Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Apontamentos do século XIX em tempos de cólera para a Covid-19

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Ilustração: Luppa Silva

A cólera é uma doença que pode matar em poucas horas, causada por uma bactéria, o vibrião colérico, e não por um vírus, como o novo coronavírus (SARS-CoV-2), que causa a Covid-19. O vibrião foi identificado somente após várias pandemias. O novo cornavírus no início de sua pandemia. A cólera tem tratamento e vacina, a covid-19 nenhum dos dois. Apesar dessas diferenças, vale a pena atentarmos um pouco à história da cólera ao longo do século XIX, que testemunhou seis pandemias durante 60 de seus cem anos. No entanto, ao contrário da atual pandemia da covid-19, que se espalhou por 185 países em pouco mais de três meses, a cólera foi se espalhando pelo mundo durante anos em cada um dos ciclos pandêmicos. Um resumo da história, mais ou menos completo pode ser encontrado na Wikipedia[I]. Mesmo demorando anos para ir de um canto ao outro do globo terrestre, a disseminação da cólera também foi, em grande parte, devido à modalidade da globalização na época: a colonização direta e, portanto, o crescente trânsito entre colonizadores e colonizados. Deixando de lado a primeira pandemia (1817-1824) com origem na Índia, foi durante a segunda, que durou de 1829 a 1837, que a comunidade científica aventou suas primeiras hipóteses, mas imperava a teoria miasmática do século XVII, atribuindo também aos “odores fétidos” a transmissão da cólera. Foi apenas durante a terceira pandemia (1846-1860) que uma resposta científica rigorosa e contundente foi dada: como a doença é transmitida de fato e como evitá-la e contê-la. Em 1846 morreram milhares de pessoas em Mecca e a cólera aportou à Inglaterra em 1848, sendo que o pior surto da doença na história de Londres foi no ano seguinte.  

Aqui entra em cena um respeitado médico vitoriano, John Snow (1813-1858), que já era conhecido por seus trabalhos em anestesiologia. Preocupado com a cólera também, Snow não acreditava nos miasmas com transmissores da doença e aos poucos formulou a hipótese (que se verificou correta) de que a cólera seria transmitida por água contaminada por fezes e a contaminação se daria então por via oral.  Contaminada pelo que? Esse é outro problema, que será comentado no fim.  Mas voltemos à terceira pandemia e a John Snow. Se a hipótese da água contaminada fosse correta, medidas simples e efetivas poderiam ser tomadas, como, por exemplo, ferver a água antes de consumi-la. Mas como verificar a hipótese, até então tão boa quanto qualquer outra? O médico estudou os dados sobre as pandemias anteriores e analisou a frequência de casos nos diferentes bairros em comparação com o abastecimento de água deles. Percebeu, assim, evidências de que captação de água nos rios perto de onde era despejado o esgoto resultava em um número maior de casos. O artigo de Snow sobre isso, “Sobre o modo de contaminação da cólera”, publicado em 1849[II], não despertou tanta atenção (como deveria): era um artigo de pouco mais de 20 páginas, sem nenhum gráfico. Mas o penúltimo parágrafo merece ser reproduzido e ilustra essa coluna: “se a opinião do autor for correta, a cólera pode ser controlada por medidas simples [...] A medida sanitária mais necessária seria o suprimento de água de alguma fonte distante do esgoto”. No meio desse trecho aparece a recomendação sobre lavar as mãos a ferver a água. 

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O médico pensou geograficamente: localizou os doentes pelos bairros de Londres e, resumidamente, perguntou-se como era o abastecimento de água nesses lugares. No entanto, apesar do levantamento de dados e cruzamento de informações, que apoiavam a sua hipótese, Snow chamou sua conclusão ainda de opinião, que foi largamente ignorada. A transformação dessa opinião em conhecimento científico aconteceu apenas durante uma segunda onda em Londres em 1854 dessa pandemia e um surto localizado no bairro de Soho no mesmo ano. Snow, após a segunda onda, comparou o número de vítimas abastecidas por duas companhias de água, Lambeth e Southwark and Vauxhall, nos períodos 1848-1849 e 1854-1855. As taxas de mortalidade para as duas companhias eram iguais no primeiro período, mas para o segundo, a taxa de mortalidade para os abastecidos pela Southwark and Vauxhall era entre oito e noves maior do que para os abastecidos pela outra companhia. Qual a explicação? Em 1848, ambas as companhias captavam água no rio Tâmisa perto dos emissários de esgoto. Pouco antes da segunda onda, Lambeth passou a captar a água rio acima, longe do esgoto despejado. A segunda edição do artigo “Sobre o modo de contaminação da cólera”, de 1855, não trazia mais apenas uma opinião fundamentada, mas sim conhecimento científico validado, mas ainda amplamente ignorado, embora já ganhasse algum reconhecimento a ideia de que água contaminada teria algum papel na Cólera[III].  

O segundo acontecimento no mesmo período possibilitou uma segunda confirmação da hipótese. Em 1854 ocorreu um surto local de Cólera em um bairro não abastecido com água encanada, mas sim por poços com bombas de rua. Era o bairro de Soho, mais precisamente em torno de Broad Street, hoje chamada de Broadwick Street. John Snow, com a ajuda do pastor Henry Whitehead, contactou os moradores e identificou os endereços das vítimas. Eram em sua maioria moradores próximos a uma das bombas. As discrepâncias (grupos de moradores e trabalhadores vizinhos não contaminados também foram investigados, verificando-se que consumiam água de outros lugares, apesar da proximidade com a bomba de Broad Street) também foram perscrutadas. As evidências eram fortíssimas e Snow conseguiu convencer as autoridades locais para interditar a bomba e o surto terminou. Verificou-se mais tarde que o poço era contaminado por uma fossa séptica ao lado.  

A segunda edição de seu trabalho (“Sobre o modo de...”)  trazia agora mapas, que ilustravam seus argumentos geográficos e que ilustram também essa coluna: o primeiro mapeando os bairros abastecidos por água por companhias diferentes e o segundo mapeando as vítimas de Broad Street.  É importante mencionar que Snow não usou os mapas durante suas investigações, apenas como representação posterior para ilustrar melhor os seus procedimentos. Curiosamente, o que era ilustração virou metodologia, os chamados sistemas de informação geográfica[IV].  
  
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A urgência do surto em Soho levou as autoridades a levar Snow a sério, mas sua opinião, que virou teoria, continuou sendo rejeitada, pois era “desagradável” para o público. Mais de uma década de controvérsias políticas aconteceram antes que a teoria virasse recomendação prática de enfrentamento de pandemias. Não a tempo de evitar as pandemias seguintes e, de todo modo, o mundo é desigual, saneamento básico ainda hoje está longe de ser universal e a cólera persiste.  

John Snow identificou o modo de transmissão, mas no o agente infeccioso transmitido. É, como já mencionado, uma bactéria, o vibrião colérico, que foi isolada coincidentemente também em 1854 pelo cientista italiano Filippo Pacini (1812-1883). Mas seu trabalho “Osservazioni microscopiche e deduzioni patologiche sul cholera asiático” [V] só foi reconhecido mesmo durante a quinta pandemia do século, 30 anos depois, no ano de sua morte, com a investigação independente de Robert Koch, que empresta o nome ao instituto oficial, que hoje informa o governo alemão para as tomadas de decisão de enfrentamento da Covid-19 
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Os apontamentos sobre o século XIX revelam que o mundo continua desigual, mas deixam claro o enorme custo de se ignorar a ciência na saúde pública. 

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

 

 

 


[I] Cholera outbreaks and pandemics | Wikipedia

[II] On the mode of communication of cholera | National Library of Medicine (NLM)

[III] John Snow | The Lancet

[IV] Map-making and myth-making in Broad Street: the London cholera epidemic, 1854 | The Lancet

[V] Osservazioni microscopiche e deduzioni patologiche sul cholera asiatico | Münchener DigitalisierungsZentrum / Digitale Bibliothek

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