Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Da Espanha, lições do ódio

Fotos
Edição de imagem

Ilustra: Luppa SilvaNas ultimas eleições gerais da Espanha, a facção mais extremista do partido conservador (PP) conseguiu se firmar como agremiação independente, o Vox. Obteve 10% dos votos nacionais e teve também um percentual pequeno nas eleições municipais e autonômicas. Mas foi o suficiente para operar como “fiel da balança”, garantindo-lhe espaço para barganhar com os outros dois partidos da direita, já que no sistema espanhol, de corte parlamentarista, o executivo se forma a partir das proporções do legislativo, do número de cadeiras de cada partido.

Assim, com cara própria e alguns postos em governos locais, o Vox se animou a mostrar os dentes. É mais ou menos (mal comparando) um PSL espanhol. Com similares de Joyce, Frota, Delegado Waldir e outros do zoológico tupiniquim.

E o que faz um grupo de ultradireita quando tem ferramentas de governo? Faz direitices, que parecem apenas extravagâncias, mas deixam estragos. Na Espanha, agora, Vox se empenha em retirar das praças e ruas os cartazes que falam em "violência machista". E chamam de violência intrafamiliar. Também estão tentando censurar as manifestações LGTB. Coisas assim. Mas nada disso se compara ao que tentam fazer em Cadrete, uma cidade da região de Aragão, nordeste da Espanha. O jornal Publico noticia o fato e transcreve a polêmica que apareceu nas redes sociais. Hilário e trágico ao mesmo tempo.

Uma das patetices nada inocentes e inofensivas dos ultra-ultra é retirar de uma praça o busto do califa de Córdoba, Abderraman III. O califa foi um padroeiro da arte e da ciência, criou a primeira academia de Medicina da Europa, espalhou bibliotecas. Para piorar a cretinice dos seus atuais adversários, Abderraman III era nascido em Espanha, assim como seu pai e seu avô! Um dos "tuiteiros" recorda que tratá-lo como "estrangeiro invasor" e tratar o visigodo Leogevildo como nativo é pelo menos engraçado.

Como se sabe, a história da humanidade é feita de invasões e missões civilizatórias. O rótulo depende do ponto de vista. Persas e árabes invadiram. Gregos e romanos expandiram a civilização. Bem como os espanhóis, no México, por exemplo. Imigrantes também mudam de nome conforme a conveniência. Há imigrantes demais na Espanha, segundo a ultradireita. O que é engraçado para um país cujo principal produto de exportação, durante muito tempo foi... gente. O ex-chefe de governo Felipe Gonzalez registra, em um recuerdo, que na época em que estudava na Suíça, os bares daquele país tinham cartazes assim: “Proibida a entrada de cachorros e de espanhóis”. Vox parece querer dar o troco, mas não para os suíços. Falam grosso com equatorianos e argelinos, mas falam fino com os homi dos banco.

Bem, os árabes invadiram a Europa. Inegável. As marcas estão em toda parte. Comerciantes transcontinentais, fizeram circular ciências, técnicas, artes. Até ensinaram os europeus a temperar os alimentos e balancear a dieta. Na bela sinagoga de Toledo há uma exposição permanente sobre a era dos árabes na Península Ibérica. Um dos quadros comenta frase de um escritor judeu: "Nunca fomos tão livres como na época da dominação islâmica".

Em todo lugar, principalmente nas cidades antigas ao sul da região madrilenha, se vê a presença árabe, com o posterior "sepultamento incompleto" produzido pela estupidez dos reis católicos, que sequer conheciam a fina cultura católica, apenas a da Inquisição.

Ao que parece, Voz pretende reativar essa vontade de mergulhar na escuridão.

Vale a pena reproduzir alguns dos tuiters sobre o tema, reproduzidos por Publico. Mantenho o espanhol, porque acho que não conseguiria recriar a ironia dos comentários:
 

  1. Esperemos que los de VOX no se tropiecen un día con un libro y descubran lo de la Mezquita de Córdoba y la Giralda de Sevilla.
     
  2. Tu a estos de Vox los dejas a su bola en Andalucía, y te demuelen la Alhambra de Granada, la mezquita de Córdoba, y si les sobra tiempo los Reales Alcázares y la Giralda...
     
  3. Ya era hora que alguien se interese por los problemas que preocupan a la ciudadanía y acabe con todo rastro de Abderraman III
     
  4. Que dicen los de VOX que eso de Abderramán III, no les cuadra como español, que lo verdaderamente español es apellidarse Smith.


Este último merece uma nota. Refere-se certamente a Javier Ortega Smith, dirigente do Vox que tem dupla nacionalidade (argentina e espanhola) e carrega esse sobrenome nada ibérico. É um dos mais extremados “voxistas”. Se depender dele, as fogueiras serão reativadas.

Mas um tuíter me parece ter acertado mais no ponto:

“Uno de los diputados de VOX en el Congreso es un profesor de  la Universidad de Córdoba, experto en traducción de textos literarios árabes e islámicos del Al-Andalus. Claro que saben quien fue Abderramán III, y si retiran sus estatuas no es por ignorancia sino por ideología.”

Como sabemos, entre os luminares do PSL e quejandos não há nenhum inútil beletrista como esse professor de Córdoba. São todos homens e mulheres práticos, com saberes de outra natureza. Joyce, Frota, Delegado Waldir, coronéis e pastores. Mas o resto é verdade: não fazem o que fazem porque são ignorantes, é por ideologia. São brutamontes totalitários. A ignorância vem no pacote.

 

twitter_icofacebook_ico