Prof. Luiz Carlos Dias | Foto: Antonio Scarpinetti

Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.

Nobel de Medicina vai para pesquisas sobre as vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra covid-19

Que vitória extraordinária da ciência! 

No dia 02/10/2023, a Real Academia Sueca de Ciências anunciou que o Prêmio Nobel de Medicina de 2023 foi concedido à bioquímica húngara Katalin Karikó e ao médico norte-americano Drew Weissman. Os dois cientistas foram condecorados por suas descobertas inovadoras que auxiliaram no desenvolvimento das vacinas de RNA mensageiro (mRNA), como as vacinas da Pfizer e sua parceira BioNTech e da Moderna, que foram fundamentais no enfrentamento da pandemia de covid-19. 

As descobertas dos laureados mudaram nossa compreensão de como o mRNA interage com o sistema imunológico. Eles contribuíram com modificações químicas nas bases nucleotídicas que constituem o mRNA, permitindo o desenvolvimento de vacinas eficazes e seguras contra a covid-19 menos de um ano após o surgimento da pandemia. Suas descobertas ajudaram o mundo a se recuperar de uma crise sanitária devastadora.

As vacinas de mRNA, juntamente com outras vacinas anti-covid e as medidas não farmacológicas, constituíram as principais ferramentas da humanidade para combater uma pandemia que dizimou cerca de 7 milhões de pessoas. Somente no Brasil, que ocupa o segundo lugar em número de óbitos pela covid-19, foram pouco mais de 705 mil óbitos, segundo o worldometer 

Com mais de 13,5 bilhões de doses aplicadas no mundo, as vacinas de mRNA são consideradas uma conquista extraordinária da ciência. Elas evitaram milhões de mortes, preveniram casos graves de covid-19, ajudaram a reduzir a gravidade da pandemia e permitiram que nossas vidas voltassem ao normal.

O uso de mRNA também permitiu que ambas as vacinas fossem atualizadas contra novas variantes do vírus.

O que faz o mRNA

O mRNA é um material genético preparado em laboratório, cuja função é levar instruções para as células do sistema imunológico produzirem uma resposta de defesa. O mRNA funciona como uma espécie de carteiro que leva as informações para o interior das células. 

No caso da covid, o mRNA utiliza a maquinaria genética em nosso organismo para fabricar pedaços da proteína S (proteína Spike) do vírus Sars-Cov-2, que são reconhecidas pelo sistema imunológico como uma ameaça, levando à produção de anticorpos e células especiais do sistema imunológico em resposta. 

A abordagem da vacina de mRNA é vantajosa devido ao seu menor custo de fabricação, pelo fato de ser sintética. A tecnologia dos imunizantes à base de mRNA não precisa de vírus inativados ou atenuados e não exige um laboratório de alto nível de biossegurança. Tudo o que é necessário é a sequência genética do patógeno original e uma reação enzimática, em vez de um pedaço real do vírus ou de um vírus completo. 

O início e o desenvolvimento

A tecnologia de RNA mensageiro (mRNA) é alvo de pesquisas há mais de 30 anos, mas se tornou realidade com a pandemia de covid-19, permitindo a produção de vacinas em tempo recorde. Karikó e Weissman começaram a estudar a plataforma de mRNA sintético in vitro na década de 1990, quando trabalhavam juntos na Universidade da Pensilvânia. 

O RNA contém quatro bases nitrogenadas, abreviadas A (Adenina), U (Uracila), G (Guanina) e C (Citosina). Nas nossas células, a informação genética codificada no DNA é transferida para o RNA, que é usado como modelo e carrega um código com informações para que as células do organismo produzam proteínas que estimulam o sistema imunológico.

O mRNA é uma molécula “mensageira” que permite que a informação genética armazenada no DNA, no núcleo da célula, seja transportada para fábricas produtoras de proteínas, chamadas ribossomos, em outras partes da célula.

Muitos ​​experimentos com ratos injetados com mRNA falharam. Nos primeiros experimentos com animais, a simples injeção de mRNA cultivado em laboratório desencadeou uma reação que geralmente o destruía. O problema era que o sistema imunológico interpretava o mRNA como um patógeno invasor e o atacava, adoecendo os animais e destruindo o mRNA.

Estes foram obstáculos significativos para o uso de tecnologias baseadas em mRNA para fins terapêuticos e de preparação de vacinas, pois o mRNA produzido in vitro dava origem a reações inflamatórias envolvendo a produção de citocinas prejudiciais.

Modificação do mRNA 

No início, a plataforma era considerada instável em testes, mas tudo mudou a partir de 2005, quando os dois cientistas descobriram que as células protegem seu próprio mRNA com uma modificação química específica. Eles tentaram fazer a mesma alteração no mRNA sintetizado em laboratório antes de injetá-lo nas células. 

Para investigar a reação inflamatória indesejada, produziram diferentes formas de mRNA, cada uma com alterações químicas em suas bases nitrogenadas. Os cientistas descobriram, então, uma maneira de modificar o mRNA para que fosse menos inflamatório — substituindo a base nitrogenada uridina, uma de suas moléculas constituintes, por uma molécula semelhante chamada pseudouridina. E funcionou: o mRNA foi absorvido pelas células sem provocar uma resposta inflamatória indesejada.

Os resultados foram fantásticos. Karikó e Weissman haviam descoberto que uma pequena modificação nos blocos de construção do mRNA permitia escapar das defesas imunológicas. Ao fazer pequenos ajustes químicos nas moléculas de mRNA, poderiam não apenas evitar as respostas inflamatórias indesejadas, mas também aumentar significativamente a produção da proteína alvo. 

Esses resultados representaram uma mudança de paradigma e mostraram que o mRNA poderia ser alterado e entregue eficazmente no corpo para ativar o sistema imunitário protetor. As vacinas baseadas em mRNA enfim provocaram uma resposta imunitária robusta, incluindo elevados níveis de anticorpos que poderiam atacar uma doença infecciosa específica. Estes resultados ajudaram na compreensão de como as células reconhecem e respondem a diferentes formas de mRNA. 

As vacinas de mRNA contra a covid-19 funcionam injetando o material genético especificamente para as proteínas spike do SARS-CoV-2 — proteínas de superfície do vírus, que permitem que ele se ligue a células saudáveis. O mRNA modificado na vacina é levado pelas células, que então o decodificam e produzem essas proteínas spike para que o sistema imunológico possa identificar e neutralizar melhor o vírus real no caso de uma infecção futura, estimulando o corpo a produzir anticorpos direcionados à proteína em questão, além de desencadear outras respostas imunológicas.

Esta abordagem tornou-se a base para as vacinas da Pfizer e da Moderna e foi um alicerce para o sucesso das vacinas de RNA na redução de doenças e mortes durante a pandemia.

Os resultados dos cientistas, descrevendo como eles foram capazes de entregar o mRNA modificado ao corpo e desencadear uma resposta imunológica com sucesso, foram publicados em 2005, 15 anos antes da pandemia da covid-19. Na época, receberam pouca atenção, mas lançaram as bases para desenvolvimentos importantes que serviram à humanidade durante a pandemia da covid-19, sustentando uma perspectiva de futuro bem-sucedido da vacina e da terapêutica de mRNA.

Mais tarde, Weissman e Karikó também mostraram que esta modificação produziu uma construção de mRNA mais estável e melhor rendimento de proteínas.

Artigo de 2005 foi recusado 

Segundo os cientistas, o artigo publicado em 2005  havia sido rejeitado pelas revistas Nature e Science, mas foi aceito pela revista Immunity.

Na sequência, duas empresas de biotecnologia rapidamente tomaram conhecimento das descobertas apresentadas: a Moderna, nos Estados Unidos, e a BioNTech, na Alemanha, da qual a Dra. Katalin Karikó acabou por se tornar vice-presidente sênior. As empresas estudaram o uso de vacinas de mRNA para gripe e outras doenças, mas até 2020 não havia nenhum imunizante registrado no mundo usando a tecnologia do mRNA. Surgiu, então, o coronavírus. A rapidez em seu desenvolvimento e o alto índice de eficácia dos novos produtos surpreenderam positivamente a comunidade acadêmica.

Tecnologia com mRNA não modificado não funciona

Uma candidata à vacina de mRNA contra a covid-19 contendo mRNA não modificado, desenvolvida pela CureVac, sediada em Tübingen, Alemanha, fracassou nos ensaios clínicos, comprovando  a necessidade de modificação nas bases nitrogenadas do mRNA.

Combinação com pesquisas anteriores

Para criar as vacinas contra a covid-19, a pesquisa da dupla de cientistas sobre mRNA foi combinada com descobertas científicas anteriores. 

Foram utilizadas, por exemplo, nanopartículas lipídicas (LNPs), tipo cápsulas de gordura, que envolvem e protegem o mRNA modificado, permitindo um sistema de entrega mais eficiente no organismo, ajudando o mRNA a entrar nas células para a produção de proteínas. As LNPs foram componentes-chave das vacinas de mRNA contra a covid-19. Muitos cientistas contribuíram para desenvolvê-las e merecem reconhecimento por suas contribuições. Será através de um Prêmio Nobel de Química?

A modificação do mRNA e o desenvolvimento de LNPs foram os dois principais passos necessários para que as vacinas de mRNA funcionassem, mas Karikó e Weissman realmente criaram a chave para o sucesso de todo o empreendimento em torno das vacinas de mRNA.

Katalin Karicó

Karikó pode ser considerada uma das cientistas mais inspiradoras de todos os tempos. Seu trabalho em conjunto com Weissman mostra a importância da investigação básica na busca de soluções para as necessidades sociais mais prementes.

Karikó, que também é professora na Universidade de Szeged, na Hungria, é, até o anúncio deste Prêmio, a 61ª mulher a ser nomeada Prêmio Nobel. Ela é a 13ª mulher a receber o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina desde 1901, e a primeira desde 2015. As mulheres representam uma pequena fração do total de 227 pessoas que receberam o Prêmio, um reflexo de como as mulheres, infelizmente, ainda são largamente sub-representadas no domínio da ciência e dos prêmios científicos.

A cientista afirmou esperar que este Prêmio possa inspirar mulheres, imigrantes e jovens a perseverarem e a serem resilientes. Sua história é fantástica. Veja aqui e aqui.

Potencial futuro

As descobertas irão influenciar o uso bem-sucedido de futuras vacinas de mRNA e de novos medicamentos baseados em mRNA. A grande expectativa da ciência é que a técnica de mRNA revolucione a vacinologia e sirva de base para os imunizantes do futuro, abrindo novo capítulo na medicina.

A impressionante flexibilidade e velocidade com que as vacinas de mRNA podem ser desenvolvidas abrem caminho para a utilização da nova plataforma para vacinas contra outras doenças infecciosas.

Alguns laboratórios já estão realizando testes de imunizantes contra todos os tipos de coronavírus e para a prevenção de doenças como influenza, Zika, Chikungunya, ebola, tuberculose, herpes, dengue, malária e HIV. Em teoria, a tecnologia pode ser aplicável a doenças como câncer, diabetes, Alzheimer, anemia falciforme, doenças autoimunes, alergias alimentares e ambientais, doenças bacterianas e doenças degenerativas. A expectativa é de grandes avanços científicos nos próximos anos.

Conclusão

Esse é um Prêmio Nobel com um grande impacto para a sociedade, devido ao enorme potencial das descobertas. Mais de 15 anos após sua parceria visionária com laboratórios, os dois cientistas deixaram uma marca duradoura na ciência. Seus avanços extraordinários na ciência mudaram o mundo, trazendo enormes benefícios para a humanidade. 

O que agora é reconhecido como uma tecnologia transformadora exigiu que cientistas dedicados realizassem pesquisas ao longo de muitos anos para permitir a rápida implantação de vacinas, possível graças à colaboração global.

O Prêmio Nobel de 2023 é uma vitória da ciência na defesa do potencial das vacinas para promover a saúde e melhorar a equidade, contra o negacionismo científico e o charlatanismo. Infelizmente, os negacionistas continuam de plantão, firmes e fortes, e a máquina de desinformação continua disseminando fake news assassinas. A investigação lenta e metódica que tornou possíveis as vacinas contra a covid-19 ainda enfrentará o movimento antivacinas e anticiência, que se aproveita do rápido desenvolvimento das vacinas, um dos feitos mais impressionantes da ciência moderna, para disseminar mentiras e abalar a confiança do público nelas. 

Não é através da ignorância pregada por eles, porém, que resolveremos questões cruciais para a humanidade. É a ciência que salva vidas e é nossa ferramenta mais poderosa, inclusive na defesa da democracia. 

Sobre o Prêmio Nobel

O Prêmio Nobel de Medicina vem sendo entregue desde 1901, seguindo as diretrizes deixadas postumamente no testamento do químico e inventor sueco Alfred Nobel, inventor da dinamite. Em 1895, em seu último testamento, Alfred Nobel registrou que sua fortuna deveria ser destinada à criação de um Prêmio e destinou ao Comitê do Nobel no Instituto Karolinska em Estocolmo a missão de eleger pesquisadores que tenham feito notáveis contribuições ao futuro da humanidade. 

Os Prêmios são concedidos aos laureados cujo trabalho esteja relacionado às áreas de física, química, fisiologia ou medicina, literatura, paz e economia.

A cerimônia de entrega dos prêmios ocorrerá no dia 10/12/2023, data do aniversário de morte de Alfred Nobel.

Matéria sobre o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina 2023 no site da Academia Brasileira de Ciências, com contribuição do professor Luiz Carlos Dias. 

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