há 1.533 processos abertos.

O número de comunidades certificadas não é maior, defende Mariléa, por causa da burocracia, uma das expressões do racismo, conforme a autora. “Até a década de 1980 o modelo de quilombo era pensado numa perspectiva muito próxima do imaginário relacionado ao Quilombo dos Palmares, ou seja, um refúgio de negros com uma certa homogeneidade étnico racial, local de resistência e de enfrentamento guerreiro e bélico contra o sistema”. Por conta de uma noção equivocada, acreditava-se que havia pouquíssimos quilombos no Brasil.

Porém, grande parte das comunidades que se formaram e que podem ser chamadas de quilombos ou mocambos se constituíam por redes que não eram isoladas, acrescenta a pesquisadora. “Com a emergência do direito quilombola, várias comunidades negras rurais começam a reivindicar seu direito territorial. Entretanto, a trajetória dessas comunidades não convergia com a concepção tradicional de quilombo”.

Algumas se constituíram a partir da doação de terras de maneira formal ou informal, pré ou pós-Abolição. Outras são ocupações de terras devolutas. “Todos os grupos têm em comum algumas características. São grupos de parentesco que têm uma relação campesina com a terra. Essas formações constituem as novas comunidades quilombolas. Na década de 1980 o conceito de quilombo não dava conta das inúmeras experiências e singularidades das comunidades”.

Mariléa destaca que o direito territorial na Constituição foi conseguido via mobilização das comunidades negras rurais. “Foi a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu o peso do racismo em termos estruturais para a reversão das condições das comunidades quilombolas”. Mas o modelo racista permanece nas práticas jurídicas, segundo aponta a tese. A autora usa o termo governamentalidade racista para traduzir como se articula o impedimento do acesso à terra e às políticas públicas como um todo.

A tese defendida por Mariléa é a de que essa governamentalidade racista se exprime de três formas: a burocracia extrema, a exotização dos corpos e práticas culturais e o acesso muito precário às políticas públicas. Em outras palavras, são criados mecanismos para perpetuar as desigualdades.  “Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, para conseguir a terra, as comunidades deveriam comprovar uma permanência de 100 anos, o que representa uma ilegalidade até do ponto de vista jurídico. O acesso à terra é dificultado”.

Segundo Mariléa, a perda do território representa do ponto de vista simbólico a perda de uma série de saberes, identidades e valores. “Estamos falando de uma morte de epistemologias, morte de conhecimento”.

A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva há mudanças significativas, com a criação do programa Brasil Quilombola, extinto pelo governo de Michel Temer. “Houve avanços nas políticas públicas, mas não muito na regulamentação das terras”. Nesta seara, afirma, o que há são “embates de particulares e órgãos governamentais, donos de empresas, e latifundiários contra comunidades negras rurais com altíssimos índices de analfabetismo”, comenta.

Além da burocracia que dificulta a obtenção dos títulos de posse da terra, a governamentalidade racista se exprime na exotização dos corpos e práticas culturais. A autora ressalta que as práticas como o jongo, por exemplo, encerram determinados valores e visões de mundo que se contrapõem aos valores capitalistas da sociedade contemporânea. “Quando exotizados, os valores são esvaziados e a prática cultural é transformada em um produto para deleite dos turistas”.

A terceira forma da governamentalidade racista descrita na tese diz respeito ao limitado alcance das políticas públicas. “Quando os homens são mortos pela bala, alcoolismo ou condições precárias de trabalho, veremos a importância das mulheres para a estruturação dessas famílias, muito embora quem apareça para a história seja Zumbi e não Dandara ou Aqualtune”, exclama a autora, referindo-se a Dandara, que foi casada com o líder Zumbi dos Palmares, e Aqualtune, sua avó materna.

Mariléa chama a atenção para as micropolíticas que se dão no cotidiano das comunidades, como ter de lidar com uma cerca que está alcançando o território. Dos quilombos visitados no Rio de Janeiro, a pesquisadora narra algumas dessas experiências. Na comunidade de Sacopã, é uma feijoada com samba que tira o sono dos vizinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas. São os embates diários ainda, das comunidades de Campinhos da Independência, em Paraty, com o condomínio que dificulta o acesso à parte da orla e a pesca de subsistência, ou no Quilombo da Tapera, em Petrópolis, onde a construção de outro condomínio obriga os quilombolas a atravessar uma cancela para chegar em casa. “A tragédia maior é que muitos moradores trabalham como empregadas domésticas, caseiros e jardineiros no próprio condomínio. Quando acaba a pavimentação começa o quilombo”. Um passado escravocrata que nunca termina.

 

Quatro personagens

Foto: Aaron Jaekel (2016)
Marilda de Souza Francisco, 52 anos, do quilombo do Bracuí (Angra dos Reis), contadora de histórias e divulgadora da história local da comunidade | Foto: Aaron Jaekel (2016)

 “[...] a nossa luta continua sendo pela conquista da terra e o fortalecimento da comunidade, das pessoas, tipo educação mesmo, autoestima, porque nós negros temos muita baixa estima pelo que aconteceu nos tempos passados”.

 

Foto: Aaron Jaekel (2016)
Fabiana Ramos, 31 anos, do quilombo do Bracuí, licenciada em educação do campo pela UFRRJ e militante da educação quilombola. Foto: Aaron Jaekel (2016)

“[...] quando comecei a fazer a prova, eu achei que não ia passar. Tipo assim: eu não vou conseguir passar na Federal. Na verdade, o nosso psicológico dentro de uma escola pública não é de autoestima. Ele baixa a estima total. Então assim: gente não foi trabalhado”.

 

Foto: Aaron Jaekel (2016)
Laura Maria dos Santos, 57 anos, do quilombo de Campinho da Independência (Paraty), pedagoga, jongueira e militante da educação diferenciada | Foto: Aaron Jaekel (2016)

“Eu fui para escola só com nove anos de idade. Eu adorava estudar. Meu primeiro dia na escola é o dia que eu mais me lembro. Eu me lembro que eu gostava muito de ler. Lia tudo. Então eu lia aqueles livros todos. Eu me lembro que eu me escondia no porão para ler, porque, se minha tia me pegasse lendo, ela me batia. Na verdade, quando ela disse: 'eu vou dar educação para essa menina', ela queria me ensinar as prendas, mas eu não estava nem aí pra isso. Esse foi o meu primeiro ato de resistência: não querer aprender aquilo que minha mãe [tia] queria que eu aprendesse. Apanhei muito. Você imagina uma criança, no lugar que a gente morava numa periferia, o que eu tinha era o quintal. Uma menina presa, aquela educação muito rígida. Então, eu me lembro que o que eu tinha era o quintal. Ainda bem, o quintal era grande, tinha amendoeira, tinha mangueira, goiabeira”.

 

Foto: Carla Marques (2014).
Terezinha Fernandes de Azedias, 72 anos, do quilombo de São José da Serra (Valença), mãe de santo de um terreiro de umbanda. Foto: Carla Marques (2014).

“O pessoal do jongo foi embora pra São Paulo. No tempo deles, criança não entrava no jongo, só podia dançar na barraca, chegar dentro do jongo não podia. Então, eles foram embora, deixaram o tambu com papai. Aí veio pra cá, mamãe ficou sendo responsável e ela ensinou tudo quanto é criança a dançar”.

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Montagem com fotos, sendo que em primeiro plano, à esquerda, mulher, em imagem de busto e perfil, fala gesticulando com as mãos, mantendo os dedos entrelaçados à frente. Ela usa blusa sem mangas em tom preto. Ao fundo, ocupando toda a imagem, várias fotos com rostos de mulheres, dispostas em retângulos, uma ao lado da outra, semelhantes a fotos tamanho três por quatro. Imagem 1 de 1.

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