Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Pensar a História e seus lugares

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Ilustra: luppa Silva As questões que nos levam a pensar a História, como escolha profissional e como campo de conhecimento necessário nas escolas, são as questões originárias do tempo presente. O passado que nos interessa é aquele que dialoga com o tempo atual. Os postulados que emanavam a composição de uma visão totalizante e supostamente imparcial sobre outros tempos são, há muito, questionados pelos historiadores.

A escrita da história e, por extensão os fazeres que se replicam em museus, salas de aula e outros ambientes, é um processo de fabricação, como nos alertou Michel de Certeau (1925-1986). Fabricação de sentidos, significados e de fronteiras entre o passado e o presente, entre o pensado e o pensável, entre o fato e o sentido. As fronteiras são móveis e indicam o lugar em que estamos e quais procedimentos podemos adotar para reconhecer limites, impasses e o conjunto de práxis em que as sociedades se olham no espelho e buscam os vestígios do que ela é.

Conservadores e progressistas, autoritários e democráticos são alguns dos espaços delimitados que podem sugerir um amplo espectro de ações e procedimentos entre o tempo presente e as origens de uma sociedade. O que remanesce do passado nem sempre é o que mais desejamos observar no tempo presente: o trabalho com a História é incômodo por desnaturalizar e problematizar as escolhas que habitam entre nós.

A história não emerge como um dado ou um acidente que tudo explica: ela é a correlação de forças, de enfrentamentos e da batalha para a produção de sentidos e significados que são constantemente reinterpretados por diferentes grupos sociais e suas demandas que, consequentemente, suscitam outras questões e discussões. Os debates sobre metodologias para o saber histórico, nesse sentido, não são questões menores ou de mero interesse acadêmico: elas legitimam ou não procedimentos que justificam as interpretações e as escolhas de cada tempo. A história não é, como pensa o senso comum irmanado com o obscurantismo atual, o domínio do pleno relativismo: ela funciona com regras e princípios que precisam ser enunciados, confrontados e validados.


É necessário ensinar História?

No momento em que muitas vozes problematizam o lugar da disciplina História na formação das crianças e jovens, no Brasil e no mundo, é necessário reforçar que todos as pessoas possuem histórias e o componente curricular é um direito. Todo corpo social tem sua história e necessita que ela seja contada, problematizada e, principalmente, reposicionada conforme as alterações e as demandas de cada tempo.

Como o historiador Marc Bloch (1886-1944) bem notou, o tempo é uma categoria fundamental para o estudo da História. Um provérbio árabe diz: “um homem se parece muito mais com seu tempo do que com seus pais”. Ou seja, cabe a quem estuda a História entender as condições de vida adotadas em cada época. O que interessa para os estudos históricos são as rupturas e continuidades, o que se modifica e aquilo que permanece. Ora, como entender as idas e vindas das sociedades humanas sem ter o tempo como base? A História tenta entender as sociedades passadas nos limites colocados em seu próprio tempo. Mas nem sempre essa é uma tarefa simples. Em alguns casos, podemos nos deparar com ideias e práticas muito diferentes das atuais, e que devem trazer estranhamento.

Em nome do discurso oficial da formação do território brasileiro, por exemplo, construiu-se uma narrativa que legitimou extermínio de povos indígenas, saques e um sem número de atrocidades para legitimar o Estado. Por longos tempos, essa história foi edulcorada para gerar sentimentos ufanistas sobre o Brasil potência. Hoje, coexistem esse discurso da pátria gigante e o do extermínio que continua a ser praticado em nome do desenvolvimento. Mudam os atores, mudam as justificativas, mas os questionamentos só são realizados quando há incômodos e silenciamentos que precisam ser apontados.

Foto: Reprodução
Mapa “Terra Brasilis”, de Lopo Homem, Atlas Miller, 1519, Biblioteca Nacional, França

As duas imagens, acima e abaixo, com quase 500 anos de diferença, indicam questões sobre o território brasileiro e demandas que continuam na pauta atual.

Foto: Reprodução
Índios mundurucus cobram demarcação de suas terras, em janeiro de 2017

O estudo das sociedades passadas não funciona como uma chave que abre um baú recheado de respostas para os problemas do presente. Mas, ainda assim, é fundamental para lidarmos com as questões atuais. Não podemos negar que o passado é bastante presente em nossa vida. Nosso modo de viver está impregnado de história: nós carregamos heranças, muitas vezes difusas, das ações das sociedades do passado. Os gregos, ao fundarem a democracia, estabeleceram um legado recuperado e alterado em outros momentos, até chegar aos dias atuais. Ao pensarmos sobre como era definida a democracia na Atenas antiga, podemos estabelecer relações, pensarmos diferenças e semelhanças com a nossa maneira de conceber essa forma de governo. Assim, não basta olharmos para as origens, mas quando nos deparamos com as idas e vindas da História podemos comparar e refletir sobre o nosso tempo. Desse modo, com o estudo da História aguçamos a leitura do tempo presente, enxergando e compreendendo as contradições que se apresentam.


Escrever, ensinar, fazer História

Nas demandas atuais, outro tema central para a área de História, é lidar com os traumas que marcam as sociedades e que afetam a própria condição humana que compartilhamos. Os totalitarismos, as ditaduras, os modos de segregação e de dizimação étnica, racial e de gênero, por exemplo, abrem perspectivas para contínuos e inesgotáveis questionamentos.

O problema da escrita, da memória e do testemunho é fundamental para um país como o Brasil e para todos os que desejam esquecer de situações de gravíssimas consequências, como as vítimas da ditadura. Como observou Jeanne Marie Gagnebin, na obra Limiar, aura e rememoração (2014), a escrita remete ao que não é para ser esquecido, é nossa luta contra a morte e um processo que transforma tanto os mortos (do passado), quanto os vivos (no presente). E, nas aulas de História, escrevemos, pensamos e ressignificamos constantemente na expectativa de reafirmar que não somos fadados à repetição.

 

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