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Unicamp leva arte, saúde e cidadania para população em situação de rua

Projeto de extensão reúne alunos, docentes e profissionais da rede pública de Campinas

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Ilustra: LP Raimara Alzira, 19 anos, revela o sonho de dar uma vida melhor para a filha, de 1 ano, enquanto os olhos brilham por ter conseguido vaga num abrigo para mulheres e crianças. Com olhar para o horizonte, Claudinei Ferreira conta sobre seu novo emprego, depois de dois anos em situação de rua. Respostas como estas, aos poucos, mostram para a psicóloga Cathana Freitas de Oliveira, aluna de doutorado em saúde coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, que a extensão universitária vale a pena. Professora no Programa de Estágio Docente da FCM, Cathana integra há um ano o projeto de extensão comunitária (PEC) “Entre a clínica, a arte e a cidadania: oficinas com a população em situação de rua em Campinas”, que se une à equipe do projeto Consultório na Rua para dar novos rumos à discussão sobre a saúde dessa população.

As atividades, realizadas pelo Grupo Conexões, formado por alunos da Unicamp, redutores de danos, músicos, terapeuta ocupacional e outros profissionais da rede pública de Campinas, rapidamente atraem pacientes antigos e novos. “A receptividade é ótima. Eles participam das oficinas de música, que deslocam o cuidado do pólo doença-morte para o da saúde-vida; terapia ocupacional e expressão corporal (realizada no Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Droga), que agora serão em conjunto com estudantes do curso de Artes Cênicas da Unicamp.”

Para Cathana, um projeto de extensão como este do grupo Conexões valoriza inovações, a construção de novas ferramentas de vínculo nas práticas em saúde. “A meu ver, esta é uma ótima forma de se preocupar com os atores sociais, incluindo a importância dos trabalhadores nesta construção, que no projeto terão também momentos de educação permanente e criação conjunta para as novas oficinas de campo.”

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A psicóloga e aluna de doutorado Cathana Freitas de Oliveira: “Queremos abrir espaço para pensar a saúde sem restrições religiosas ou morais”

As experiências em campo permitem também repensar políticas públicas de saúde imprescindíveis à população de rua e produzir reflexões sobre a formação comprometida social e eticamente, prevista nas Diretrizes Curriculares Nacionais, nos cursos da área da Saúde da FCM, possivelmente em conjunto com alunos do IA. “Pretendemos trabalhar o resgate da cidadania, do acesso à arte e inclusão social como fatores de produção de saúde como o são. Pensamos em apoiar os próprios moradores a pensar sobre suas escolhas em saúde. Isso é novo, em geral acreditamos que pessoas em situação de rua não têm capacidade para isso, mas nós apostamos que é possível resgatar estes saberes e autocuidados, assim como desejamos desenvolver melhor nossa pesquisa, que explora a construção de redes de atenção à saúde a partir de uma construção conjunta entre os usuários, os trabalhadores e os gestores. São novas perspectivas onde quem usa, quem trabalha e quem gerencia criam juntos”, afirma Cathana.

Para o professor Sérgio Resende Carvalho, coordenador do projeto de extensão, as atividades estabelecem uma relação de troca entre a Unicamp e a população. “Consideramos o projeto socialmente bastante relevante por se tratar de intervenções sobre populações marginais e negligenciadas da sociedade. Contribuímos para as ações de cuidado, e a população em situação de rua contribui para que a academia seja mais comprometida com a sociedade e, em especial, com aqueles que se encontram em sua periferia no que se refere a direitos e dignidade.”

A seu modo, Claudinei Ferreira, que já foi usuário do Consultório na Rua, demonstra estar consciente desta troca, principalmente no que tange à formação de médicos aptos a atuar na saúde pública: “Para o aluno da Unicamp, acaba sendo um feedback, porque ele vai pegar isso aí (a experiência na rua) e, se pedirem um trabalho de escola, ele tem o material na mão porque ele participou de fato. É um recurso para ele fazer um projeto, que o professor vai pedir para ele. Pode ser um trabalho de escola para ganhar nota. Ele tem disposição e visão de um projeto que ele irá montar futuramente por poder fazer isso aqui (atendimento na saúde pública)”.

O autocuidado é um dos aspectos importantes tanto no conteúdo do projeto da FCM quanto no Consultório na Rua – administrado pelo Hospital Cândido Ferreira com financiamento da Prefeitura de Campinas e do Sistema Único de Saúde (SUS). Comprometidos com a prevenção, Raimara e sua família, assim com Claudinei, chegam cedo em busca de atendimento e acolhimento. “O atendimento aqui é bom. Eles sempre cuidaram de mim e de minha filha. Eles dão muito carinho a ela, têm amor nela”, faz questão de ressaltar Raimara.

Foto: Scarpa
Raimara Alzira, moradora em situação de rua : “O atendimento aqui é bom. Eles sempre cuidaram de mim e de minha filha”

Cathana enfatiza que apesar de Campinas e outros estados do Brasil terem um Consultório na Rua, ainda é muito comum a população ter de recorrer a centros que envolvem religião e abstinência como base do trabalho. “Queremos abrir espaço para pensar a saúde sem restrições religiosas ou morais a priori, por exemplo.”

De acordo com a psicóloga, com aporte de recursos oriundos do PEC e da adesão de novos profissionais, o grupo pretende levar novas técnicas ao espaço de cuidado da rua e abordar temas como o autocuidado. “O grupo também planeja o registro audiovisual, já que além do financiamento, ter um projeto destes reconhecido atrai mais alunos e trabalhadores parceiros”, acrescenta Cathana.

A movimentação na praça atrai não somente a população em situação de rua, mas também munícipes que moram ou passam pelo local de atendimento, segundo a coordenadora do Consultório na Rua, Alcyone Apolinário Januzzi. “Aqui no Largo do Pará, uma senhora chamada Helena frequentou a roda de música durante seis meses. Alguns perguntam sobre o projeto, outros criticam positivamente ou negativamente”, relata Alcyone.

Para o aposentado Valdomiro de Figueiredo, o trabalho é um “bem-querer” por reconhecer as necessidades de pessoas que vivem “ao relento”. Ao passar pelo Largo do Pará, ele faz uma pausa, pede informações e elogia a atenção dos profissionais. A iniciativa de levar alunos da Universidade para as atividades de campo é, em sua opinião, uma forma de melhorar a formação e levar esclarecimentos sobre cuidados com a saúde. “Desagrada ver as pessoas como estacionárias, ao relento, sem estímulo para a vida. Isto aqui é um bem-querer. Cheguei e as profissionais foram muito atenciosas, me explicaram tudo sobre o projeto. Nesta estrada da vida, pela qual todos nós passamos, há muitas diferenças. As pessoas que têm condições de levar esclarecimentos que levem.”

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Claudinei Ferreira, ex-morador em situação de rua: “A situação em si você não espera, ela acontece. Só que você tem que correr atrás. Procurar apoio”

Redutor de danos há cinco anos no Consultório na Rua, o capoeirista Thiago França Branco Carvalho assegura que as oficinas de música devolvem dignidade aos participantes. Sua missão é criar estratégias para fazer com que as pessoas enxerguem que há outras coisas além de substâncias psicoativas. “A gente faz um trabalho com música para criar um outro momento para o usuário. Nestas oficinas, a gente tenta resgatar vidas, faz uma escuta, encaminha para tratamento,  mas a ideia é criar um outro momento além daquilo que estão acostumados. Na oficina não pode beber. E eles respeitam.” Professor de capoeira há 20 anos, ele constata que, sem saber, era redutor de danos desde os 13 anos de idade, motivado pelo mestre Jaça, professor aposentado do Departamento de Artes Corporais da Unicamp.


Sonhos reais

Por que a rua? Raimara quer sair de uma situação que experimenta desde os 3 anos de idade, quando sua mãe faleceu: a rua. Cathana graduou-se em psicologia no Rio Grande do Sul e decidiu, como psicóloga, vivenciar um lugar onde nunca precisou viver: a rua. Uma em busca de dignidade e outra, de compartilhar dignidade, tentando tornar realidade um sonho universal de saúde pública de boa qualidade, justa e digna.

Foi em busca de trabalhar com pessoas em situações vulneráveis que a psicóloga conheceu projetos como o Consultório na Rua, em Porto Alegre, onde nasceu, e no Rio de Janeiro. Escolheu o Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas por reconhecer que ele oferece um dos melhores doutorados do Brasil. Mas quando chegou a Campinas, surpreendeu-se com o consultório totalmente na rua e com o compromisso de encaminhar os pacientes para a rede básica de saúde. A Alcyone é uma pessoa incrível para a coordenação, e a equipe toda tem essa disponibilidade, todo mundo vai para a rua, busca ajuda. Não é fácil construir rede para o morador de rua. O que ele precisa fora do espaço da rua, dentro do serviço de saúde, costuma ser negligenciado. Então, além de a equipe caminhar, ela se prontifica a ir até lá. Este ano eu tive a oportunidade de aprender isso. Para o doutorado que estou desenvolvendo, isso é um salto.”

Por meio do Consultório na Rua, Raimara pôde fazer todo o pré-natal e o parto no Hospital da Mulher José Aristodemo Pinotti (Caism), onde chegou sem nada e rapidamente foi surpreendida com uma bolsa e produtos arrecadados pela assistente social Elisabeth Chinália. As atividades de artes, para ela, são importantes para que as pessoas se sintam acolhidas. Aliás, a palavra acolhimento tem grande significado em sua vida. “Sonho muito com o dia de ter emprego. O que preciso peço sim. Porque quando você precisa de ajuda, os outros te ajudam.  E quando você vai ajudar os outros é bom porque você consegue dar algo de melhor, um conforto e mostrar pra pessoa que ela vai conseguir.”

Foto: Scarpa
O redutor de danos Thiago França Branco Carvalho: “A gente faz um trabalho com música para criar um outro momento para o usuário”

Quando sua mãe faleceu, Raimara e os irmãos foram morar com o tio, mas uma denúncia de sua irmã ao Conselho Tutelar os levou para um abrigo, onde ela e seu irmão (adotivo) foram adotados. Mais uma situação desagradável a levou para o abrigo novamente, de onde fugiu. Nas baladas, conheceu o marido, foram para outro local de acolhimento, onde soube da gestação, aos 17 anos. Neste momento, decidiu mudar de vida. Encontrou no Consultório na Rua apoio profissional e encaminhamento para o Hospital da Mulher José Aristodemo Pinotti (Caism).  “Tentamos levar uma vida ‘normal’, mas meu marido foi demitido. Agora, ele ganhou da igreja uma caixa de isopor e água para vender. Estamos lutando. Sempre batalhei pelo que preciso.”

Cathana alegra-se por ver que uma gestante de 17 anos, em situação de rua, foi atendida pelo Caism. “Campinas passa por momento difícil de organização da rede. Em outras áreas que atendo, ocupação, já vi gestantes ficarem sem atendimento quase o pré-natal inteiro. Ver que uma mulher está tendo atendimento dentro de uma universidade de ponta é um ganho muito grande e fico feliz pela Universidade estar se abrindo para estas oportunidades. Não são todas as universidades que conseguem estar tão próximas do que acontece na rede de saúde. Quando a gente consegue este link, a gente tem um ganho para quem estuda, para quem trabalha e para quem é atendido.”

A história de Claudinei passa pelo julgamento daqueles que naturalmente deveriam apoiar em momentos de dificuldade. Ao ficar desempregado, teve receio de ser cobrado pela família e ficou dois anos em situação de rua. Hoje empregado, deseja prestar o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), para realizar o sonho da graduação, e rever o filho de 13 anos. Entre as dificuldades para encontrar um emprego, mesmo com nível médio completo, ele elenca a crise do País, a desigualdade social, a discriminação e o racismo. “As pessoas falam que não tem racismo, mas existe.” No Consultório na Rua e agora no Conexões, ele encontrou não somente a atenção à saúde, mas um pouco de alegria, de dignidade e estímulo para reconquistar um direito básico: um trabalho. Como saiu da situação de rua? Com apoio e muita inteligência.

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O aposentado Valdomiro de Figueiredo: “Nesta estrada da vida, pela qual todos nós passamos, há muitas diferenças”

“A situação em si você não espera, ela acontece. Só que você tem que correr atrás. Procurar apoio. Sempre tem alguém que estende a mão. Tem que dar a mão. Se ele der um dedo, você  toca na unha dele e vai subindo. É degrau por degrau que você tem de ter dentro de sua cabeça, e vai conseguindo correr atrás. Tem de procurar um serviço, correr atrás de sempre estar em contato, procurar ler, assistir reportagem para estar informado do que está acontecendo. Não adianta você ficar em situação de rua e ficar isolado do mundo. Aí, você não está a par do que acontece no dia a dia, no mundo, e está desinformado. Através disso, você vai fazendo seus contatos, conhecendo outras pessoas e procurando um degrau para seu objetivo, que é ganhar sua vida novamente.”

Por não ter paredes, o Consultório na Rua consegue trabalhar em conjunto com todos os equipamentos da rede de saúde de Campinas, de acordo com a coordenadora Alcyone Apolinário Januzzi. O Consultório é uma iniciativa do Hospital Cândido Ferreira e é financiado pelo Sistema Único de Saúde. “A entrada na rede é bem-sucedida. Mas mesmo assim tem gente muito boa, querendo trabalhar e querendo refazer.”


Parceria

O projeto Conexões, segundo Alcyone, enriqueceu o Consultório na Rua. “Temos como meta o convívio dentro da universidade e a universidade em nosso trabalho. Isso faz com que a gente mostre aos alunos de medicina o que é a pessoa em situação de rua e a pessoa com vulnerabilidade. Eles podem vivenciar na prática; ver que eles trabalham no semáforo, como profissional do sexo, e são pessoas que por alguma razão não acessam a rede formal de saúde; estão invisíveis para a sociedade.”

O grande gargalo na relação entre a rede de saúde e a população de rua, segundo Alcyone está na falta de conhecimento dos profissionais em atender e saber qual o ritmo da rua e no preconceito dos pacientes em chegar até a rede. “O aluno passa a ter um outro olhar. Até porque o atendimento na rua tem de ser o mais resolutivo possível. Se falar para alguém voltar daqui a dois meses, você perde o paciente.”

A falta de conhecimento da realidade cria barreiras, na opinião de Alcyone. “Uma das primeiras pergunta que me fazem é: ‘Quantas vezes você sofreu agressão?’ Eu respondo: nenhuma”.

– E quantas vezes você se emocionou, Alcyone?

– Muitas.

 

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A psicóloga Cathana Freitas de Oliveira conversa com moradores em situação de rua, no Centro de Campinas | Foto: Antonio Scarpinetti

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