Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Meditações sobre os Juízes (2)

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Foto: ReproduçãoNos últimos tempos brasileiros, normas promulgadas pelo STF recebem desobediência sem que ministros se pronunciem. Exceções se tornam regra  para aterrorizar os réus, como se a lei fosse extraída diretamente do Feindstrafrecht. Veja-se Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal, que define o uso de algemas e similares. Ela é descumprida por ordem judicial inferior, erigida a tribunal de exceção. O caso do ex-governador do Rio de Janeiro é o mais notório. A súmula 11 adverte: “em primeiro lugar, levem em conta o princípio da não culpabilidade”(Ministro Marco Aurélio). Aviso inútil dado o ânimo dos julgadores e a leniência do STF. Lembro Günther Jakobs: a tendência é não existirem réus cidadãos, mas inimigos contra quem “só resta o uso da força física” (12). Nos processos políticos brasileiros, da era Vargas e hoje, é exigido do acusado a prova de sua inocência. Não cabe ao poder público evidenciar sua culpa. Um ente estatal que usou a Polaca e os Atos institucionais automaticamente atenua o direito cidadão. As humilhações sofridas pelo Reitor da UFSC não incomodam os julgadores e seus auxiliares. Aqui imperam práticas que violam as condições básicas da justiça e democracia: “as garantias de uma sociedade pluralista, livre, justa e solidária” (13).

Vivemos a “guerra contra os fracos” (14). Direitos são arrancados em todos os campos, do trabalhista às mais comezinhas formas de garantir a vida. E os juízes se calam, ou colaboram para o esbulho dos que não podem se defender. Poderíamos recitar inúmeros casos brasileiros que mostram a cumplicidade de juízes com sistemas políticos iníquos. Os exemplos que dei acima bastam por ora. As duas ditaduras do século 20 tiveram sustento em propaganda, força física, auxílio de magistrados, causídicos, constitucionalistas (15). Nos regimes de força ocorreu um consórcio de fardas e togas. A Carta de 1934 proibia tribunais de exceção. Mas o STF autorizou o Tribunal de Segurança Nacional. Nos julgamentos daquela corte, decisões com empate dos juízes condenaram o réu. Na ditadura de 1964, quem salvou a justiça estava entre os advogados de presos políticos, capitaneados por Sobral Pinto. No ministério público, pessoas como Helio Bicudo, que desafiou o Esquadrão da Morte. Advinda a Constituição “cidadã”, brasileiros aos milhares sofrem torturas ou escravidão sem o abrigo das togas.

Nas crises é fácil acusar governos, parlamentos, exércitos, polícias. Mas urge verificar a culpa de todos os envolvidos. É o que afirma Stolleis. No Holocausto, “Estado, ‘administração’, ‘sistema judiciário’ e o exército, estiveram envolvidos como atores diretos, ajudantes ou testemunhas silenciosas que apoiavam ou se resignaram”. Da lista não escapam "os inumeráveis participantes que garantiram as estruturas e permitiram que os aparelhos permanecessem operando, como por exemplo (...) os que sabiam de tudo nos ministérios, os juízes, os promotores, os acadêmicos também, comentadores que traduziram a nova injustiça para os velhos princípios dogmáticos e os tornou utilizáveis numa forma percebida como ‘normal’". (Stolleis, op. cit).

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Na ‘guerra contra os fracos’, direitos são arrancados em todos os campos, do trabalhista às mais comezinhas formas de garantir a vida | Foto: Reprodução

Um texto de Dominique Rousseau, professor de direito constitucional na Universidade de Montepellier, merece leitura atenta. Ele analisa o juiz na sociedade moderna e aponta magistrados em tarefas inéditas, como na Operação Mãos Limpas. Assistimos, diz Rousseau, na democracia, o declínio de instituições que exerciam um papel de contra poder, de controle ou sanção, no domínio político ou no econômico e civil.

Seria o poder novo dos juízes a prova de um desatre na democracia? Não necessariamente. A filosofia política moderna foi edificada, argumenta, sobre um buraco negro relativo ao terceiro poder. Montesquieu escreve a propósito do judiciário que ‘a potência do juiz é nula’, pois o direito é a boca da lei. O aumento do poder dos juízes no mundo mostra que tal idéia é falsa. A lei é ao mesmo tempo barulhenta e silente, porque constituída por palavras, mas o juiz lhes dá sentido preciso. Se a lei diz que indivíduos  ameaçadores da ordem pública devem ser processados, ela não diz o que é uma ‘ameaça para a ordem pública’. O juiz dá sentido e conteúdo às referidas palavras. Ele finaliza a lei, dela faz uma norma.

O poder dos juízes coloca perguntas sobre o paradigma democrático, cujo fundamento é o voto, finaliza Rousseau. Pelo voto os eleitores exercem sua vontade que coincide com a dos eleitos. A legitimidade exige o circulo entre as duas vontades, a do eleitor e a do eleito. Já o poder dos juízes é de inspeção, controle. A fusão entre representados e representantes é negada, ou tida como insuficiente. Para que exista democracia é preciso, doravante, que ocorra um direito de controle e o exercício desse direito, entregue ao juiz (16).

O que Dominique Rousseau descreve pode ser o desejo soteriológico que anseia pela ingerência da magistratura na ordem pública. Mas quando o autor relativiza a democracia eletiva em favor do controle judicial, sem   voto, é possível temer pelo futuro. Uma tirania togada não é menos letífera. Juízes integram a essência do Estado e não lhes cabe alheamento. Mas não se pode dizer que eles têm legitimidade para se imiscuir, sem votos e sem prestar contas ao povo, do que é próprio aos demais poderes. Tal situação seria típica das ilegitimidades ex defectu tituli. A menos que os juízes sejam eleitos, como ocorre nos EUA. Mas as togas fogem de tal possibilidade: colocar a sacrossanta justiça nas mãos sujas da cidadania? Jamais!

Com os exemplos do passado e do Brasil – basta recordar a notícia com que iniciei as presentes linhas – temos razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a prestar contas ao povo soberano. Ainda vivemos no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita. Nele, o cosmos natural e político vai dos seres próximos do divino, arcanjos, aos sacerdotes. Abaixo deles vem o laós, composto pelos que só merecem lições e governo. Tal escala sagrada foi destruída por Lutero e pelas Revoluções modernas. Em  nosso Estado, sobretudo no Judiciário, estamos longe da Reforma e da urgente democracia.

 



NOTAS

 (12) J. Günther; Meliá, M. C.: Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Porto Alegre. 2008, p. 30. “Alguns autores criticaram vivamente a análise de Jakobs, condenando muito particularmente a noção de inimigo no coração desta construção, vendo nela com frequência a sulfurosa noção de inimigo de Carl schmitt, –o ‘communis hostis omnium’” Jocelyne Leblois–Happe, Xavier Pin,Julien Walther: “Chronique de droit pénal allemand (Période du 1er janvier 2011 au 31 décembre 2011”), CAiRN, https://www.cairn.info/publications-de-Leblois-Happe-Jocelyne--4782.htm. Cf. F. N. Bianchini, Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e Democracia Participativa na apologia de Tocqueville (Millenium Ed.). No prefácio, cito o  “inimigo” schmittiano, tal como acolhido no Brasil,

(13) Júnior, D. C.: Curso de Direito Constitucional,  éd. Podium. 2009

(14) Cf. E. Black: A Guerra contra os Fracos. A eugenia e a campanha norte -americana para criar uma raça superior (RJ, A Girafa, 2003).

(15) A mera lista dos ministros da justiça prova: juristas do mais alto escalão, menos Couto e Silva, integraram o poder que destruiu as liberdades públicas e a dos indivíduos. Os Atos institucionais foram idealizados, sob a égide de Carl Schmitt, pelo redator da Polaca, Francisco Campos, que sempre teve excelente acolhida no judiciário nacional. “Que teríamos feito sem os juristas alemães? Desde 1923 percorri na legalidade e na lealdade o longo caminho que leva ao poder. Juridicamente coberto, democraticamente eleito. (...) Foi o incorruptível jurista alemão, o honesto, o consciencioso, o escrupuloso universitário e cidadão, que acabou por me legalizar ao fazer uma triagem das minhas idéias. Ele criou uma lei do meu agrado e a ela me ative. Suas leis fundamentaram, no direito, a minha ação”. (Hitler, no filme de H. J. Syberberg, Hitler um filme da Alemaha).

(16) D. Rousseau: “Le rôle du juge dans les sociétés modernes” (2001) no sítio Histoire, Géographie, Éducation Civique http://pedagogie.acamiens.fr/histoire_geo_ic/mspip.php?article250 E também D. Rousseau e outros: “Gouvernement des juges et democratie. L’Emergence d’un concept?” in S. Blondel e outros: Gouvernement des juges et démocratie. Publications de la Sorbonne, 2001. p. 325. O jurista Bastien François, no colóquio aqui citado, chama o “governo dos juízes” de “monstruosidade conceitual”. No caso do Brasil, seria certo repetir: El sueño de la razon produze monstruos.

 

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