Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Políticas públicas, motivos reais e argumentos eficazes

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Ilustra: Luppa SilvaJá houve tempo em que a escola apanhou feito gente grande. A escola em geral, não esta ou aquela em especial. Houve mesmo um tempo em que se falava em desescolarizar a sociedade. Havia argumentos para todos os gostos e com diferentes graus de sofisticação. Alguns muito agudos, com aspectos que todo educador deveria levar a sério.

Ainda hoje se fala muito em desescolarizar – inclusive em desescolarizar a escola, isto é, em reinventar a escola, de fato. O tema rende. Mas talvez isso não nos surpreenda e não nos coloque na defensiva se tivermos alguma perspectiva histórica para ponderar as motivações.

Basta, por exemplo, averiguar como e por que, em certas ocasiões, a expansão da escola pública foi defendida por políticos conservadores. No século XIX, alguns ingleses desse perfil argumentavam que as escolas serviriam para botar na linha e colocar sob vigilância umas centenas de pivetes das classes populares. Se não fossem recolhidos em escolas, ficariam na rua promovendo confusões. Episódio da conhecida série “As classes perigosas”.

John Abbott  e Heather McTaggart vão mais longe, em Overschooled but undereducated: is the crisis in education jeopardizing our adolescents? - Continuum International Publishing Group. 2010]:

 “Em 1904, psicólogos americanos, observando a vida aparentemente caótica e disfuncional de adolescentes que não tinham nada de significativo para fazer e sem modelos a seguir, passaram definir a adolescência como uma espécie de doença causada pelo rápido desenvolvimento de hormônios sexuais. Isso, eles argumentaram com força (mas de modo simplista) com políticos que queriam impressionar, tinha que ser tratado com uma extensão dos anos de escolaridade, para 'proteger' os adolescentes contra os riscos da vida adulta, até que estivessem suficientemente maduros para se virarem por conta própria. Este foi o nascimento da escola secundária moderna... “

O trajeto lógico era sólido: define-se a adolescência como uma espécie de doença. Desenha-se, a seguir, o tratamento: aumentar o número de anos na escola, para “proteger” os garotos e garotas diante de uma vida adulta para a qual não estavam maduros. Uma espécie de sequestro preventivo ou internação não consentida.

O mais chocante no texto dos autores é a sequência: “esse é o nascimento da moderna escola secundária”.

Não precisamos dessa frase eventualmente cruel para saber que com frequência a implantação e expansão de determinadas públicas são o resultado de intervenções políticas com argumentos, razões ou motivações oblíquas, para dizer o mínimo. A coisa certa defendida com argumentos errados – ou o contrário.

A expansão do ensino médio nos Estados Unidos, nos anos 1930, costuma ser associada a uma política social não-declarada, para conter o desemprego e prover subsistência, ainda que modesta, a hordas de jovens. Faz sentido. Como faz sentido interpretar o GI Bill, a montanha de bolsas distribuídas a desmobilizados da guerra, como uma política de auxílio-desemprego travestida de investimento em educação. Talvez os legisladores tivessem levado em conta a chamada “cultura individualista”, com frequência associada às raízes mesmas da sociedade americana. Numa sociedade avessa à ajuda estatal, a iniciativa teria menos resistência se apresentada de outro modo – talvez até recebesse, como foi o caso do GI Bill, um apoio entusiasmado. Outro caso interessante é a reforma do sistema educativo, no final dos anos 1950. Com aspectos de interferência federal suscetível de provocar resistência, ela foi promulgada como capítulo de uma lei de defesa nacional – o argumento que a sustentava era o fantasma da competição com a União Soviética.

Assim, talvez valesse a pena considerar o modo pelo qual as questões são apresentadas à chamada opinião pública – levando em conta que frequentemente ela é fortemente esculpida pela opinião publicada, isto é, pelos detentores da indústria de informação e entretenimento.

Por vezes é preciso confrontar os prejuízos e inclinações. Por vezes é conveniente contorná-los e, ao modo tai chi chuan, reorientar sua própria força para objetivos diferentes.

Uma política social de redução da pobreza ou da desigualdade pode ser apresentada como uma política de investimento no mérito. Dependendo do modo como se faz a operação, com o tempo, a própria noção de mérito começa a ser requalificada. Alguns talvez se deixem convencer pelo argumento moral ou político da ajuda aos “sem sorte”. Outros se sentirão mais afetados pelo argumento de que é melhor (por diversos motivos) ter escravos menos nervosos. Outros, ainda, pensarão na capacidade desses escravos, na hora de prover os serviços básicos dos senhores.

É claro que há, também, aqueles que resistirão a qualquer desses “argumentos”. Ou porque deles desconfiam ou porque são obtusos demais para perceber o risco que correm. Talvez confiem demais nos outros escravos que manejam as armas e controlam a turba.

 

 

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