Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Alertas do passado na divulgação científica

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Ilustração: Luppa SilvaMeus passeios pelas estantes lá de casa são quase sempre quase aleatórios. É um exercício não específico buscando lembrar que os buracos são geralmente mais profundos. O buraco nesse caso é a neutralidade da ciência. E do seu ensino e divulgação. Selecionei quatro exemplos do passado, obsequiados ou garimpados em sebos, com seus alertas para o presente.

O primeiro foi passado pelo meu pai para que eu nunca duvidasse do que tinha acontecido. Não era necessário, mas passei a ser guardião de um documento importante. Nunca se sabe como andará a memória de outros nos futuros líquidos. É um livro de ciências para formação à distância de soldados na frente de batalha, editado na Alemanha em 1943: “Caminho para o Exame Final – parte 5 – Ciências Naturais: Biologia, Química e Física”. A parte sobre Física é o que se espera: mecânica, eletricidade e magnetismo, seguido de oscilações e ondas. Lembra os meus livros do ensino médio. Bem como a seção sobre Química, dividida entre inorgânica e orgânica. Mas o livro começa por Biologia, que ocupa quase metade das páginas. Não há nada sobre citologia, botânica ou zoologia: a primeira parte é sobre Genética. A segunda parte intitula-se: “os fundamentos biológico-raciais da comunidade nacional e do governo”. Os últimos capítulos desta segunda e última parte são “política populacional” e “cuidados genéticos e raciais”. Não é preciso entrar em detalhes para que se perceba que é um conjunto de horrores a serviço da eugenia, do totalitarismo, justificando, em última instância, a castração forçada por lei de nove “grupos de pessoas”, entre eles  maníacos depressivos, cegos e surdos congênitos, como explicitamente “ensinado” no livro. A solução final se coloca nas entrelinhas.

Lembrei-me desse livro quando li na Revista Pesquisa FAPESP, edição de janeiro de 2018, a nota: “O espectro da Eugenia na Universidade” [I]. Relata uma investigação sobre um pesquisador que promoveu por três anos conferências clandestinas sobre eugenia na University College London.

Primeiro alerta dado, vamos ao segundo.

O segundo livro eu ganhei de um ex-aluno, que resolveu organizar a biblioteca dele e, apesar de sua memória afetiva, fez-me guardião do “Caminho do Cientista – iniciação à ciência” para a então primeira série ginasial. É uma edição dos Irmãos Maristas, impresso em 1963, ou seja, vinte anos depois do exemplo acima. A ordem dos capítulos segue a hierarquia positivista das ciências, ou (por que não?) a ordem do Gênesis: “ciência das cousas do céu”, “ciência das cousas da Terra”, “ciência das cousas vivas” e, finalmente, o corpo humano. Entre as cousas vivas, um pequeno capítulo é devotado ao evolucionismo. Termina com um parágrafo anunciado em negrito: “Evolucionismo e religião”. Citação direta: “Você pode ser evolucionista e admitir que o homem é um macaco ou um animal qualquer, bastante evoluído, ou que Deus se serviu de um animal já existente para criar o homem. Quanto à alma, a encíclica Humani Generis do papa Pio XII, nos diz que é criada por Deus”. Parece um proposta de convívio pacífico, que se transformou em uma polarização crescente com as consequências e conflitos que conhecemos de vários textos. Lembro aqui, então, apenas um, da divulgadora científica Vanessa Wamsley: “Você esteve lá?” – “como uma criança criacionista, estava determinada a não aprender sobre a evolução”. É um relato franco e pungente e destaco aqui o “olho” do texto: “O que eu aprendi em casa e na escola era como uma neblina que os princípios mais básicos da Biologia mal podiam atravessar”. [II]

Deixando de lado os textos de ensino, volto-me ao período entre os dois livros resenhados acima: a década de 1950 e a “era atômica”, lançada com as bombas despejadas sobre Hiroshima e Nagasaki. No início da corrida armamentista nuclear era preciso construir um imaginário de um futuro glorioso, que seria proporcionado pelas forças contidas dentro dos núcleos atômicos. A construção desse imaginário é descrita no fascinante livro de Richard Barbrook, “Futuros imaginários – das máquinas pensantes à aldeia global”, traduzido para o português, mas detenho-me aqui aos exemplos de divulgação científica a serviço dessa tarefa. Para começar, um exemplo de fora, “Nosso futuro nuclear – fatos, perigos e perspectivas” de Edward Teller e Albert Latter. O primeiro foi um físico brilhante, mas militante na caça às bruxas organizada pelo senador Joseph McCarthy. O livro defende o uso de armas nucleares, principalmente as “limpas”: “A possibilidade de explosivos (nucleares) limpos abre novas portas para o uso da energia nuclear: os fins pacíficos. Os explosivos comuns têm sido usados tanto na paz quanto na guerra. Da mineração à construção de represas[...] Os explosivos nucleares não têm sido usados desse modo[...] Uma vez dominada inteiramente a arte de construção de armas (nucleares) limpas, as explosões pacíficas marcarão outro passo no controle das forças da natureza”.

Foto: Reprodução
Peter Sellers interpreta Dr. Strangelove, personagem de filme homônimo (no Brasil, “Dr. Fantástico”) dirigido por Stanley Kubrick

Condenado ao ostracismo por parte da comunidade científica, Teller não deixou de receber apoio do governo dos Estados Unidos. Nos seus últimos anos o cientista de origem húngara propôs a escavação de um porto artificial no Alasca por meio de bombas termonucleares (a tal bomba limpa) e defendia vigorosamente a Iniciativa de Defesa Estratégica de Ronald Reagan. Nenhuma dessas ideias saiu do papel, mas seu autor acabou em filme: inspirou o personagem Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick.
 

Foto: Reprodução
Quadrinho do livro “As maravilhas e progressos da ciência”: maravilhas a serviço do “prolongamento da vida”

No Brasil, em 1952, apareceu “As maravilhas e progressos da ciência” de Ary Maurell Lobo, um almanaque de curiosidades científicas (e jogos). As maravilhas escondidas nos núcleos atômicos e o progresso que elas proporcionariam são contados em forma de quadrinhos, que ilustram este artigo. Uma das promessas é o prolongamento da vida. Bem, essa promessa agora repousa na bio e nanotecnologias, pelo menos segundo capa da revista Time de 21 de fevereiro de 2011: “2045: o ano em que o homem será imortal” [III]. O maior espanto entre as maravilhas fica por conta “das partículas radioativas poderem ser usadas  (provocando mutação) de modo que os traços indesejáveis não sejam hereditários”. Fecha-se, portanto, o ciclo, “inocentes” quadrinhos rendendo homenagem àquele primeiro livro. O alerta? Procurem pelo Google sobre “human genetic enhancement”, já considerada inevitável por alguns autores [IV].

 


 

[I] http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/02/15/o-espectro-da-eugenia-na-universidade/

[II] http://www.slate.com/articles/health_and_science/science/2015/05/creationism_and_evolution_in_school_religious_students_can_t_learn_natural.html

[III] http://content.time.com/time/covers/0,16641,20110221,00.html

[IV] http://www.ugr.es/~perisv/congresos/lecturasfc/2005-2006/Enhancement.pdf

 

 

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