NOTÍCIAS

O Livro de Joaquim

Roberto Goto comenta o livro “Nigredo: estudos de morte e dulia”, de Joaquim Brasil Fontes

Autoria
Fotos
Edição de imagem

Ante uma obra de erudito, o que pode o comum leitor senão dispor-se a aprender com ela, esforçando-se e trabalhando por entendê-la e, então, dela tirar proveito na forma de lições? Alguém que pretenda e se lance a comentá-la terá de ser também erudito e, além disso, tão ou mais especializado que o autor na matéria de que trata a obra. Mesmo assim, saberá que o autor estará sempre um passo adiante, invariavelmente capaz de comentar melhor o que ele próprio escreveu.

Nigredo: estudos de morte e dulia, de Joaquim Brasil Fontes, dispensa o leitor dessa preocupação, ao mesmo tempo em que o libera da inibição correspondente, o que não significa que o estimule. É um livro que parece não fazer muito mais que, a todo o momento, comentar a si mesmo – restando saber em que consiste esse “si mesmo”, como diria Veronica Franco, pesquisadora de uma (in)certa Riverkootenay University, que apresenta e comenta os desenhos e papéis deixados por Stephan Wolff, dos quais é curadora. Anterior ao que “se poderia chamar de desmoronamento” do artista (o que a psiquiatria chama de depressão e os antigos denominavam melancholia) a coleção daqueles trabalhos constitui um “sistema que o leitor pode refabular”, escreve ela; mas, acrescenta ao final desse texto introdutório, talvez ela “devesse explicar, antes”, o que entende por “sistema”.

Tanto Stephan quanto Veronica são personagens, o espaço-texto de Nigredo dispondo-se para ambos como o palco e o cenário em que desempenham seus papéis, antes de mais nada e acima de tudo, culturais: ele, o do artista, que desenha e escreve; ela, o da acadêmica erudita, que comenta a obra do primeiro. Não só por trás como também por meio deles está o escritor, em seu papel de encenador – o que significa tanto colocar em cena esses personagens quanto encenar-se neles e por eles. Essa metáfora, aliás, é já sugerida por uma das muitas autorreferências do livro (“O mundo inteiro é um palco”, citando o Shakespeare da peça Como gostais) e conota uma de suas dimensões como um sistema cujas partes aludem e remetem umas às outras, explicando-se e comentando-se mútua e generalizadamente.

O nome Stephan faz eco e remissão a Stephane Mallarmé e, implicitamente, a Santo Estêvão, na medida em que a obra se propõe à dulia, isto é, ao culto de santos e anjos; no mesmo plano, o de Veronica alude a Santa Verônica. Associações e alusões similares – entre os desenhos, os títulos de capítulos, os textos, as citações – dispõem-se à leitura, durante a qual podem revelar-se como fios que tecem e entremeiam o livro, dele fazendo um grande texto, estruturando-o na forma do que a comentadora chama de sistema.

Como personagens, Stephan Wolff e Veronica Franco estão nesse grande texto não só graças ao autor, mas também por ele – são seus representantes, suas metáforas, as duas faces do artista/intelectual, que assim toma para si e sua obra a forma e o caráter ambíguos de Janus, o deus bifronte, e de Saturno, que contempla o passado e o futuro –, o que sugere e projeta outra ordem de associações e alusões, ligando a obra a seus referentes (inclusive os da vida de seu demiurgo), o tecido que ela constitui ao tecido maior da cultura que a envolve. A uma leitura suficientemente abrangente para compreender esse todo – um subsistema no contexto de um grande sistema, diria a comentadora – serão inescapáveis a percepção e a exploração de ambiguidades e ambivalências, dadas e dispostas em variados níveis e instâncias, por uma pluralidade de vozes.

Há, para começar, a franqueza de Veronica e o caráter lupino de Stephan, explícitos em seus patronímicos. “Agouros”, título do primeiro capítulo (o dos desenhos), não só antecipa os capítulos subsequentes (como “Repertórios”), no plano das relações internas do livro, mas também representa e/ou simboliza o período anterior ao “desmoronamento” do artista, prenunciando-o, ao mesmo tempo em que abre uma fresta, deixando alusões à passagem do escritor – o verdadeiro autor dos desenhos e grafismos, com a assinatura jbf – pela depressão. O demiurgo trabalha, no caso, por desdobrar o conteúdo da palavra, entregando ao leitor essa caixinha de Pandora, semanticamente falando: “agouro” significa “predição baseada no voo ou no canto das aves” (daí a presença delas e de outras figuras aladas) e “presságio de coisa má”.    

A mão do erudito mostra-se no trabalho de dar à luz esse mundo de sombras do melancólico. Em torno do sol demiúrgico gravitam os símbolos e emblemas da melancolia, como a figura de Saturno. A erudição, no caso, não recusa a ambiguidade – antes, a admite, assinala e abraça. “Saturno traz na mão direita uma pequena foice, um vestígio, uma cicatriz ambígua do enlace de mitos gregos e latinos”. Pela origem grega, é “Cronos devorando os filhos, o golpe fatal de Zeus, sangue sobre a terra-mãe”. Segundo restos de mitos latinos, “é recebido na Ausônia pelo bifronte Janus, e renomeado; é clara no seu nome, aliás, a raiz satus, sementeira e, na sua lenda, o deus que olha para a frente e para trás, rememora e anuncia”.

A erudição, portanto, preside ao processo. O livro, afinal, compõe-se de estudos. Mas o autor faz mais (e também menos) que praticar a crítica e o comentário – em suma, a metalinguagem. Inverte e extrapola a ordem usual do trabalho acadêmico: se faz o comentário das referências eruditas, é para que elas, na medida mesma em que se prestam a comentar os temas do livro (a melancolia, a morte), atuem como metáforas da vida.  

A metalinguagem em cena é Veronica, por exemplo, comentando os mitos de Saturno; se o leitor recua, vê a cena pela perspectiva do autor, o encenador que coloca a comentadora no palco e que, usando tanto a personagem quanto os mitos como figuras interpostas, comenta o tema da melancolia. Como autorreferência a propósito dessa inversão e da duplicidade de perspectivas pode-se tomar, aliás, o texto “A Melancolia diante do espelho”, que reproduz o quadro Madalena diante do Espelho: vê-se no cristal em que a santa se contempla não o rosto de Maria Madalena, mas o crânio, “reflexo do homem que, exterior ao drama da santa melancólica, inclina-se, cuidadoso, sobre esta gravura antiga, prisioneiro do ponto de vista de Saturno”.

A erudição comanda o processo: isso significa que o erudito é a capa do livro, mas o miolo é a pessoa e o artista, de modo que folheá-lo é ir topando com os refolhos do autor, inclusive no sentido de fingimento, dissimulação, hipocrisia, que remete ao poema de Baudelaire, Ao leitor; inclusive, ainda, em todos os sentidos da palavra “repertório” listados no capítulo que a toma como seu título. E se cada um é seu repertório – isto é, a soma (mas também a subtração, a divisão e a multiplicação) do que leu, do que viveu, do que sofreu, do que soube e sabe, do que sonhou e sonha etc. –, Nigredo é o Livro de Joaquim: suas confissões, o compêndio de sua vida, sua temporada no inferno (da depressão), sua suma teológico-mitológica, seu retrato do artista quando melancólico – livro numa acepção próxima/paralela à daqueles que compõem a Bíblia, a qual, por sua vez, constitui apenas parte da inumerável e incomensurável bíblia que é a cultura, concebida como o vasto tecido em que cada texto é um fragmento.

Como quer a comentadora, os estudos que o compõem devem ou deveriam ter o aspecto de uma série de esboços, “expressão ou interpretação experimental de aspectos ou características de certos seres”, ao que se pode acrescentar a sugestão de uma face composta de livros, como o Bibliotecário de Arcimboldo, aliás citado no mesmo texto (“Mais um outono”). Por outro lado, nada se perde assimilando ao termo o significado musical que Veronica repele de modo bastante ambivalente (pois o faz mencionando que teve a ideia de organizar a série ouvindo o opus 25, número 7, de Chopin, um de seus estudos para piano); ao contrário, a interpretação beneficia-se com uma abordagem que tome textos e palavras como acordes ou clusters de significantes e significados, a exemplo do próprio título da obra, em cujas ressonâncias pode-se ouvir “negro”, “segredo”, “degredo” etc. – um mesmo vocábulo evocando e ecoando as ideias/imagens da negra bílis (a atrabílis que a tradição associa à melancolia) e da segregação e da solidão do melancólico, isolado, como Montaigne, em sua torre de papel.   

Nada disso – nenhum desses materiais ou conteúdos – se dá diretamente, mas sempre mediado pela erudição, sempre na forma de repertório, de cultura. O erudito fabula, mas o faz pondo em cena sua cultura, compondo e expondo a fabulação na forma de comentário cultural, de estudos. A metalinguagem ocupa sempre o centro do palco, é o texto principal, enquanto a narrativa que ela comenta é relegada ao rodapé da página. Porém, uma vez que é dessa narrativa que se trata, no final das contas, o resultado não pode deixar de ser irônico.

A isso acrescenta-se a ironia intencional, a que faz parte do plano da fabulação, perceptível quando o fabulador joga diacronicamente (ou mesmo anacronicamente) com as referências (por exemplo, juntando Hildegarda de Bingen e Machado de Assis) ou quando faz do artista seu duplo, inventando títulos de obras e nomes de editoras: Stephan Wolff como autor de um livro publicado em Campinas por uma certa editora “Pena de Ouro”, ou como tradutor de poemas de Charles d’Orléans, incluídos em livro publicado em São Paulo pela editora “O Barco de Teseu”.

Tudo isso decorre, talvez, da autoironia (ou autoironização) do autor, no papel e na pele do erudito fabulador: para além e aquém do intelectual tradutor e comentador, ele é um aluno – o alumno da merencolia. O arcaísmo e o neologismo dessas palavras são a forma erudita e irônica que a condição humana assume ante a contingência e a morte, para espiar e expiar a depressão, o “desmoronamento” que a visão e a perspectiva delas provocam, suscitando no escritor a aflição e a ansiedade que o levam a suplicar às Parcas, deusas do destino e do tempo de cada um, “mais um verão, mais um outono”. Nigredo não só a incorpora, essa condição de aprendiz, como quer compartilhá-la. O autor, nas pessoas do artista e da comentadora, oferece-se para guiar, como um Virgílio ou um Caronte, andando por um fio da navalha que, como a foice de Saturno, corta e costura caminhos através do texto e do contexto, do livro e da cultura. Antes, fazendo as vezes de antigas vozes ambivalentes (divinamente pueris, agostinianamente angustiadas) convida o leitor, seu igual, seu irmão, a vislumbrar a entrada e a saída de sua conversão irônica pela depressão, entregando-lhe imagens como textos (e vice-versa): “toma e lê”.

 

 

Imagem de capa JU-online
Ilustração da capa do livro “Nigredo: estudos de morte e dulia” | Imagem: Reprodução

twitter_icofacebook_ico