Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Por que eu acreditava que a Terra é redonda?

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Ilustração: Luppa SilvaLogo de cara é preciso avisar que ainda acredito nisso, aliás, sei que é e conheço métodos para demonstrá-lo (na verdade uma esfera levemente achatada nos polos). Acreditar, saber e conhecer são, no entanto, verbos diferentes, sendo os dois últimos indissociáveis em grande medida à minha formação como físico. Mas eu acreditava antes de saber, acho que lá pelos seis ou sete anos de idade, e é essa época que eu puxo da memória agora. Então, por que eu acreditava que a Terra era(é) redonda?

As ilustrações que acompanham a coluna resumem essa história. Eu tinha sete anos de idade, quando assisti com meus pais ao pouso do primeiro humano na Lua. Logo depois, meu pai comprou a edição especial da revista Fatos & Fotos, “O homem na Lua – documento histórico”, acompanhada de um disco – compacto duplo – com os principais momentos narrados pela “Voz da América” (imagem abaixo). A revista trazia as imagens da Terra redonda, as trajetórias da missão espacial, saindo da Terra, chegando à Lua e voltando à Terra. Terra e Lua, ambas redondas. A edição especial da revista ficou vários anos na prateleira abaixo do aparelho de TV. Junto com dois dos atlas da casa, essas coleções de mapas com aquelas linhas indicando as latitudes com espaçamentos diferentes. Eu perguntava para o meu pai, porque aquele quadriculado era diferente daquele do papel que ele usava no trabalho. Porque a Terra é redonda, meu filho, e o mapa é uma folha.

Imagem: Reprodução

Famílias luteranas, portanto não afeita aos santos, substituíam os oratórios por outros objetos. Globos terrestres surgiam frequentemente. Ainda são encontrados para venda hoje em dia, mas naquela época eram, pelo menos para alguns grupos, verdadeiros objetos de desejo, em particular entre alemães. Talvez não seja, portanto, coincidência que o verbete “globo terrestre” em alemão é o mais extenso e completo na Wikipédia, quando comparado aos em outras línguas ocidentais. Ganhei um de Natal num desses anos de infância, que ainda está lá em casa, não mais em destaque, mas em uma prateleira alta de um quarto. A foto de baixo para cima mostra o continente gelado, a Antártida, não como a borda de uma pizza, mas como ele realmente é.

Por fim, as histórias em quadrinhos. O álbum “Explorando a Lua” das aventuras de Tintim (abaixo), traz a imagem da Terra, chapada, sem sombras, mas o volume esférico estava lá: só aquela parte dos continentes era visível aos exploradores naquele instante desenhado. Não havia como não acreditar na redondeza do nosso planeta: informações de diferentes fontes consistentes entre si. Não havia teorias de conspiração negando a ida humana à Lua e Terra plana era coisa da Idade Média [I]. Acho que todos meus amigos e colegas se perguntados diriam que a Terra era redonda, mas se fôssemos questionados mais a fundo, o assunto ficaria confuso. Como? Por quê? Como conciliar com a experiência cotidiana? Para mim, respostas vieram até que rapidamente.

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Nessa época, em que um homem foi pra Lua ou em que, alguns meses depois, a diretora da escola irrompera na sala de aula pedindo para que rezássemos pelos astronautas da missão Apollo 13, meu pai colecionava os fascículos da “Ciência Ilustrada” [II]. Cada fascículo trazia artigos sobre assuntos de diferentes ciências e, ao final, pequenas biografias de cientistas. Foi aí que tomei contato com Eratóstenes de Cirene (276 a.C. – 194 a.C.), matemático e astrônomo grego (entre outras atividades), que mediu a circunferência da Terra e, portanto, o diâmetro dessa esfera. A ideia era muito simples e o resultado foi bastante preciso. A história é curiosa e encontra-se bem descrita em vários lugares, inclusive na Wikipédia [III]. Em resumo, como o Sol está muito distante, os raios solares chegam a nós praticamente paralelos. Pois bem, Eratóstenes, que era diretor do equivalente de uma universidade naquele tempo, a Biblioteca de Alexandria, achou um manuscrito que relatava que ao meio dia no solstício de verão na cidade de Siena não havia sombra. Em Alexandria sim havia, e dava para medir o ângulo de incidência dos raios solares pelos tamanhos das sombras. Eratóstenes contratou alguém para medir a distância entre Alexandria e Siena (que hoje se chama Assuan, que como Alexandria fica no Egito). E a distância corresponderia a esse ângulo, que era uma fatia estreita dos 360o da circunferência da Terra. Pois bem, fui a um dos atlas, que ocupavam aquele lugar nobre abaixo da TV, e chequei a distância entre Alexandria e Assuan, fiz a “regra de três” que cabia e saí contente: entendi como medir o tamanho da Terra redonda e, checando as tabelas no atlas, me espantei com a acurácia do antigo sábio grego.

Segundo algumas fontes, o sucesso da coleção “Ciência Ilustrada” (abaixo), animou a editora Abril a lançar outra coleção, “Os cientistas” [IV]: a cada quinze dias saía uma caixinha de isopor com peças e insumos para fazer experiências ligadas ao trabalho do cientista em pauta, acompanhado de um fascículo sua biografia. Começou em 1972, o primeiro foi Isaac Newton com suas leis do movimento, mas na sua biografia estava lá a gravitação universal. Tive o prazer de ter todos os cinquenta kits. O sexto era sobre Galileu e a queda dos corpos. Aprendi, então, com 11 anos a medir a aceleração da gravidade e começava a entender como a Terra redonda funcionava.

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Muitos colegas da minha geração podem lembrar histórias parecidas, a coleção “Os cientistas” é considerada a maior ação de divulgação científica já realizada no Brasil. Foram, segundo estimativas, entre 50 mil e 250 mil exemplares de cada kit distribuídos em bancas de jornal [V]. Mas em tempos de Terra plana é importante entender como os conceitos se formam e se enraízam em crianças e jovens. É sobre isso que Stella Vosniadou e William Brewer se debruçaram no artigo “Mental models of the Earth: a study of conceptual change in childhood” [VI]. O artigo é de fôlego, baseado em questionários para crianças na primeira, terceira e quinta séries do ensino fundamental. As respostas revelavam inconsistências: por um lado a Terra era redonda, mas por outro seria plana e teria uma borda. Os autores identificaram cinco modelos mentais diferentes para nosso planeta, segundo as respostas e desenhos das crianças. Os modelos estariam ligados (parece óbvio, mas em ciência sempre é bom checar) à experiência do dia-a-dia. Alguns modelos não sobreviviam à exposição de informação culturalmente aceita sobre a terra esférica. No processo de aquisição de conhecimento, crianças parecem modificar seus modelos iniciais, adequando-os ao que é culturalmente aceito e gradualmente reinterpretando seus pressupostos. “Crianças chegam ao entendimento de que a Terra é uma esfera somente quando os pressupostos iniciais (para dar conta do que observam no cotidiano) são reinterpretados”. Isso parece se consolidar só lá pelos 13 anos, ou seja, é um processo lento e gradual.

A referência ao artigo comentado no parágrafo anterior eu obtive em outro do sítio livescience.com: “Terra plana: o que alimenta a teoria da conspiração mais estranha da internet?” [VII]. E ao olhar a referência com mais atenção (embora não tenha lido as 50 páginas direito) percebi quantas brechas para teorias de conspiração podem aparecer nesses processos cognitivos lentos e graduais. E que se não forem bem feitos, adultos podem mudar seu entendimento pouco sólido e aumentar o número de sócios do clube terraplanista. Em particular, os autores do trabalho com as crianças chamam a atenção ao conhecimento fragmentado: “a fragmentação torna-se aparente, quando crianças dão respostas diferentes a perguntas que são fundamentalmente similares, mas diferem em pequenos aspectos (contextos ou frases ligeiramente diferentes)”.

A fragmentação da informação, juntamente com sua desintermediação, está entre os principais fatores da desinformação científica nos tempos digitais, segundo Francisco Belda em sua apresentação no evento “Fake news na ciência” do ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação 2019. Para uma pergunta busca-se uma resposta por palavras-chave no Google, que remete a um vídeo no YouTube, sabe-se lá de que origem: resposta fragmentada e não mediada. Quando criança, por exemplo, a mediação era dada pela enciclopédia e não por um canal direto como a obtida pelo procedimento de busca descrito na frase anterior. Procedimento que levará, pelo mecanismo de algoritmo de mapeamento de interesses do YouTube a respostas similares, que clicadas acabam reforçando a primeira resposta. Até que o curioso encontra finalmente um “mediador”, o sítio da Sociedade da Terra plana [VIII], por exemplo.

As respostas a esse conteúdo pseudocientífico também acabam sendo parciais e fragmentadas. Contra a terraplanisse ataca-se com Eratóstenes, mas esquece-se das medidas de Aristarco de Samos (310 a.C – 230 a.C), que já colocavam o Sol a uma distância bem maior (ainda que inferior aos valores mais modernos, as medidas exigem precisão maior do que a disponível na época) do que a anunciada por terraplanistas: que seria de cerca de 5.000 quilômetros. O tamanho do Sol, medido por Aristarco, embora inferior aos valores posteriores mais precisos, é bem maior do que o tamanho do Sol terraplanista: diâmetro de cerca de 50 quilômetros, o mesmo do da Lua, também localizada a uns 5.000 quilômetros acima da “pizza”. Falando em Lua, não lembramos nas respostas de mencionar Hiparco de Nicea (190 a.C – 120 a.C), que mediu o tamanho e distância da Lua com razoável precisão, ou seja, bem maior e mais distante, como deve ser, do que anunciados pela Sociedade da terra plana [IX]. Uma resposta mais completa coloca em xeque não só a “planitude” do nosso planeta, mas também as concepções para o Sol e a Lua associadas. Mas isso fica para uma próxima vez.

Respostas apenas parciais e fragmentadas tendem a aumentar o problema, temos a sensação de que seriam suficientes, mas podem reforçar a “articulação” nos argumentos da Terra plana. O Sol está bem “mais acima” do que imaginam os terraplanistas, mas o buraco está bem mais embaixo do que nós pensamos.

 



[I] O que não é verdade, embora tenha se tornado um mito dominante em vários livros textos escolares no século XX.

[II]http://www.anosdourados.blog.br/2014/11/estante-de-livros-enciclopedia-ciencia.html

[III]https://pt.wikipedia.org/wiki/Erat%C3%B3stenes

[IV]vejam o blog com imagens dos kits no menu coluna à direita

[V]https://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/120/78

[VI] Cognitive Psychology, vol. 24 91992), 535-585.

[VII]https://www.livescience.com/61655-flat-earth-conspiracy-theory.html

[VIII]https://www.tfes.org/

[IX]https://wiki.tfes.org/Flat_Earth_-_Frequently_Asked_Questions

 

 

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