José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

Três Momentos de Kepler

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Existem somente cinco poliedros (convexos) regulares: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro. Os vértices de cada um destes poliedros moram em uma esfera (exterior). Os centros de suas faces, todas iguais, moram em outra esfera (interior). Logo, cada poliedro regular é “tangente” a sua esfera interior e está “inscrito” na sua esfera exterior. Não existem, no espaço tridimensional que conhecemos, outros corpos com essas propriedades. Se nosso espaço familiar tem tais extraordinárias características, é natural pensar que o espaço cósmico em que vivemos exibe propriedades similares. Sabendo que existem seis planetas (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno) e acreditando que o Sol está no centro, é natural que as órbitas destes planetas estejam desenhadas nas esferas interiores e exteriores dos poliedros regulares. Assim, a órbita de Mercúrio estaria na esfera interior do octaedro; a órbita de Vênus, na esfera exterior do octaedro, que coincide com a interior do icosaedro; a da Terra, na exterior do icosaedro, interior do dodecaedro; Marte estaria entre o dodecaedro e o tetraedro; Júpiter, entre o tetraedro e o cubo; finalmente, a órbita de Saturno estaria na esfera exterior do cubo. Kepler publicou estas ideias em 1596, quando tinha 25 anos, na obra “Mysterium Cosmographicum”.

Kepler dedicou enormes esforços para provar sua teoria poliedral. Não teve sucesso, pois uma e outra vez as medições que conseguia divergiam de seu modelo. Convencido da verdade essencial de seu desenho, corrigia e reinterpretava dados, descartava medidas de Copérnico que considerava espúrias e se debatia de maneira infrutífera na defesa do “Mysterium Cosmographicum”.

Em 1600, Kepler conheceu Ticho Brahe, o astrônomo mais famoso da época, e conseguiu ser contratado como seu assistente, sendo incumbido de estudar a órbita de Marte, tida como muito difícil. Kepler almejava aproveitar o máximo da experiência e dos dados de Ticho para corroborar sua própria teoria, mas o astrônomo não era generoso com seus dados e tratava Kepler como mero subordinado, indigno de compartilhar sua mesa de jantar. Porém, Ticho morreu em novembro de 1601, e Kepler foi indicado como seu sucessor, cargo que ocupou até 1612. Antes disso, Kepler furtava sub-repticiamente os dados do defunto mestre, para desespero do herdeiro deste, um obscuro astrônomo que tinha desposado a filha do ancião.

Kepler trabalhou em cima dos dados de Ticho durante 12 anos. No fim, tinha descoberto as três leis que fundamentam a astronomia moderna e alicerçam a Física de Newton. A Primeira Lei estabelece que as órbitas dos planetas ao redor do Sol são elípticas, e o Sol não ocupa o centro, mas um dos focos. A Segunda Lei diz que, quando um planeta se desloca desde o ponto A até o ponto B, o tempo transcorrido não é proporcional ao comprimento do arco AB, mas à área do “triângulo” cujos vértices são A, B e o Sol. A Terceira Lei diz que o tempo que um planeta demora para dar uma volta completa ao redor do Sol elevado ao quadrado é proporcional ao raio médio da sua elipse orbital elevado ao cubo.

Kepler chegou a essas conclusões depois de penosa análise dos dados de Ticho, com muitas hipóteses preliminares que resultaram erradas e significativo sofrimento físico e mental. Por isto, com toda justiça, ele é considerado o primeiro cientista de dados da História.

Surpreendentemente, aos 55 anos, Kepler publica uma segunda edição de “Mysterium Cosmographicum”. Nela reivindica, se não a correção das previsões, a verdade profunda do modelo dos poliedros. É difícil, quatro séculos mais tarde, entender por que Kepler não descarta sua contribuição como mero disparate juvenil e faz questão de que seja apreciada por seus contemporâneos. De fato, Kepler continua fascinado com a harmonia que enxerga no método dos poliedros, pela isomorfia que revela entre a verdade geométrica e a verdade cósmica. Ele está convencido de que a criação de Deus contempla essa simplicidade e reivindica ter-se aproximado bastante de sua compreensão. Arthur Koestler, em “O Homem e o Universo”, enxerga os sintomas de uma ilusão paranoide, a “persistente ideia fixa de um jovem de 24 anos, aspirante a teólogo, senhor apenas de um conhecimento superficial de astronomia, que se obstina numa ideia errada, convencido de haver resolvido o mistério cósmico”. Até o fim da vida, Kepler teria se sentido desconfortável com as leis que levam seu nome, pois estas não inspiravam o sentimento de necessidade absoluta emanado pelos poliedros platônicos.

O “caso Kepler” seria apenas o de um gênio psicologicamente desequilibrado se não tivesse ocorrido que o Mysterium Cosmographicum, longe de ter sido descartado sumariamente por seus contemporâneos, foi apreciado e elogiado em círculos bem-informados sobre a astronomia de sua época. No nosso século, teria sido um trabalho aceito por uma boa revista, com um número significativo de citações. Os astrônomos da época, mesmo não convencidos da exatidão do modelo, de nenhuma maneira o consideraram um delírio juvenil.

É claro que, no nosso século, teorias científicas alimentadas exclusivamente por intuições religiosas, ideológicas ou estéticas não sobrevivem ao “escrutínio dos pares” e são sumariamente descartadas como lixo pseudocientífico. Entretanto, podemos descartar a influência de valores morais, de preconceitos culturais, de velados interesses políticos e econômicos na prevalência de conhecimentos científicos bem estabelecidos? Existem “teorias de poliedros” na ciência normal cotidianamente produzida? E, se existissem, seríamos capazes de detectá-las sem mudar de século?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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