Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Alguma mudança no Ensino Médio?

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Ilustra: luppa Silva A crença de que reformas curriculares podem mudar a educação está em alta entre educadores brasileiros. A expectativa de reforma no Ensino Médio despertou um debate amplo entre professores, associações de pesquisadores e profissionais, estudantes, governos e a mídia. No centro da discussão, além da vexatória e autoritária proposta de reforma por meio de medida provisória, havia a questão do desenho do novo Ensino Médio e sua composição curricular. Pouco se discutiu sobre estratégias e concepções mais amplas sobre o papel desta etapa escolar e dos procedimentos existentes nas práticas educacionais.

Entre críticos e defensores da proposta de reforma havia uma constatação: o Ensino Médio atual é o principal desafio e o grande gargalo no sistema educacional brasileiro. O número de matriculados se mantém estável e não há expansão quantitativa ou qualitativa nesse nível escolar. Os três anos de formação são, grosso modo, desperdiçados em uma estrutura com muitas disciplinas e poucos resultados significativos na aprendizagem.

A proposta governamental de criar um sistema em que haja “itinerários formativos” no lugar das tradicionais disciplinas foi recebida com grande reticência. A proposta não é nova, nem foi formulada originalmente pelos atuais ocupantes do Executivo, mas tornou-se quase indefensável ao suprimir o diálogo e nem permitir que as e os estudantes do país possam escolher, de fato, entre os diferentes modelos de Ensino Médio. O poder público não está obrigado a oferecer em todas as escolas ou mesmo localidades os itinerários propostos: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional.

Foto: Antoninho Perri
Estudantes do Ensino Médio em frente à escola estadual em Campinas | Foto: Antoninho Perri

Considerando a precariedade e a complexidade da educação no Brasil, não é difícil supor que municípios e Estados mais pobres não tenham muitas alternativas a oferecer e, dessa maneira, um dos chamarizes para o novo Ensino Médio, a opção entre caminhos possíveis não passará de uma grande falácia.

Estudantes serão submetidos a um mesmo itinerário, na maior parte das vezes, e a evasão e a precariedade na formação tendem a aumentar. Os vestibulares e as universidades sentirão esse impacto imediatamente, pois o Ensino Médio assegurará apenas que Língua Portuguesa, Matemática e Inglês estarão garantidos. Os demais componentes dependerão de um complexo sistema que nem mesmo o Ministério da Educação detalhou ao país para além das ideias gerais.

Mas o que me interessa pensar é o apego ou desapego em relação às mudanças. Faz algum sentido mudar algo se as práticas escolares continuarão as mesmas?

O processo de escolarização é um dos fundamentos para a cidadania e para a democratização dos saberes, técnicas e artes. Entretanto, as escolas também perpetuam as desigualdades que deveriam combater. O rendimento escolar não é uniforme e não ocorre com a mesma velocidade em nenhum grupo. A heterogeneidade social e a desigualdade econômica têm uma grande correlação com o desempenho escolar e são perceptíveis em qualquer tipo de estudo sobre sistemas de avaliação.

A democratização do ensino, o maior acesso às escolas, não significou um sistema minimamente igualitário. Qualquer banco de dados sistemático, como os do Inep, indica as oscilações entre regiões e famílias com perfis sociais, culturais e econômicos diferentes. A escola, seguramente, não é a única produtora de valores, nem a única instituição capaz de impactar transformações no capital simbólico e cultural de uma pessoa.

Acreditamos e defendemos, por um lado, que a escola é o espaço prioritário para a consolidação dos valores democráticos, republicanos e laicos, que impulsionam grandes transformações. Mas sabemos, por outro lado, que ela vive sob constantes críticas, e que ela não significa um espaço de redenção, pois está inserida dentro das lógicas políticas, econômicas, sociais e culturais de cada tempo.

Nesse sentido, retomo ainda que genericamente, a discussão em torno de um único ponto da reforma do Ensino Médio: a passagem de uma estrutura disciplinar comum no país, para um sistema supostamente flexível e consoante com as vontades dos estudantes, como alardeia a propaganda oficial. Essa mudança significa alguma coisa nova? E não mudar, representaria o quê?

Parece-me que estamos diante de um quadro com longas implicações, mas que ignora situações anteriores igualmente graves e que deveriam ser debatidas de forma mais ampla. Qualquer proposta de mudança não deve ficar restrita a currículos com maior ou menor flexibilidade. Estudantes, à medida que possuem maior autonomia, identificam que o discurso sobre o papel da escola está ancorado mais na tradição do que na efetividade do que vivenciam concretamente.

As escolas não possuem mais uma correlação entre os saberes apresentados aos estudantes e o lugar social que ocuparão em suas vidas profissionais. Os vínculos são, na atualidade, mais complexos e a obtenção de um certificado de Ensino Médio não é um atrativo ou passaporte para um futuro profissional mais exitoso. Podemos pensar e, deveríamos recuperar, que essa não é a função primordial da escola, mas apenas um desdobramento de suas atividades ao abrir um conjunto de referências sobre culturas, ciências e saberes. A escola não deve ser medida pelo indicador no Enem, pela aprovação na Unicamp ou qualquer outro indício de êxito: ela deve ser compreendida no impacto que provoca no modo como as crianças e jovens encaram o mundo.

O lugar de prestígio social das escolas não é o mesmo, embora conserve um grande valor e simbolismo. O acesso a mídias e informações no universo digital, ocupa cada vez mais espaço e concorre com os centros de produção e difusão do conhecimento que, tradicionalmente, universidades e escolas representaram. A questão, por certo, não é detectar a falência da escola diante de novas tecnologias, mas identificar que a escola tem uma demanda mais complexa de formação. O espaço escolar não deve ser apenas o local em que se registra a sensação de perda de prestígio de uma instituição que tinha o papel de hierarquizar saberes, disciplinas e culturas.

A hegemonia cultural que a escola representa está abalada por diversos cortes e recortes. O abalo, seguramente, não significa o desaparecimento da erudição e de saberes clássicos, mas estes não se sustentam por si só. Qualquer tipo de discussão sobre a educação deve considerar como diferentes grupos sociais interagem com seus próprios instrumentos culturais, a herança da cultura letrada e o universo da cultura midiática.

Diante desse quadro, a mudança no Ensino Médio, exclusivamente no ponto relacionado à presença ou não de disciplinas (pois há outros pontos controversos), significará quase nada se não houver uma efetiva compreensão sobre o processo dinâmico da realidade juvenil e das expectativas que, nem no modelo antigo, nem no novo, parecem estar sendo contempladas. Pois, do contrário, parece que estamos diante da constatação de Lampedusa: “Algo deve mudar para que tudo continue como está”.

 

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