Foto: Antonio ScarpinettiLuiz Marques é professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do IFCH/Unicamp. É atualmente professor sênior da Ilum Escola de Ciência do CNPEM. Pela Editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011, e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. É membro dos coletivos 660, Ecovirada e Rupturas.

O degelo e a elevação do nível do mar

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Ilustração: LPS Um dos efeitos do aquecimento global é a elevação do nível do mar. Aquecimento e degelo reforçam-se mutuamente através de mecanismos de retroalimentação amplificante, pois o aquecimento superficial da água e da troposfera aumenta o degelo e esse, ao diminuir o albedo (a fração rebatida para o espaço da radiação solar incidente sobre a Terra), acelera o aquecimento, num círculo vicioso. Uma vez desencadeados, o aquecimento da água (vale dizer, sua expansão térmica) e o degelo têm dinâmicas inerciais, de modo que nem mesmo uma radical redução nas emissões de GEE num intervalo de tempo de 0 a 100 anos será capaz de detê-los no horizonte do tempo histórico. Já em 2001, o Terceiro Relatório de Avaliação do IPCC (Assessment Report ou AR3) afirmava: “projeta-se que o nível do mar continuará a se elevar por muitos séculos” [I]. A figura 1 ilustra o caráter irreversível da elevação inercial das temperaturas e do nível global médio do mar no horizonte do próximo milênio.

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Como se vê, não deve ocorrer estabilização da temperatura nos próximos séculos e o nível do mar continuará a se elevar por expansão térmica e por degelo pelo menos ao longo do próximo milênio. Obviamente, advertia em 2001 o IPCC, “os impactos tornam-se progressivamente maiores com mais altas concentrações de CO2” [II], de onde a inadiável necessidade de diminuir as emissões de GEE, o que não está ocorrendo.

Aceleração no passado recente

Em quanto o nível do mar já subiu no último século? Segundo o IPCC-AR5 (2013), é “muito provável que a taxa média de elevação do nível do mar tenha sido 1,7 [1,5 a 1,9] mm por ano entre 1901 e 2010, para uma elevação média total de 19 cm (17 a 21 cm). Entre 1993 e 2010, a taxa foi, muito provavelmente, mais alta, atingindo 3,2 mm por ano”. Reforçando esses dados, mensurações satelitares do GISS/NASA indicam que entre 1880 e 2013 houve uma elevação média global do nível do mar de 22,6 cm, vale dizer, 1,6 mm por ano em média ao longo de 133 anos. Ocorre que um terço dessa elevação (7,6 cm) ocorreu em apenas pouco mais de 20 anos, entre 1992 e 2013 [III]. Tal aceleração foi calculada por um trabalho publicado na Scientific Reports em 2016, que estabelece o seguinte salto nas taxas de elevação do nível do mar [IV]:

1900-1990 = + 1,2 a 1,9 mm / ano

1992-2015 = + 3,3 ± 0.4 mm / ano

Em 2016, a elevação média foi de 3,41 mm, resultante de uma nova aceleração a partir de 2012, como mostra claramente a figura 2

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A aceleração evidenciada na figura 2 é confirmada por uma recente avaliação, segundo a qual a elevação média global do nível do mar foi 25% a 30% mais rápida entre 2004 e 2015 que entre 1993 e 2004 [V].

Incerteza sobre a taxa de aceleração no futuro próximo

Qin Dahe, co-diretor do IPCC-AR5, afirma que “à medida que o oceano se aquece e o gelo marítimo e continental se reduz, o nível médio global do mar continuará a se elevar, mas a uma taxa mais rápida que a observada nos últimos 40 anos” [VI]. Quão mais rápida é ainda incerto. A se confirmarem as estimativas do trabalho publicado na Scientific Reports, acima citado, “a magnitude da aceleração em meados do século XXI será de 0,12 mm por ano a cada ano [0.12mm yr−2], embora esse valor dependa fortemente das perdas futuras do gelo continental, as quais são altamente incertas”. Para tentar restringir essas incertezas, Benjamin P. Horton, Stefan Rahmstorf, Simon E. Engelhart e Andrew C. Kemp publicaram em 2014 os resultados de uma avaliação probabilística sobre a elevação média do nível do mar em 2100 e em 2300, em função de dois cenários contrastantes de aquecimento global, a partir de uma consulta a 90 especialistas selecionados entre os que mais ativamente publicaram sobre esse tópico em anos recentes [VII]. A figura 3 sintetiza num único gráfico essas projeções, comparando-as com as do IPCC e da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA).

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No cenário em azul (sombreado com intervalos de confiança prováveis e muito prováveis), o aquecimento é inferior a 2º C em relação ao período pré-industrial e há lenta diminuição após 2050 (RCP3-PD, por “Peak and Decline”). Nesse caso, a elevação média mais provável será de 40 a 60 cm até 2100 e de 60 cm a 1 metro até 2300. No cenário em vermelho (RCP8, com mesmos intervalos de confiança), o aquecimento é de 4,5º C em 2100 e de 8º C em 2300, e a média mais provável de elevação situa-se entre 70 cm e 1,6 metro para 2100 e 2 a 3 metros para 2300 [VIII]. Em comparação com os pareceres desses 90 especialistas, as projeções do IPCC para 2100 em relação a 2000 representam-se nas barras verticais à direita, confirmando a tendência (necessariamente) conservadora do IPCC. Em contraste, as projeções da NOAA, representadas pelas quatro linhas pontilhadas, atingem, no caso intermediário-alto, mais de 1,2 metro e, no pior dos casos, 2 metros [IX].

Antártica e Groenlândia: elevação não linear do nível do mar

Essas incertezas decorrem, como dito, sobretudo da rapidez do degelo da Groenlândia e da Antártica, que apenas agora começa a ser melhor estimada. Segundo o IPCC (AR5), “observações feitas desde 1971 indicam que a expansão térmica e o degelo marinho (excluído o degelo marinho periférico da Antártica) explicam 75% da elevação observada (alta confiabilidade)”. Mas, continua o texto, “a contribuição do gelo da Groenlândia e da Antártica tem aumentado desde o início dos anos 1990, em parte por causa do fluxo acrescido de gelo induzido pelo aquecimento do oceano imediatamente adjacente”. O que já se observou é que em apenas 17 anos (1995 – 2011), a ação combinada do degelo na Antártica e na Groenlândia causou uma elevação de 11,1 mm do nível do mar, elevação esta que, sobretudo na Groenlândia, está em clara aceleração nesse período, como mostra a figura 4

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Fonte: ESA/NASA/Planetary Visions. Baseado em Andrew Shepherd et al., “A Reconciled Estimate of Ice-Sheet Mass Balance”. Science, 30/XI/2012 https://www.geopostings.com/category/ice-sheet-melt/

Em 2009, um trabalho publicado na Proceedings of National Academy of Sciences já detectava essa aceleração: “a perda de massa de gelo na Groenlândia e na Antártica está se acelerando e se aproxima mais de uma tendência quadrática que de uma tendência linear” [X]. Como afirma esse artigo, a contribuição da Groenlândia para essa elevação será, mais uma vez, maior que as projeções do IPCC-AR4 (2007).

Ocorre que, em 2016, James Hansen à frente de 18 cientistas, publicou um trabalho cujos resultados agravam, e em muito, mesmo a estimativa mais pessimista da NOAA (aumento de 2 metros até 2100) [XI]: “Nossa hipótese”, afirma esse trabalho, “é que a perda de massa do gelo mais vulnerável, suficiente para aumentar o nível do mar em vários metros [several meters], aproxima-se melhor de uma resposta exponencial que de uma resposta linear. (...) Preveem-se que altas e contínuas emissões provenientes de combustíveis fósseis neste século provocarão (...) tempestades mais poderosas e aumento não linear da elevação do nível do mar, atingindo vários metros num horizonte de tempo de 50 a 150 anos”.


O gelo de escora na Antártica

É bem sabido que “a Península Ocidental da Antártica é uma das áreas de mais rápido aquecimento na Terra, atrás apenas de algumas áreas do Círculo Polar Ártico” [XII]. E à medida que essa região se aquece, o degelo continental se acelera, conferindo maior concretude ao novo cenário previsto por James Hansen e colegas. O desprendimento da Plataforma Marítima Larsen entre 1995 e 2017, jogando no mar de Weddel 10.550 km2 de gelo marítimo (Larsen A, 1995 = 1.500 km2, Larsen B, 2002 = 3.250 km2 e Larsen C, 2017 = 5.800 km2) não tem impacto direto sobre o nível do mar, pois se trata de gelo marítimo, que já ocupava lugar no mar e, além disso, de “gelo passivo”, isto é, que não funciona como escora do gelo continental. Mas as plataformas de gelo marítimo sobre os mares de Amundsen e de Bellingshausen (oeste e sudoeste da Antártica) são, sobretudo, gelo de escora e seu desprendimento futuro, dado por certo, abrirá caminho para o gelo continental descer de suas íngremes encostas para o mar, conforme mostram as manchas em amarelo na figura 5 [XIII].

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Fonte: Johannes J. Fürst et al. « The safety band of Antarctic ice shelves” Nature Climate Change, 8/II/2016. As zonas em azul são de gelo passivo. As zonas em amarelo são de gelo de escora (buttressing)

 

Uma elevação 2 vezes e meia a 6 vezes maior que no século XX

Se a elevação do nível do mar até 2100 permanecer apenas entre 50 cm e 1,2 metro (projeções intermediário-baixo e intermediário-alto da NOAA), isso significa que ao longo do século XXI essa elevação será 2 vezes e meia a 6 vezes maior que os 19 cm de elevação observada, como visto acima, entre 1901 e 2010. As consequências desse redesenho da linha costeira são tão múltiplas e complexas, que, por razões de espaço, devem ser tratadas no próximo artigo. Antecipemos aqui, muito brevemente, algumas delas. Dado que se preveem também furacões mais fortes e que grande parte das maiores cidades do mundo são costeiras, inundações mais frequentes e piores que as que ocorreram nos últimos decênios serão inevitáveis. Até 2050, Bangladesh deve perder 10% de seu território [XIV]. Em 2050, o nível do mar em Nova York deve estar 76 cm acima do nível médio de 2000-2004 e em 2100, 183 cm (6 pés) [XV]. Cidades como Guangzhou, New Orleans, Miami, Mumbai, Nagoya, Boston, Shenzen, Osaka, Guayaquil, Cidade Ho Chi Minh e, no Brasil, Santos [XVI], também estão na primeira linha de tiro das inundações. Mas o espectro das consequências é muito mais amplo que a simples perda de infraestrutura urbana, pois uma elevação dessa magnitude (como visto, bem abaixo do pior cenário) poderá inundar as usinas nucleares litorâneas, salinizar aquíferos e deltas, erodir as costas, destruir ecossistemas costeiros e impor gigantescos deslocamentos populacionais. Esses impactos serão o tema do próximo artigo.

 


[i] IPCC AR3 Climate Change 2001: Synthesis Report: “sea level is projected to continue to rise for many centuries” <http://www.ipcc.ch/ipccreports/tar/vol4/011.htm>.

[ii] Cf. IPCC AR3 Climate Change 2001: Synthesis Report: “the impacts become progressively larger at higher concentrations of CO2.” <http://www.ipcc.ch/ipccreports/tar/vol4/011.htm>.

[iii] Cf. NASA Goddard Institute for Space Studies: <https://www.nasa.gov/goddard/risingseas>.

[iv] Cf. J.T. Fasullo, R.S. Nerem & B. Hamlington, “Is the detection of accelerated sea level rise imminent? Scientific Reports, 10/VIII/2016 <https://www.nature.com/articles/srep31245#f1>.

[v] Cf. H.B. Dieng et al., “New estimate of the current rate of sea level rise from a sea level budget approach”. Geophysical Research Letters, 22/IV/2017.

[vi] Cf. “Human influence on climate clear, IPCC report says”, UN and climate change, 27/IX/2014:

<http://www.un.org/climatechange/blog/2013/09/human-influence-on-climate-clear-ipcc-report-says/>.

[vii] Cf. Benjamin P. Horton, Stefan Rahmstorf, Simon E. Engelhart & Andrew C. Kemp, “Expert assessment of sea-level rise by AD 2100 and AD 2300”. Quarternary Science Reviews, 83, 2014, pp. 1-6

<https://marine.rutgers.edu/pubs/private/HortonQSR_2013.pdf>.

[viii] Em 2016, outro trabalho reforça essa projeção para 2100, consoante os diversos cenários de concentrações atmosféricas de GEE: RCP2,6 = 28-56 cm; RCP4,5 = 37-77 cm e RCP8,5 = 57-131 cm. Cf. Matthias Mengel et al., “Future sea level rise constrained by observations and long-term commitment”. PNAS, 113, 10, 8/III/2016.

[ix] Cf. NOAA, Global Sea Level Rise Scenarios for the United States National Climate Assessment 6/XII/2012 <https://scenarios.globalchange.gov/sites/default/files/NOAA_SLR_r3_0.pdf>.

[x] Cf. Jonathan T. Overpeck & Jeremy L. Weiss, “Projections of future sea level becoming more dire”. PNAS, 22/XII/2009 <http://www.pnas.org/content/106/51/21461.full>.

[xi] Cf. James Hansen et al., “Ice melt, sea level rise and superstorms: evidence from paleoclimate data, climate modeling, and modern observations that 2 °C global warming could be dangerous” (cit). Veja-se também <https://www.youtube.com/watch?v=JP-cRqCQRc8>.

[xii] Cf. Antarctic And South Ocean Coalition (ASOC) <http://www.asoc.org/advocacy/climate-change-and-the-antarctic>.

[xiii] Cf. Fürst et al. « The safety band of Antarctic ice shelves” Nature Climate Change, 8/II/2016.

[xiv] Cf. “Bangladesh risks more flooding, droughts, hurting development”. BDNews24.com, 14/VII/2017.

<http://bdnews24.com/environment/2017/07/14/bangladesh-risks-more-flooding-droughts-hurting-development-report>.

[xv] Cf. “Impacts of Climate Change in New York”. New York State. Department of Environmental Conservation <http://www.dec.ny.gov/energy/94702.html>.

[xvi] Cf. E. Alisson, “Inundações costeiras em Santos podem causar prejuízos bilionários”. Fapesp, 7/X/2015 http://agencia.fapesp.br/inundacoes_costeiras_em_santos_podem_causar_prejuizos_bilionarios_/21997/.

 

 

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