José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

A Arca de Noé

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Os textos apresentam o caso de maneira um tanto abrupta. Entretanto, o mais provável é que, durante vários anos, todas as tribos tenham recebido a mensagem: “Se continuarem a pecar dessa forma, destruirei todos vocês!”

Os chefes de algumas tribos devem tê-la ouvido claramente. Outros devem ter fingido que a ouviram e a entenderam, para não ficar para trás. E alguns deles, tendo a ouvido ou não, consideraram que a mensagem era falsa, mal-intencionada ou mal interpretada. Estes foram chamados "negacionistas".

Os que receberam a mensagem e a levaram a sério convocaram uma reunião com todas as tribos. Essas reuniões se repetiram periodicamente todos os anos e, uma após outra, terminavam em compromissos das tribos representadas em termos de redução ou, pelo menos, controle dos pecados cometidos. Em geral, as promessas não eram cumpridas, e a atenuação dos pecados era ínfima. Enquanto isso, os sinais de que a destruição seria inexorável aumentavam ano após ano. Uma hora eram inundações, outra, ondas de calor e incêndios, às vezes furacões, epidemias e terremotos.

Noé, chefe de uma das tribos mais importantes, convocou os Anciãos e, antecipando as modernas teorias de jogos, disse assim: “Pessoal, não vai adiantar. Se uma das tribos reduz seus pecados, outra vai aproveitar para aumentar os seus. Se todas reduzem seus pecados exceto uma, esta tirará vantagem para aplastar as outras. De uma forma ou de outra, todos vão querer que os outros parem de pecar primeiro”.

“Então”, disseram os Anciãos, “vamos morrer todos afogados?”

“Não”, disse Noé, “há uma saída”.

“Qual?”

“Flutuar”.

Noé convocou uma força-tarefa que reuniu os melhores engenheiros civis, hidráulicos e navais, físicos e químicos, médicos, arquitetos, construtores, biólogos, meteorologistas, economistas, educadores, computadores e sociólogos da tribo (e alguns de tribos vizinhas atraídos pelo projeto). Contratou milhares de trabalhadores para empregos diretos e indiretos com bons salários, o que despertou o entusiasmo de todos os envolvidos na grande tarefa. De fato, Noé remunerava generosamente os serviços graças a uma engenhosa e heterodoxa criação de nova moeda, que era muito criticada pelos economistas ortodoxos, mas ele respondia: “A moeda é fiduciária, estúpido!” Deve-se reconhecer, entretanto, que quando apareciam comerciantes ou prestadores de serviços pretendendo aumentos abusivos de preços, Noé os reprimia com métodos que hoje consideraríamos excessivos.

Curiosamente, na comunidade engajada neste projeto solidário cada vez se cometiam menos pecados. Com efeito, a criatividade desencadeada pelo projeto florescia extrapolando os objetivos específicos. Mais ainda, ao mesmo tempo que os técnicos resolviam problemas práticos, cuja formulação conheciam previamente, encontravam as formas de cumprir seus objetivos pecando cada vez menos. Muitos profissionais se sentiam felizes realizando tarefas orientadas ao bem comum em vez de empregar seus esforços fabricando água gaseosa colorida ou especulando no mercado financeiro. Político sagaz, Noé estimulava a participação popular na direção dos trabalhos, através de assembleias e conselhos de vizinhos.

Tamanho sucesso motivou a inveja das tribos rivais, que iniciaram pequenas guerras por procuração contra a tribo de Noé. Mas até para esta eventualidade Noé estava bem preparado, pelo que os vizinhos agressivos ficaram, literalmente, a ver navios.

Provavelmente, foram muitos os navios construídos por Noé e sua tribo. Alguns dizem que tais embarcações eram enormes ilhas autossustentáveis, outros, que chegaram a ser continentes, e os historiadores mais fantasiosos sugerem que ainda vivemos nas terras secas colonizadas por Noé e sua turma no meio do oceano.

Por qualquer ponto de vista, a Arca de Noé foi um projeto muito bem-sucedido.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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