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Pesquisa da Unicamp gera energia elétrica para indígenas no Xingu

Aulas noturnas e sessões de cinema agora integram rotina dos moradores da Aldeia Aiha, do povo Kalapalo

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Foto: ReproduçãoA energia elétrica está presente há décadas em nossas vidas e seu uso já se tornou tão comum que nem nos damos conta do que deixaríamos de fazer sem ela. Mas, para os frequentadores da Escola Estadual Indígena Central Aiha, no Território Indígena do Xingu, essa realidade só se tornou possível graças aos esforços de Genebaldo Figueiredo Neto, doutorando da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri). Em seu trabalho acadêmico, o cientista uniu a pesquisa desenvolvida na Unicamp à paixão pelas culturas indígenas, para instalar um sistema de energia solar na escola onde estudam cerca de 120 crianças, adolescentes e adultos da aldeia Aiha, do povo Kalapalo.

Com a eletricidade disponível, uma turma noturna foi aberta. Os indígenas também passaram a contar com recursos audiovisuais durante as aulas e com sessões de cinema, além de poderem conservar a merenda escolar em um freezer. “Antes da nossa intervenção, os alunos só tinham aulas durante o dia e precisavam pescar diariamente para garantir a merenda, pois os alimentos não podiam ser guardados”, conta Neto, que é engenheiro mecânico e fez mestrado em conversão de energia.

A aldeia conta com 23 casas – de madeira e sapé –, uma unidade básica de saúde e a escola. A opção de escolher a instituição de ensino como prioridade para instalar o sistema elétrico tem uma explicação: é o local comunitário mais frequentado pelos moradores. Ademais, metade dos habitantes da aldeia estuda.

“A presença de energia elétrica nos ajudou muito. Quando precisávamos imprimir algum documento, por exemplo, tínhamos que ir até a cidade mais próxima e, entre ida e volta, eram aproximadamente três dias”, conta Ugise Kalapalo, diretor da escola. O professor indígena diz, ainda, que com o uso da televisão em sala de aula, o processo de aprendizado atrai os estudantes, tornando-o muito mais eficaz. “Eles absorvem mais facilmente o conteúdo quando mostramos vídeos. O trabalho do professor foi muito facilitado”, completa. A escola conta hoje com seis educadores indígenas e outros dois não indígenas.

Foram instaladas, em uma estrutura metálica, três placas fotovoltaicas, ferramentas capazes de transformar a energia do sol em eletricidade. Além delas, compõem o sistema um quadro elétrico que abriga quatro baterias, disjuntores, dois controladores de carga, dois inversores, dois dps e dois medidores de energia. Todos os elementos do quadro possuem o seu par reserva.

Foto: Divulgação
O doutorando Genebaldo Figueiredo Neto: “Antes da nossa intervenção, os alunos só tinham aulas durante o dia e precisavam pescar diariamente para garantir a merenda”

“Tudo foi projetado especialmente para a comunidade indígena, de forma simples e didática, visando garantir a transmissão de informações especializadas e acessíveis aos seus moradores”, explica o doutorando, que também pensou nas crianças ao colocar plugs industriais nas tomadas de saída do quadro como forma de proteção. Os pesquisadores também ministraram um treinamento aos indígenas para ensiná-los a operar o sistema. Os equipamentos foram financiados pelo próprio pesquisador, com a ajuda de empresas parceiras.

O planejamento de instalação teve que ser feito com muito cuidado para não faltar nada, pois um simples parafuso esquecido seria sinônimo de longa viagem até a cidade mais próxima. Foram cerca de dois dias para a instalação total do sistema, que também contou com a ajuda dos indígenas. De novembro a março, período mais chuvoso na região, os indígenas são orientados a economizar energia, missão facilitada pelo fato de o sistema informar a carga das baterias.


Como tudo começou

Neto sempre se considera um aventureiro. No início dos anos 2000, resolveu ir com seu jipe para o Estado de Tocantins, mais exatamente na cidade de Lagoa da Confusão. Lá, conheceu a guia turística Raimunda, que lhe recomendou o passeio até a Ilha do Bananal, onde sua relação com os indígenas teve início, estendendo-se posteriormente ao Território Indígena do Xingu. “Quando conheci esses povos, passei a me interessar pela vida e história deles, o que me proporcionou vivências e um grande aprendizado. Isso me rendeu um aprimoramento humano tão extraordinário que precisava realizar algo por eles”, relata o estudante.

Foi então que o doutorando resolveu procurar um estudo interdisciplinar na área de energia que gerasse um benefício direto a uma comunidade indígena. Encontrou essa possibilidade na Feagri, com o professor Luiz Antonio Rossi. Juntos, elaboraram o projeto A energia fotovoltaica no incremento de ações educativas na Aldeia Aiha, trabalho cujo objetivo principal é mostrar as contribuições que um sistema de energia com recursos renováveis podem oferecer no âmbito da educação. Para isso, foi necessário estabelecer metodologias adequadas para aferir essas contribuições, estudar a demanda de povos tradicionais e, também, realizar a investigação dos recursos energéticos disponíveis na região da aldeia Aiha, maior comunidade Kalapalo do Território Indígena do Xingu, situada no Estado do Mato Grosso e a cerca de 80 quilômetros da linha de transmissão de energia elétrica mais próxima.

O local teve uma história de formação singular, que propiciou a conservação de suas tradições e culturas. Entretanto, as populações necessitam de algum suprimento energético para atender suas necessidades e evitar o êxodo, especialmente dos jovens. Por isso, a aldeia conta com um gerador que alimenta por duas horas diárias alguns equipamentos que demandam eletricidade, como a geladeira e televisores nas casas.

Foto: Divulgação
Sessão de cinema na aldeia

Em um primeiro contato com os indígenas no início do estudo de Neto, não foi prometida pelos pesquisadores nenhuma intervenção prática na região, mas o sentimento de querer realizar algo falou mais alto para o doutorando. A missão, porém, não era simples. Para propor ações e entender o que seria o mais apropriado para a aldeia, era preciso conhecer o perfil de seus habitantes. “Nem sempre os povos com culturas tradicionais sob o impacto de novas tecnologias apresentam respostas compatíveis com os usos na nossa sociedade”, pondera o pesquisador.

Para auxiliá-lo no desafio, ele entrou em contato com o professor Antonio Guerreiro, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC) da Unicamp. O especialista, que desenvolve pesquisas sobre políticas e transformações sociais junto aos Kalapalo desde 2005, ajudou o doutorando com uma melhor compreensão dessas transformações, que estão diretamente ligadas ao perfil de demanda energética local.

A partir do convívio diário e de longa duração com a comunidade, buscamos identificar, por meio do diálogo, temas e questões a serem trabalhadas, a fim de registrar, compreender e comunicar a outros públicos o ponto de vista próprio dos Kalapalo”, explica Guerreiro. Desde que iniciou suas atividades de pesquisa, extensão e documentação cultural, o professor vem realizando um processo de formação de pesquisadores indígenas, capacitados a operar tecnologias audiovisuais e informáticas para a documentação de sua cultura e organização em um acervo.

O professor diz que a identificação da escola como ponto de instalação de um projeto-piloto, dentro do trabalho de Genebaldo, partiu de um diálogo com a comunidade, em que se privilegiou a escolha de um espaço que beneficiasse a todos. Com essa possibilidade, os professores indígenas construíram a proposta de criar uma turma noturna, voltada a jovens e adultos que, por suas atividades diárias como a pesca e a agricultura, não podiam frequentar a escola nos horários matutino e vespertino.

Fotos: Divulgação
1 – Transporte do equipamento | 2 – Equipamentos são descarregados | 3 – Indígenas ajudam na montagem da placa | 4 – Montagem do quadro elétrico na escola | 5 – Detalhes das telas e plugs industriais | 6 – Vista da escola

O docente conta que a possibilidade de captar energia elétrica por meio de painéis fotovoltaicos foi muito bem recebida pelos Kalapalo pelo fato de ser uma fonte natural de energia. A dependência de geradores a diesel ou gasolina acarretaria numa série de problemas, que vão desde a poluição do ar e da “paisagem sonora” da aldeia até o aumento da dependência do dinheiro para adquirir combustível. Além disso, este cenário faria com que os indígenas passassem a viajar cada vez mais para núcleos urbanos da região, o que por sua vez aumentaria ainda mais sua dependência de recursos financeiros, gerando um perigoso ciclo vicioso.


Projeto continua

O sistema instalado na escola indígena já está pronto para receber ampliações e contará com mais três placas fotovoltaicas. A nova estrutura poderá proporcionar mais funcionalidades comunitárias para a aldeia, como o suprimento de pequenas máquinas de costura e de acabamento para artesanato. O freezer também poderá abrigar alguns medicamentos da unidade básica de saúde, entre os quais, soro antiofídico.

“Agradeço muito ao Genebaldo, pois ele cumpriu sua promessa. Muitos chegam aqui na aldeia, dizem que têm projetos, que vão nos ajudar, mas nunca mais voltam”, desabafa Ugise. Programada para ser finalizada em 2018, a tese de Genebaldo, além de aferir as contribuições nas ações educacionais da escola, apresentará um balanço energético da aldeia.

Para o doutorando, no entanto, sua relação com os indígenas não tem data para acabar. “Minha participação por lá não irá terminar quando o trabalho acadêmico for defendido. Continuarei buscando recursos para energizar o setor doméstico da aldeia. Mudar a vida de alguém é recompensador”, finaliza o estudante, que está programando a próxima visita à aldeia para o ano que vem.


Contexto sociocultural dos Kalapalo

Os Kalapalo vivem na região do Alto Xingu, uma área de mais de mil anos de ocupação contínua, onde se desenvolveu um complexo multiétnico e multilíngue conhecido por sua homogeneidade sociopolítica e cultural. Lá vivem nove povos que falam as línguas das famílias karib (Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukua), arawak (Wauja, Mehinaku e Yawalapíti), e do tronco tupi (Kamayurá e Aweti). Estes povos são intensamente articulados por casamentos, trocas e festas entre aldeias, apresentando uma organização política regional extremamente complexa.

 

Imagem de capa JU-online
Aula com recurso audiovisual na Escola Estadual Indígena Central Aiha

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