Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Paraísos fiscais (2) – Bem mais do que uma Suíça

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Ilustra: Luppa Silva A imagem da ilha do tesouro e seus piratas é antiga, assim como suas afinidades com o poder político. No século XVI, alguns deles eram mais do que aristocratas, frequentavam com grande intimidade as damas da corte, inclusive a rainha. O império britânico desabou, como ocorre com todos os impérios, um dia. Mas a City londrina, seu coração financeiro, renasceu dessas cinzas para se tornar a capital de outro império, aquele do crime credenciado, com pontos de ocultação e desova espalhados pelo planeta. Também nesse novo império, o sol nunca se põe.

O nascimento dos modernos paraísos fiscais é controverso, sua história é um emaranhado de circunstancias e ações deliberadas. Assim, quando terminou a segunda guerra, os países que sobraram de pé começaram a reorganizar o sistema de trocas – a começar pelo comercio internacional, claro, as tarifas e regras de movimentação de mercadorias entre fronteiras. Mas não foi apenas esse tráfico que cresceu. As grandes empresas manufatureiras, sobretudo americanas, perceberam a oportunidade e a conveniência de estabelecer filiais mundo afora, produzindo em outros países aquilo que antes vendiam de além-mar. Como era de se esperar, com esses movimentos se coordenaram o dinheiro e o crédito, os bancos. Na arquitetura econômica do pós-guerra, aquela chancelada em Bretton Woods e fortemente influenciada pela visão ketnesiana, o movimento de capitais era bastante regulado.

Não demorou e toda essa internacionalização, bem sucedida, foi gerando massas de lucros e juros em cascata, em busca de proteção, sigilo e, claro, novas oportunidades para seguir seu próprio mandamento de “crescei e multiplicai-vos”. 

Naquela ocasião, esse refúgio tinha um endereço quase exclusivo. Desde 1934, a Suíça protegia fortemente os depósitos bancários, com leis que criminalizam a difusão de informações sobre os clientes, inclusive para governos. Inventaram uma estorinha melosa, dizendo que se tratava de iniciativa humanitária, para proteger judeus perseguidos pelo nazismo. A fragilidade dessa lenda conveniente fica muito clara, contudo, quando vemos as circunstâncias da invenção: a lei protetora vem logo depois de um escândalo envolvendo ricaços franceses, de bispos a generais, passando por oligarcas de todo tipo. 

Aos poucos, foi-se criando um outro centro de grana sem pátria, em Londres, o chamado mercado dos eurodólares. A origem é controvertida. Alguns a relacionam com os depósitos de divisas soviéticas, que desconfiavam dos bancos americanos. Queriam fazer deposito em dólar, mas não na terra do adversário. Além disso, as próprias filiais das empresas internacionalizadas precisavam operar grandes massas de lucros retidos. E, por fim, o dinheiro dos novos ricos do petróleo, aqueles xeiques da Arábia. Muita grana armazenada e pronta para financiar... ditaduras no terceiro mundo, aqueles brucutus latino-americanos e africanos que queriam construir pirâmides com os ossos de seus compatriotas. Os ditadores ganhariam suas comissões e, claro, precisavam de cofres protegidos e sigilosos. Private banking neles, City!

Com o tempo, mesmo bem equipadas, Suíça e Londres foram ficando insuficientes para as numerosas manobras de esconde-esconde da grana. Em 1980 veio a solução. E não foi nada “espontânea” como um troca-troca de mercado. A força do estado foi decisiva. Grandes reformas nos sistemas bancários dos EUA e Inglaterra tornaram viáveis movimentos bem mais ousados desses países. A Inglaterra tinha um az na manga. Suas antigas colônias, hoje quase-países, com soberania mas vinculados à Commonwealth e dela dependentes, estavam bem ali, prontas para o serviço. Um punhado de ilhotas e cidades-estados, dispostas a vender suas leis para o capital cigano. 

Não demorou, o sistema se organizou. Com divisão de tarefas e hierarquias. A Suíça continuava no jogo, mais do que nunca. Muito do que se faz nessas ilhotas se articula em Zurique. Londres despontava como a outra praça central. E, claro, Wall Street, depois das desregulações promovidas por Reagan e seus sucessores, republicanos ou democratas, tanto faz. Estava pronta a infraestrutura legal para a expansão de um sistema de pirataria planetária e, agora, imaterial, puramente financeira. Com o tempo, puramente digital. Nas novas ilhas do tesouro não se deposita ouro ou prata. Depositam-se contratos, títulos e ações, copyrights, patentes, créditos e débitos.  Intangíveis. Riqueza em seu terceiro estado, o gasoso.

Do crime “comum” ao
crime com pedigree e CNPJ

Para quem se acostumou a pensar a lavagem dinheiro e o paraíso fiscal como atividade de traficantes e bandoleiros, pode parecer chocante a convivência feliz que encontramos nas ilhas modernas – homens “de bem e de bens”, grandes corporações e bancos, grandes e prestigiosos escritórios de advocacia compartilham segredos e procedimentos com traficantes. E com agentes da “inteligência americana”, talvez a maior organização criminosa do mundo. O clube é diversificado.

Vivem no mesmo espaço, utilizam os mesmos profissionais da lavagem, utilizam os mesmos canais de movimentação dos fundos. Uma convergência leva a outra, diz Shaxson (Treasure Islands), produzindo “duas transformações simultâneas: ajudando os empreendimentos criminosos a imitar os negócios legítimos, e encorajando os negócios legítimos a comportar-se como empreendimentos criminosos”

Os dados pacientemente acumulados por um pesquisador, Gabriel Zucman, nos dão um quadro espantoso desse reino. O que segue é, em grande medida, apenas a transcrição desses dados, traduzidos e adaptados para o leitor brasileiro. Estão no website do autor e em um livro – The Hidden Wealth of Nations: The Scourge of Tax Havens (The University of Chicago Press, 2015).

A primeira imagem do livro retrata a ocasião em que emergem os novos paraísos, juntando-se à mãe Suíça. Os números são eloquentes. A partir de 1980, pelas razões que explicamos, uma outra constelação se forma.

Figura 1: A riqueza de europeus em paraísos fiscais (% de suas disponibilidades financeiras)

Figura 1: A riqueza de europeus em paraísos fiscais (% de suas disponibilidades financeiras)

A Figura 2, por outro lado, contrasta uma impressão fortemente popularizada: mais da metade dessa riqueza pertence a europeus, não a oligarcas russos ou ditadores africanos.

A Figura 2, por outro lado, contrasta uma impressão fortemente popularizada: mais da metade dessa riqueza pertence a europeus, não a oligarcas russos ou ditadores africanos.

É claro que, se pensamos na dimensão dos países africanos e latino-americanos (seus PIBs), os montantes são muito significativos.  E nos levam a pensar nos custos dessa evasão para o desenvolvimento desses países. A figura mostra o “de onde vem o dinheiro”. Mas vale a pena olhar, também, o lugar para onde vai, isto é, como é reciclado, aplicado, o que aparece na coluna da direita (investimentos).

A Figura 3 destaca o papel ainda relevante (e articulador) da Suíça nessa constelação. Devemos lembrar que estima-se a existência de mais de sessenta paraísos fiscais. Em termos globais, a estimativa que se pode fazer, nesse reino de dinheiro de difícil rastreamento, é que uns 8% da riqueza financeira (não imóvel) dos bilionários do mundo está depositada nesses bancos. Um terço disso fica na Suíça, estritamente. Por outro lado, várias operações “sediadas” em ilhas são, de fato, organizadas e processadas pelos grandes centros (Suíça, Londres, N. York).

A Figura 3 destaca o papel ainda relevante (e articulador) da Suíça nessa constelação. Devemos lembrar que estima-se a existência de mais de sessenta paraísos fiscais. Em termos globais, a estimativa que se pode fazer, nesse reino de dinheiro de difícil rastreamento, é que uns 8% da riqueza financeira (não imóvel) dos bilionários do mundo está depositada nesses bancos. Um terço disso fica na Suíça, estritamente. Por outro lado, várias operações “sediadas” em ilhas são, de fato, organizadas e processadas pelos grandes centros (Suíça, Londres, N. York).

Zucman estima, tanto quanto pode, os custos dessa evasão para os estados (com notórios impactos em suas políticas domésticas). As fraudes significariam algo como US$ 200 bilhões de perdas para os governos, apenas em 2014.

A figura 4 retrata uma evolução no Sistema. Em resposta a normas dos países (inclusive a regulamentação europeia de 2005), os depósitos vão mudando de forma, para facilitar o anonimato e as isenções fiscais. De pessoas para shell-corporations, empresas-biombo ou laranjas. Daquele dinheiro com pedigree, o das grandes famílias ricas, para o dinheiro com CNPJ, empresas. Os paraísos modelam suas leis de modo a permitir o registro de corporações sem a identificação de seus proprietários e dirigentes. Para os Trusts, em geral basta a identificação do beneficiário, não do proprietário.

A figura 4 retrata uma evolução no Sistema. Em resposta a normas dos países (inclusive a regulamentação europeia de 2005), os depósitos vão mudando de forma, para facilitar o anonimato e as isenções fiscais. De pessoas para shell-corporations, empresas-biombo ou laranjas. Daquele dinheiro com pedigree, o das grandes famílias ricas, para o dinheiro com CNPJ, empresas. Os paraísos modelam suas leis de modo a permitir o registro de corporações sem a identificação de seus proprietários e dirigentes. Para os Trusts, em geral basta a identificação do beneficiário, não do proprietário.

Até aqui destacamos principalmente a riqueza de pessoas físicas. Veremos, nesta série, que este é apenas um pedaço do sistema e, cada vez mais, seu pedaço menor. A Figura 5 mostra a relevância dos paraísos para as empresas transnacionais sediadas nos Estados Unidos. Cada vez mais, os paraísos se tornam não apenas refúgio para o dinheiro dos ricaços, mas centro de operações fundamentais para empresas, bancos e fundos de investimento de todo tipo.

A Figura a seguir mostra a relevância dos paraísos para as empresas transnacionais sediadas nos Estados Unidos. Cada vez mais, os paraísos se tornam não apenas refúgio para o dinheiro dos ricaços, mas centro de operações fundamentais para empresas, bancos e fundos de investimento de todo tipo.

Nos artigos seguintes desta série discutimos uma literatura que busca enquadrar esses dados em esquemas mais amplos, tentando interpretar o significado dos paraísos na organização do sistema capitalista global.

 

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