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Pesquisa traz à tona paradoxos da mercantilização do turismo no AM

Estudo demonstra como indígenas e ribeirinhos convivem com a imagem de paraíso intocado difundida pela indústria turística

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Foto: ReproduçãoReduto do turismo internacional, a região de Manaus (AM) é objeto de um estudo de doutorado que demonstra, dentre outros pontos, como a globalização atua diretamente no cotidiano de indígenas e ribeirinhos do local. “Se por um lado o turismo está mercantilizando algumas relações e fazendo os indígenas se portarem de determinada maneira para os turistas, de outro, está ressignificando as tradições locais, trazendo à tona o contato dessas populações com elementos culturais muitas vezes esquecidos”, relata a cientista social Maria Teresa Manfredo, autora da tese “Turismo na Amazônia: elementos culturais, conflitos e imaginários da região de Manaus”, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), sob a orientação da professora Lúcia da Costa Ferreira, com financiamento da Fapesp. A pesquisa contemplou duas localidades principais, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé e o município de Careiro, respectivamente, na zona rural e na Região Metropolitana de Manaus.

Segundo Manfredo, a expectativa da maioria dos turistas internacionais é de uma Amazônia exótica, fantástica, considerada o pulmão do mundo, um ecossistema em ameaça, mas ainda intocado. Essa também é a Amazônia que os donos das pousadas da região tentam vender. Nesse sentido, a população local indígena e ribeirinha, que trabalha com a atividade turística, responde às demandas do mercado internacional regido por esse imaginário sobre a floresta. Mas ao mesmo tempo em que esse ideal é reproduzido para atender aos visitantes estrangeiros, existe muita resistência e questionamento por parte dos indígenas e dos ribeirinhos em torno da imagem vendida.

“Ao identificar e tentar compreender os diversos processos envolvidos no que chamei de arena turística de Manaus, privilegiei uma abordagem que levasse em conta não apenas a interpretação que o observador pode dar ao que indivíduos observados fazem, mas também os sentidos que eles atribuem às suas ações, isto é, como eles veem a si próprios e aos outros, quais os valores que eles atribuem uns aos outros e quais as negociações que estão em jogo no momento e no contexto em que as ações ocorrem”, esclarece.


Os ribeirinhos de Careiro

No município de Careiro, por exemplo, os donos de pousadas proíbem os ribeirinhos de cultivar alimentos para a própria subsistência nos quintais de suas casas. A justificativa é de que a paisagem intocada da floresta, tão esperada pelos turistas, não seja depreciada pela visão de um roçado. A pesquisadora explica que, como uma das estratégias para manter essa paisagem “intocada”, os agentes de turismo – que também são donos das pousadas de selva no município – precisam empregar grande parte da população. Essas pousadas são a maior fonte de renda das comunidades da região. Antes disso, o dinheiro não circulava de maneira frequente no local. A subsistência era proveniente do extrativismo da floresta.

Na tese, essa relação é chamada de mandonismo, por se caracterizar como uma intervenção arbitrária na vida pessoal dos indivíduos. Esse conceito designa aquele que, em função do controle de algum recurso estratégico, exerce sobre a população uma dominação pessoal e arbitrária. Entretanto, para mais do que uma relação de exploração, existiria uma negociação entre os agentes de turismo e os moradores locais, conforme explica Manfredo. “É uma negociação desigual, por se tratar de pessoas muito poderosas e outras com poder muito reduzido, mas ainda assim é uma negociação”, afirma. Segundo a pesquisadora, tratar as relações locais dessa forma contribui para reforçar que, apesar da desigualdade, todos os indivíduos envolvidos no processo social do turismo são, em alguma medida, sujeitos históricos com capacidade de decisão, de protagonismo social.

Foto: Reprodução
A cientista social Maria Teresa Manfredo, autora da pesquisa: “Privilegiei uma abordagem que levasse em conta não apenas a interpretação que o observador pode dar ao que indivíduos observados fazem, mas também os sentidos que eles atribuem às suas ações”

Por outro lado, a energia elétrica, que chegou à região em 2012, propiciou outras relações antagônicas envolvendo a população ribeirinha de Careiro. Muitos turistas se decepcionam ao visitar as casas ribeirinhas e se depararem com eletrodomésticos. Conversando com um turista holandês, por exemplo, Manfredo relata que ele fez o seguinte questionamento: “Por que essas pessoas precisam de energia elétrica? Eu já estive no Quênia e em outros lugares [todos destinos considerados exóticos, conforme explica Manfredo] e são os próprios moradores que não querem energia elétrica, porque não querem perder suas tradições”.

Para a cientista, ligar o acesso de uma população a bens materiais e perdas culturais, é uma visão preconceituosa, pois coloca uma determinada cultura como sendo superior às outras. “É como se eles [os ribeirinhos] tivessem que ficar condenados a viverem quase que de maneira animalizada, para que se cumpra essa idealização de encontrar um homem tradicional, autêntico, vivendo em plena harmonia com a floresta, tão presente no imaginário que é difundido e vendido sobre a Amazônia. Por que essa população nativa não pode gozar das benesses de conforto que existem no mundo de hoje? Tudo isso faz parte desse jogo de construção e desconstrução de um imaginário que o turista espera encontrar na Amazônia e que pude captar na minha pesquisa”, expõe. De acordo com a autora da tese, a energia elétrica foi um ponto que os turistas sempre abordavam, decepcionados. “Ah, mas tem energia elétrica no meio da floresta...”, a cientista diz, reproduzindo a fala dos estrangeiros.


Os indígenas de Tupé

Diferente dos ribeirinhos mencionados, Manfredo verificou que a questão identitária para os indígenas é bastante presente. Segundo a autora, a questão da reinvindicação da identidade é antiga na cultura indígena, porque eles foram muito massacrados no processo de colonização, além de ser uma forma de conseguirem melhorar suas condições de vida, através da reinvindicação de seus direitos. A atividade turística foi uma oportunidade de obtenção de renda para as famílias indígenas, de etnia Desana, que viviam desde o começo dos anos 2000 no que hoje é a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé, uma das Unidades de Conservação, que abriga populações cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais.

Foto: Maria Teresa Manfredo
Criança indígena na porta de entrada de uma oca no Tupé, onde são exibidas as apresentações de dança | Foto: Maria Teresa Manfredo

Com a migração dos primeiros indígenas para o local, que trabalhavam com agricultura, a princípio, os agentes de turismo começaram a pedir aos índios que apresentassem danças tradicionais para os visitantes estrangeiros. Mesmo sem o costume de praticar a dança, naquela ocasião, os índios começaram a se apresentar em ocas construídas com auxílio dos agentes de turismo. Segundo entrevista feita com os indígenas, a pesquisadora diz que essa tradição já não estava sendo tão acessada pela comunidade e o turismo foi uma forma de eles reelaborarem o contato com essa carga ancestral. Até mesmo os jovens começaram a aprender as danças. Além disso, como outra demanda turística, os índios voltaram a utilizar mais frequentemente a língua Tukano, idioma de origem da etnia. Com isso, os índios revivem elementos da sua cultura, além de atenderem às demandas do mercado internacional, com adaptações. A dança, que originalmente durava 24 horas, é apresentada em 30 minutos para os turistas, e essa é uma informação presente em todas as aberturas da exibição.  Segundo a autora, expor essa adequação no início da dança aos visitantes é uma maneira de reinvindicarem o direito de serem “índios modernos”, como os próprios indígenas se autoidentificam. “Uma maneira de dizerem: temos o direito de modificarmos alguns aspectos de nossa cultura, conciliarmos isso com as mudanças do mundo contemporâneo, as demandas mercadológicas e, ainda, continuarmos nos identificando como indígenas”, interpreta.

Foto: Maria Teresa Manfredo
Associação Cultural Indígena em Tupé | Foto: Maria Teresa Manfredo

Mas o turismo também ressignificou conflitos indígenas já existentes antes dessa atividade surgir na região, gerando novos embates, assim como as relações dos ribeirinhos com os agentes de turismo em Careiro. No caso dos indígenas, os conflitos mais frequentes observados seriam internos, entre os quais o relacionado à divisão de bens e à convivência com estrangeiros. Além disso, os próprios moradores ribeirinhos de Tupé têm conflitos com os índios da reserva. Segundo a pesquisadora, os ribeirinhos, vizinhos dos indígenas, ressentem-se do sucesso desses últimos. “Eles são todos gananciosos, ganham as coisas e fica tudo para eles”, relembra a fala dos ribeirinhos. Para Manfredo, essa é uma visão que carrega preconceitos e estereótipos em relação aos  indígenas. “Como se os indígenas fossem inferiores, que não pudessem se dar bem no mundo dos negócios e se dar bem no mundo do turismo mais do que aquele ribeirinho. Se por um lado, os conflitos presentes no Tupé possuem o turismo como fonte propulsora, por outro, também possuem raízes históricas”, explica.


O PAPEL DA INTERNET

A grande maioria das pessoas com quem a cientista conversou chegou às pousadas de selva através do site de viagem “Trip Advisor”, que oferece roteiros turísticos, dicas a viajantes, internacionalmente, e que permite um feedback dos clientes com relação às hospedagens. “A internet tem um importante papel de deslocamento dessas relações entre o local e o global”, comenta. A influência da internet nesse processo é tamanha que até mesmo o pajé de uma das ocas de Tupé distribui, depois da apresentação de dança, seu cartão de visita com o seu perfil no Facebook. Com isso, ele já viajou o mundo por meio de turistas que o conheceram e o convidaram para eventos em outros países. “Por um lado, eles [os índios] reproduzem os anseios dos estrangeiros e, de outro, mesmo que minimamente, estão reconstruindo sua história de uma maneira diferente, afirmando que são contemporâneos, ao mesmo tempo em que reinventam suas tradições”, finaliza.

 

QUEM SÃO OS RIBEIRINHOS?

Os ribeirinhos são uma população das várzeas, margens e redondezas dos rios e igarapés da Amazônia, que não se identifica mais como indígena e possui uma vida extrativista, marcada pelos fluxos das águas. Muitos são descendentes de indígenas e dos chamados soldados do ciclo da borracha, do fim do século XIX e início do século XX. O termo ribeirinho também tem sido utilizado, recentemente, por grupos sociais que buscam afirmar uma identidade política que se constrói pela consciência de fazer parte dos estratos de população rural a quem, historicamente, tem sido negado o acesso a serviços sociais básicos, como saúde educação e saneamento.

 

 

Imagem de capa JU-online
Criança indígena na porta de entrada de uma oca no Tupé, onde são exibidas as apresentações de dança | Foto: Maria Teresa Manfredo

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