Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

‘Mani Pulite’. A tragédia, a farsa e a ressaca

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Ilustra: Luppa SilvaLi agora em maio, na capa de uma revista francesa: Salvini, o homem forte da Europa. Matteo Salvini é o chefe de governo da Itália. Daí me perguntei como é que a Itália e a Europa haviam chegado a este ponto. Mas imediatamente me lembrei que em 1927 o estadista Churchill havia previsto o ascenso fascista como o caminho certo e belo para impedir o flagelo socialista. Será que Salvini, o Benito 2.0, reencarna a esperança conservadora?

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Salvini, il Duce 2.0?

Como isso se produziu? Um momento decisivo para o traçado desse caminho foi o começo dos anos 1990, com uma operação-limpeza capitaneada por policiais, promotores e juízes italianos. A operação Mãos Limpas (Mani Pulite – MP). Alguns dos agentes eram aparentemente bem intencionados, ainda que um pouco certos demais de suas convicções espirituais. Outros, porém, menos ambíguos, pareciam mais próximos dos prazeres da carne.

A operação foi antes de tudo uma tragédia – ainda que tenha trazido como resultado imediato um pasticiacio italiano, a era Berlusconi.

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Capa do Libération em dezembro de 2012

A operação teve lances cinematográficos. Um drama ao vivo e em cores. Com o espetáculo diário de vazamentos de informações escandalosas que faziam a alegria dos meios de comunicação. Ao todo, nos dois anos de operação, foram quase 5 mil prisões, mas apenas 1.300 condenações. Em compensação, 31 suicídios, entre 1992 e 1994. Vários deles com requintes de drama – eram inocentes que não suportavam a destruição de sua imagem e o desgaste psicológico. Alguns chamam essas ocorrências de “danos colaterais”, civis atingidos em uma guerra.

A tragédia foi clara: reduziu um país de enorme tradição política à figura de uma feira de horrores. Farsa e ressaca não tardariam a revelar-se.

A operação, iniciada em 1992, prendeu muitos empresários e políticos, destruiu os partidos existentes. E terminou em 1994, com a vitória de uma nova coligação de direita, chefiada por um capitão da mídia, Berlusconi, que habilmente reagrupou com rapidez toda a Itália criminosa. No meio do processo, o país afundou como nunca, em todas as dimensões. Danos colaterais, não se faz omelete sem quebrar ovos (contanto que os ovos sejam os dos outros).

A operação também bateu outros recordes. Outros países europeus já haviam tido operações similares. A operação italiana custou quatro vezes mais... não se sabe exatamente por quais razões. Talvez porque tivesse que pagar alguma propina?

A Itália do pós-guerra havia sido reconstruída a duras penas. Um país esfarelado se transformara em potência industrial e laboratório de políticas de integração social. Nos anos 60, a segunda geração da Democracia Cristã ensaiava uma ampliação dos acordos políticos e incorporava a aliança com o Partido Socialista, aceitando como regra a intervenção estatal e as políticas do estado de bem-estar. Nos anos 70, parecia iminente a extensão desse acordo em direção à esquerda. Enrico Berliguer liderava uma corrente renovadora, no mais heterodoxo partido do comunismo ortodoxo. E o “compromisso histórico”, envolvendo DC, PSI e PCI, parecia cada vez mais trazer a Itália para o centro da política europeia, como exemplo de superação da Guerra Fria. Só que não. No meio do caminho tinha um Moro. Calma, era outro. Aldo Moro, líder renovador da DC, estava no meio do caminho, era uma pedra a ser removida, para responder aos interesses da oligarquia mais conservadora e, não esqueçamos, os interesses do império, aquele que vigiava do outro lado do Atlântico. Os manuscritos de Moro, divulgados depois de sua morte, revelavam esse conflito latente com a presença dos interesses americanos. Com a ajuda não contratada das Brigadas Vermelhas, a direita conseguiu produzir o trauma necessário à reversão de toda essa política. Moro, sequestrado, a direita fazendo corpo mole para libertá-lo, sabotando eventuais negociações... Moro morto, compromisso histórico enterrado.

Estava aberta a porta para o retrocesso, mas ele teve que esperar um pouco mais. Antes, era necessário “limpar” o espaço público, alterando o senso-comum, removendo a convicção de que através da política se produz consensos e acordos. Difundir ideias privatizantes. Voltemos então ao começo da saga. O braço armado dessa ofensiva anti-política – inicialmente modesta, despretensiosa – foi a tal operação MP. Um punhado de juízes, procuradores e policiais coloca na sua agenda a intenção de liberar as cidades de suas redes de corrupção. A operação, que foi inicialmente conhecida como Tangentópoli – junção de pólis com tangento (propina), cresce e vai atingindo políticos cada vez mais poderosos da DC e do PSI. O PCI é atingido lateralmente, pelo envolvimento de militantes menos relevantes e, também, pelo fato de colaborar com os outros partidos, tolerando e aceitando, implicitamente, a rede de interesses escusos. A progressão dos fatos é logo capturada pela intervenção midiática – que era vista pelos agentes (juízes, promotores) como ferramenta essencial para deslegitimar a resistência dos poderosos interesses envolvidos. Só que a mídia, aparentemente, queria mais. E teve o que parecia pretender: a completa desmoralização da “partidocracia”. Assim se espalharia a convicção de que o espaço da política era o da corrupção, o espaço da “sociedade” era o da pureza. Acordo, consenso passou a significar conluio, conspiração. Com um pouquinho mais de mídia, “sociedade” passava a ser “soluções de mercado”, gestão, produção de todos os bens através de empresas privadas, supostamente mais eficientes, transparentes, imunes à corrupção. Inicio dos anos 90 essa “renovação” das ideias coletivas se completava – um novo “saber convencional” tomava posse da alma dos italianos. Um novo senso comum, privatizante. Chegava ao topo do poder o homem que representava essa nova era – um empresário efusivo e, vejam só, dono de um império de mídia. Berlusconi aparecia como alguém que não era político profissional – e um gestor ‘sério”, ainda que também ostentando seu lado de personagem de ópera de circo, um traço que iria se acentuar ao longo do tempo, até se tornar sua marca registrada.

Berlusconi assombrou a Itália por vinte anos e, como subproduto de sua criatividade, foi trazendo para a nova cena atores um pouco similares, um pouco diferentes, em certos aspectos ainda mais radicais. Acomodou a já existente Lega Nord, campeã da rejeição de impostos, depois o Movimento Cinco Estrelas.

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Pai, Filho. Mani Pulite seria o espírito santo?

O Cinco Estrelas é particularmente interessante. Um partido-anti-partido, que apela a uma suposta “nova política”. Construído a partir de uma empresa de comércio pela internet, especializada em interpretar e manusear os interesses dos consumidores, pode ser visto como uma espécie de avant-premier da Cambridge AnalytIca de Steve Bannon e seus amigos. Gianroberto Casaleggio, o dono da firma-partido, alçado à categoria de ventríloquo, descobre seu boneco falante, um Grillo, Bepe Grillo, comediante que passa a encarar a “negação de tudo o que está aí”. Grillo é o centroavante da nova política. A Itália recria Gepeto e Pinochio.

Vale lembrar que já existira, no pós-guerra, um movimento algo similar, criado pelo jornalista e dramaturgo Guglielmo Giannini, que publicou seu Uomo Qualunque em 1944. O Qualunquismo, uma derivação maior não inteiramente prevista pelo criador, virou uma espécie de rótulo para o cinismo, a atitude do “pouco me importa”. Não é casual, portanto, que um livro recente sobre Grillo tenha este título: Um Grillo Qualunque (de Giuliano Santoro).

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Guglielmo Giannini, pai do Qualunquismo

Casaleggio e Grillo somaram a essa atitude absenteísta a idéia mais “moderna” da privatização das relações sociais, da idéia de que “tudo está à venda” e tudo pode ser vivido e organizado como um grande mercado. E assim se fez a Itália moderna, essa que agora vemos eleger Benito 2.0. Certamente voltaremos a este personagem mais adiante, nesta coluna, porque este drama (ou ópera bufa?) parece ter futuro. Aguardem os próximos episódios...

 

 

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