Prof. Luiz Carlos Dias | Foto: Antonio Scarpinetti

Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.

É a Ciência que precisa dar a palavra final na questão das vacinas

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Divina comédia humana

Parodiando (ou parafraseando?) o grande Belchior, na linda música “Divina Comédia Humana”, atemporal, nos resta filosofar sobre questões da existência humana: “Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol. Quando a vacina entrou em mim como um Sol no quintal...”

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As vacinas devem ser consideradas bens públicos globais. Existe grande chance de termos pelo menos metade das vacinas aprovadas em fase 3 provenientes da China, sendo desenvolvidas pela Sinopharm, pela CanSino e pela Sinovac. Hoje são quatro candidatas vacinais provenientes da China na fase 3 de ensaios clínicos. Se você é contra as vacinas chinesas, prepare-se, pois o mundo vive e vai viver uma enorme dependência da China nos próximos anos.

E para os que dizem "Made in China, estou fora dessa", e que querem um futuro sem interferência da “ditadura chinesa”, procurem ver de onde vêm os tênis, roupas, tecidos de fibra têxteis, sintéticos ou artificiais, roupas de cama, edredons, travesseiros, almofadas, colchas, pufes, celulares, artigos de computação e informática, computadores, impressoras, teclados de computador, brinquedos, jogos eletrônicos, bicicletas, bijuterias, circuitos impressos, circuitos integrados, semicondutores, geradores, bombas, compressores, aparelhos eletrodomésticos, cafeteiras, ventiladores, fios e cabos elétricos, motores, transformadores elétricos, pneumáticos, inseticidas, herbicidas, peças para veículos automotores, as plataformas de exploração e perfuração de petróleo e muito mais. Vem da China, pessoal!

O “Made in China”, o “Assembled in China”, o “Product of China” ou o “Fabricado na China“ estão em toda parte. Aliás, o governo federal liberou mais 12 agrotóxicos, sendo 10 deles provenientes da China através do Ato no. 59, publicado no Diário Oficial da União com data de 19/10/2020. Ah, mas aí alguém diz: vacinas e medicamentos não vêm da China. Hã? A China, que sofre com essa xenofobia sanitária no Brasil, capitaneada pelo presidente dos EUA, é o segundo maior exportador de fármacos para o Brasil atrás apenas dos EUA.  A maior parte dos fármacos que os EUA exportam para o Brasil, são preparados com insumos chineses. E cerca de 70% dos insumos farmacêuticos ativos essenciais à preparação de medicamentos genéricos no Brasil vem da China.

Nós somos totalmente dependentes da China na área de medicamentos, sejam eles de marca ou genéricos. E tem mais, o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) necessário para a fabricação da candidata vacinal de Oxford, vem da... China! Ops! Sim, segundo a Fiocruz, o Ministério da Saúde já disponibilizou R$ 1,5 bi para a aquisição de 15 milhões de doses do IFA diretamente da China para a AstraZeneca e depois para o Brasil em dezembro. E de onde vocês acham que vem os adjuvantes e demais componentes das vacinas como os conservantes? E de onde vocês acham que vem os insumos para preparar as nossas vacinas, como a que tomamos para a gripe? Mas parece que isto não importa para o presidente.

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Deveríamos estar remando juntos para sair rapidamente da pandemia”

O presidente Bolsonaro, que assim como o presidente dos EUA, Donald Trump, com suas teorias conspiratórias, acusa a China de ter criado o vírus e espalhado a Covid-19 pelo mundo, definiu a CoronaVac como a "vacina chinesa do João Doria". Foi categórico ao afirmar que o governo federal não comprará nenhuma vacina chinesa, mesmo que seja aprovada pela Anvisa. Tempos difíceis em que a opinião pessoal e questões políticas e ideológicas são mais importantes que a ciência. Nós todos estamos nesta mesma tempestade chamada Covid-19 e quando deveríamos estar, enquanto Nação, remando todos juntos para sair mais rapidamente desta pandemia, vemos este jogo político mesquinho sobre as vacinas, dando força e alimentando o irresponsável e criminoso movimento antivacinas.

A eficácia em fase 3 deve ser baseada em decisões técnicas e independentes por parte da Anvisa e não na origem da vacina ou em decisões e pressões políticas. O Presidente da República não pode decidir se a vacina é boa ou não para a população brasileira, ele não entende de ciência e de eficácia das vacinas. O Governador do Estado de São Paulo não pode marcar data de início para vacinação. A ciência dará a resposta final, não o desejo de um político populista. Precisamos confiar nos critérios científicos e na ciência. Esta briga política pode levar à desconfiança da população na vacinação e à queda na adesão à imunização e não teremos como alcançar a imunidade coletiva para a Covid-19. Para voltar para nossas vidas, normais ou anormais, em segurança, precisaremos de vacinas.

Como estão sendo feitos os acordos para imunização

Os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) cobraram do Ministério da Saúde “total transparência” com divulgação de todas as etapas, resultados e informações detalhadas sobre os acordos envolvidos com relação a todas as candidatas vacinais em desenvolvimento contra a Covid-19. Caso o governo federal mantenha a intenção de não incluir a CoronaVac no PNI (Plano Nacional de Imunização), os estados poderão fazer acordos diretamente com o governo do Estado de São Paulo. Como as vacinas serão distribuídas para a população sem apoio do PNI, eu não tenho ideia. A decisão do Presidente da República é uma sabotagem sem precedentes, pois o Instituto Butantan produz vacinas para o Brasil inteiro e o mais importante é proteger a população deste vírus que já tirou quase 160 mil vidas de brasileiros em quase 8 meses de pandemia.

Após as falas do Presidente da República e com o objetivo de garantir alta adesão dos cidadãos brasileiros às vacinas, quando aprovadas pela Anvisa, alguns Projetos de Lei foram apresentados à Câmara dos Deputados. Um dos projetos estabelece a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19, permitindo a inclusão no PNI e distribuição para toda a população brasileira. O PL 4987/20 defende que qualquer pessoa que não se vacinar contra a Covid-19 pague seu tratamento, caso venha a se contaminar com o novo coronavírus.

Uma vacina para uso em massa na população brasileira precisa ser aprovada pela Anvisa, a não ser que o Congresso Nacional aprove uma lei que autorize a compra sem o registro no País, baseada na Lei 13.979, aprovada em fevereiro de 2020 para o combate à Covid-19. A Associação dos Servidores da Anvisa (Univisa) divulgou nota no dia 21/10/2020, reforçando o compromisso dos servidores de carreira da Anvisa em manter a isenção, a integridade, a ética e a celeridade na análise de todos os processos regulatórios destinados ao enfrentamento da Covid-19, independentemente de origem ou nacionalidade.

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Vacinação em massa quando?

Nós somos cientistas, não políticos populistas. Nós conhecemos o árduo e longo caminho para o desenvolvimento de medicamentos e de vacinas. Ao que tudo indica, infelizmente, dificilmente teremos vacinação em massa no Brasil em 2021. Os ensaios clínicos de fase 3 devem ser feitos com calma, ética, transparência, sem pressa e sem pressão política. É difícil realizar um ensaio clínico de fase 3 em 4-6 meses. A Anvisa não deve entrar em questões políticas e não pode sofrer pressão para aprovar um imunizante com baixa eficácia. Quanto menor a eficácia da vacina aprovada, maior terá que ser a adesão da população nas campanhas de vacinação. Somos cerca de 212 milhões de brasileiros.

Uma vacina com 50% de eficácia e adesão de apenas 50% da população brasileira, ou 106 milhões de pessoas, protegeria apenas 53 milhões de brasileiros. Se vacinarmos todos os 212 milhões de brasileiros (hipoteticamente), com uma vacina com apenas 50% de eficácia, apenas 106 milhões estariam protegidos. Esta vacina pode ajudar, mas está longe de ser o ideal. Precisamos de uma vacina com pelo menos 70% de eficácia, para que, vacinando 191 milhões de brasileiros (com ótima adesão de 90% da população), protegermos 134 milhões de pessoas, o que é muito bom. Ainda assim, 78 milhões de brasileiros não estarão protegidos. E as primeiras vacinas podem não ser as melhores.

Uma vacina com baixa eficácia pode dar voz aos negacionistas do movimento antivacinas, aumentar a disseminação de notícias falsas e causar estragos na cobertura vacinal nos próximos anos para as principais vacinas de nosso calendário. Estamos observando muita movimentação dos movimentos antivacinas nas redes sociais, inclusive no YouTube, como mostra a pesquisa publicada no dia 26/10/2020, salientando que as vacinas contêm ingredientes perigosos, defendendo a liberdade de escolha e promovendo serviços de saúde alternativos baseados em curas naturais. É uma narrativa mentirosa, que presta um enorme desserviço à saúde pública.

A vacina é um direito  

A Constituição Federal de 1998, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e o Estatuto do Idoso, de 2003, garantem o direito à saúde e à vida. As leis, decretos e portarias a seguir, entre outras, defendem a vacinação como garantia de saúde: Lei 6.259 (1975), Decreto no. 78.231 (1976), Portaria no. 1986 (2001), Portaria no. 597 (2004), Lei 13.979 (2020). Após a Revolta das Vacinas em 1904, nós nunca precisamos obrigar ninguém a se vacinar no Brasil. A população brasileira sempre aderiu às campanhas de vacinação em massa e o Brasil é modelo para o mundo.

O cenário ideal seria pensar em campanhas de conscientização da população brasileira e deixar clara a ideia de que se vacinar gratuitamente é um direito de cada cidadão. A população precisa ser esclarecida sobre a importância e a segurança das vacinas, para se proteger da Covid-19, uma vez aprovadas pela Anvisa. Se passarmos a ideia de que as vacinas são um direito, que salvam vidas, ajudaram a erradicar doenças letais ou que incapacitam as pessoas, que são nossa melhor estratégia de saúde pública junto com água potável e esgoto tratado, que aumentaram nossa expectativa de vida, vamos aumentar a adesão da população para a vacinação contra a Covid-19. Mas nesse momento de polarização política, penso ser uma tarefa bem complicada.

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A Covid-19 é uma doença infectocontagiosa com potencial de causar mortes e incapacitação, não tem tratamento. Portanto, se houver uma vacina segura e eficaz, o Estado deve exigir a vacinação para a defesa de toda a população, respeitando o direito coletivo à saúde. Um cidadão deve se comportar como tal e se vacinar. Saúde pública é mais importante que o desejo de um indivíduo, é uma questão de respeito, empatia, cidadania. Algumas pessoas defendem que a vacinação não deveria ser obrigatória, pois afirmam que vivemos em uma democracia e são contrários à obrigatoriedade. O voto é obrigatório, mas também é um direito do cidadão, o alistamento militar é obrigatório e se você não votar ou não se alistar, sofrerá sanções. A vacina da febre amarela é obrigatória e se você não tomar, não pode viajar para alguns países.

Para receber o Bolsa Família, as famílias precisam apresentar a carteira de vacinação dos filhos. No caso da Covid-19, ninguém tem a liberdade de infectar terceiros e como o risco sanitário é elevado, além de não termos tratamento, quando tivermos uma vacina com altos níveis de segurança, imunogenicidade e eficácia comprovados, penso que nesse caso particular de pandemia, a vacinação deveria ser obrigatória, pois a opção individual não pode prejudicar o direito coletivo à saúde, trazendo consequências para a sociedade. Receio que esse momento de polarização política não permita uma campanha de conscientização da população. 

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que andava meio sumido, afirmou que o Poder Executivo e o Legislativo deveriam encontrar uma solução conciliatória para evitar que o STF decida sobre a obrigatoriedade da vacinação para a Covid-19. O STF tem a prerrogativa de decidir sobre a interpretação das leis no Brasil e, nesse momento de brigas políticas entre o governo federal e alguns governos estaduais, vem assumindo protagonismo na gestão da crise sanitária. Estão brincando com as vidas de 212 milhões de brasileiros. 

Nós ainda nem temos vacinas aprovadas para Covid-19, então quando tivermos vacinas aprovadas em fase 3, precisaremos realizar campanhas de conscientização da população para termos alta adesão nas campanhas de vacinação. Isto deveria bastar sem ter que obrigar ninguém a se vacinar. No entanto, neste momento de polarização política, associada ao movimento antivacinas, acredito que não haverá outra opção a não ser tornar a vacinação obrigatória. Eu tenho dúvidas se podemos esperar que campanhas de conscientização venham a funcionar neste momento.

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Candidata vacinal de Oxford

O jovem voluntário de apenas 28 anos, que era médico e infelizmente morreu no Brasil, em virtude de complicações da Covid-19 durante o estudo de fase 3 da AstraZeneca, não havia recebido a candidata vacinal, mas estava no grupo controle e recebeu o placebo. Vejam o mal que a Covid-19 causa, um jovem médico intensivista, sem comorbidades, na linha de frente de combate ao novo coronavírus, foi infectado mesmo tomando todos os cuidados e morreu, como outros quase 160 mil brasileiros, vítima da Covid-19. Este é o segundo evento com a candidata vacinal de Oxford. Imaginem se estes eventos tivessem ocorrido com a candidata vacinal chinesa, o que não seria disparado de fake news? O Conselho Federal de Medicina lançou um Memorial em homenagem aos mais de 300 médicos vítimas da Covid-19 no Brasil. Nos unimos respeitosamente a esta homenagem.

Eficácia do isolamento social e uso indiscriminado de antibióticos

Um estudo publicado no dia 22/10/2020 na revista The Lancet, envolvendo 131 países, incluindo o Brasil, mostra que a adoção de medidas não farmacológicas como o isolamento social, o distanciamento físico, a proibição de aglomerações e eventos públicos, as restrições de transporte e viagens e o fechamento de escolas foram eficazes em frear o espalhamento da pandemia da Covid-19. O estudo mostrou que a reabertura das escolas teve efeito inverso, com aumento nas taxas de transmissão do vírus.

A resistência microbiana, que mata cerca de 700 mil pessoas por ano, é considerada uma das maiores ameaças para a saúde global, está ganhando destaque durante a pandemia de Covid-19 e poderá matar milhões de pessoas por ano. A questão de resistência de bactérias e fungos a antibióticos foi discutida anteriormente nesse espaço e nessa matéria.  

Os antibióticos deveriam ser usados apenas após comprovação de infecção por bactérias ou fungos, mas nós vimos um uso irracional, com antibióticos sendo distribuídos nos famosos kits milagrosos que prometem a cura da Covid-19, usando a população brasileira como cobaia. O uso desenfreado de antibióticos sem eficácia comprovada no tratamento da Covid-19, que tem uma baixa taxa de reinfecção por bactérias, conforme mostrado neste texto e também neste artigo, poderão levar ao aumento de casos de resistência microbiana.

Observação : Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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