José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

'VaR' não é futebol

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A diferença é a seguinte: o “var” do futebol é VAR, com as três letras maiúsculas, enquanto o “var” tratado neste artigo é VaR, com V e R maiúsculas, mas a letra ‘a’ minúscula no meio. VaR, que significa “Value at risk”, é uma medida do risco em atividades financeiras.

Suponha que você tome uma decisão qualquer (um investimento, um casamento, uma viagem, uma ida ao cinema, um menu no restaurante). Dependendo de circunstâncias externas, por enquanto desconhecidas, essa decisão pode dar um bom ou mau resultado. Por exemplo, se a decisão é fazer um piquenique no Parque Ecológico, e o cenário externo ´e “chuva intensa”, o resultado será ruim, mas se o evento meteorológico é favorável, o resultado será bom ou muito bom. Ou seja, no presente, você não sabe qual será o resultado final, mas sabe qual é o resultado que corresponde a cada cenário futuro. Assim, faz sentido que você pense no “pior resultado possível”.

O pior resultado possível de uma saída para o cinema é que o filme seja ruim? De fato, não.O pior resultado possível é que você seja atropelada por um caminhão desgovernado na porta do cinema, ou, talvez, que o cinema pegue fogo ou que um “serial killer” resolva liquidar os espectadores exatamente desse filme. Em consequência, você não vai pensar “no pior resultado possível”, já que este é muito improvável ou carente de significado prático. Você pensará, isso sim, no pior resultado possível “excluindo a pequena quantidade de resultados extremos mais desfavoráveis”. Isso ée VaR. O VaR que corresponde a uma decisão qualquer é o pior resultado possível decorrente dela, excluindo (digamos) o 1% dos piores. Se você deseja não entender o que é VaR, leia qualquer um dos manuais para administradores ou investidores em que se explica o conceito. Em termos de estatística elementar, o VaR (p por cento) é o percentil p dos resultados possíveis, ordenados de pior a melhor.

Agora, precisamos tomar uma decisão, e para isso temos um conjunto de alternativas (ir ao cinema, ao jogo de futebol, encontrar com uma pessoa amiga ou ficar em casa?). Para cada decisão, você calcula o VaR correspondente e decide por aquela que tem o melhor VaR.

Bem, você faz isso mesmo? Claro que não. Isso é apenas uma das formas usadas no mundo das finanças para decidir investimentos. Supõe-se que os bancos submetidos a regulamentação calculam diariamente o VaR associado a seus investimentos presentes e obrigam-se a manter esse VaR em um nível seguro (comprando ou vendendo ativos). Em caso contrário, entende-se que estão administrando seu patrimônio de maneira “temerária”.

Normalmente, as decisões de tipo VaR se definem com a exclusão de uma pequena porcentagem dos piores resultados. Por isso, no exemplo acima, falou-se de 1%. Mas nem sempre nossas decisões são feitas com descarte de poucos piores casos. Por exemplo, quando apostamos na loteria, realizamos um investimento com resultado ruim em 99.9% dos casos que, entretanto, descartamos. Por outro lado, quando cuidamos de nossos filhos, procedemos governados pelo pior cenário possível (ou quase), o que nos converte em marionetes de bons e maus conselheiros.

Por outra parte, a vida real tem outras complexidades. É frequente que, em presença de cenários muito negativos, empreguemos nossos melhores esforços, não em nos adaptar aos piores cenários possíveis, mas em mudar os cenários. Dependendo do caso, isto pode ser bem-sucedido ou completamente inútil. Por exemplo, os piores cenários futuros para o planeta Terra são desastrosos. De acordo com eles, o planeta enfrentará eventos extremos de todo tipo, inundações, desertificação, epidemias oriundas da liberação dos vírus no desgelo, costeiras, colapso da agricultura, sumiço de espécies necessárias para o equilíbrio ecológico e assim por diante. Se, como parece provável, essas projeções se devem à ação humana, essencialmente ao aquecimento global disparado na era industrial, a tentativa de modificar os cenários tem sentido, apesar de que a coordenação internacional para atenuar a emissão de carbono de maneira significativa pareça condenada ao fracasso.

Em todo caso, a decisão tipo “VaR, 1%” deveria consistir em preparar o planeta para os piores casos possíveis. Por exemplo, para a eventualidade de sofrermos novas pandemias, deveríamos expandir os sistemas de saúde muito além das necessidades imediatas, da mesma maneira que as forças armadas são superdimensionadas em função de guerras improváveis; para enfrentar o crescimento do nível do mar, deveríamos iniciar a reconstrução de cidades em lugares menos sujeitos à invasão das águas e assim por diante.

Entretanto, os estados estão fazendo pouco nesse sentido. Talvez a lógica prevalescente seja a do jogador de loteria mesmo.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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