Germana Barata Germana Barata é pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri), Unicamp, e pesquisadora visitante da Universidade Simon Fraser, no Canadá, com Bolsa Fapesp (Processo 2016/14173).
É membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) e uma das autoras do blog Ciência em Revista.

Cortes na ciência levam tempo para cicatrizar: o caso canadense

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Ilustração: Luis Paulo SilvaEm tempos de crise e cortes profundos no financiamento à ciência no Brasil, a prioridade da comunidade acadêmica tem sido manter a paciente viva. Em médio prazo, a preocupação é se as lesões permitirão recuperar os danos, para que, então, ela volte a alçar voos. Um olhar sobre o sistema de ciência e tecnologia do Canadá possibilita uma interessante reflexão sobre as consequências de uma década de reduções em investimentos e os esforços necessários para colocar o país de volta nos trilhos.

A ciência canadense passou por tempos obscuros durante a gestão do primeiro-ministro do partido conservador Stephen Harper (2006-2015), período chamado pelos acadêmicos como “guerra à ciência”. Falar de “Marcha pela ciência” por aqui não é novidade. A primeira ocorreu em julho de 2012, quando cerca de 2 mil cientistas, acadêmicos, estudantes e apoiadores da ciência se mobilizaram na capital Ottawa (afora outras cidades) para protestar contra os cortes de recurso, a censura e boicote a instituições de pesquisa - sobretudo aquelas ligadas ao meio ambiente.

Foto: Reprodução
Marcha pela ciência ou marcha “morte da evidência” em março de 2012 na capital canadense, Ottawa, mobilizou cerca de 2 mil pessoas contra a censura e os baixos investimentos em ciência durante a gestão de Stephen Harper. | Foto: Chris Yakimov | Flickr

Os dados e evidências científicas contrariavam os planos progressistas de Harper, portanto, a verba governamental não poderia continuar alimentando os esforços de cientistas que “teimavam” em mostrar o impacto violento do crescimento econômico desenfreado sobre os lagos, rios, florestas, geleiras, clima e estoques pesqueiros - alguma semelhança com a atual gestão estadunidense? O resultado foi uma política que centralizou e censurou a divulgação de resultados de pesquisa ambientais para a imprensa, a partir de 2007, interrompeu 45 anos de coleta de dados do instituto ELA (Áreas de Experimentos em Lagos) em lagos-laboratórios, esvaziou órgãos governamentais de pesquisa ambiental e agravou as condições dos estoques pesqueiros. “Na idade da cegueira intencional, a evidência e a ciência não deixaram de existir; elas simplesmente deixaram de serem consideradas”, resumiu Chris Turner, autor do ótimo livro The war on science: muzzled scientists and wilful blindness (2013, sem tradução para o português), que analisa a gestão Harper do ponto de vista da ciência.

Expectativas de mudanças

A gestão do carismático primeiro-ministro liberal Justin Trudeau trouxe novo fôlego à comunidade científica, sobretudo com o discurso de reconhecer a relevância da participação da comunidade e de investimentos em pesquisa básica para que o Canadá dê o salto necessário para se aproximar dos países de ponta. Na prática, no entanto, os acadêmicos ainda não viram o tal salto ocorrer. Se no primeiro ano de governo as três principais agências de financiamento (Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades, ou SSRCH; Institutos Canadenses de Pesquisa em Saúde, ou CIHR; e o Conselho de Pesquisa em Ciências Naturais e Engenharia, ou NSERC) tiveram a adição de CAD$ 95 milhões (cerca de R$ 240 milhões) ao orçamento anual de CAD$ 2,87 bilhões (2015-2016) (cerca de R$ 7,3 bi), neste ano o orçamento não foi alterado. Para 2018 há expectativas - ainda - de mudanças.

De acordo com o relatório Canada’s Fundamental Review, produzido pela comunidade acadêmica a pedido da Ministra da Ciência, Kirsty Duncan, será necessário uma injeção de CAD$ 485 milhões (cerca de R$1,2 bi), nos próximos 4 anos, em ciência básica, como ação prioritária, para que o país consiga sair da estagnação em pesquisa e desenvolvimento (P&D). O relatório, assinado por 9 cientistas, recomenda que “o governo federal deve aumentar rapidamente o investimento em pesquisa conduzida por pesquisadores independentes para corrigir o desequilíbrio causado por investimentos que favoreceram pesquisas consideradas como prioritárias na última década” (p.xviii).     

Apesar do financiamento atual não refletir o discurso de valorização da ciência do governo Trudeau, há movimentos nesta direção, começando pela criação de dois ministérios voltados à ciência - Ministério da Ciência e o Ministério de Ciência, Inovação e Desenvolvimento. "Não existe solução rápida. Tivemos 10 anos de cortes e vai levar tempo para recuperar as perdas”, enfatizou a Ministra da Ciência Kirsty Duncan em entrevista para o jornal The Star.

Outro passo em direção à valorização da ciência foi dado em setembro, quando o governo reestabeleceu o cargo de conselheiro cientista-chefe (chief-scientist advisor), nomeando a bióloga Mona Nermer, da Universidade de Ottawa, para aconselhar o governo sobre a tomada de decisões a partir de fatos baseados em evidência e dados científicos. O cargo, extinto em 2008, é uma forma de retomar a confiança e a voz de cientistas na política. Para Nermer, “embora este governo tenha avançado muito para melhorar a integridade científica, a capacidade que desapareceu com esses cortes [durante a gestão Harper] ainda não substituíram nem reabasteceram as reservas de cientistas e pesquisadores”, afirmou a conselheira em entrevista para o jornal The Star no último dia 19 de novembro. Estima-se que a ciência perdeu cerca de 1.500 cargos de 2006 a 2015.

Nem tudo que brilha é ouro

Ocorre que a ciência canadense, apesar de próspera a partir de minha perspectiva, tem ficado atrás de lideranças mundiais e de países da OCDE no quesito investimento em ensino superior e pesquisa e desenvolvimento. Segundo o relatório Canada’s Fundamental Review, nos últimos 15 anos os investimentos em P&D e no ensino superior diminuíram. Quadro oposto tem ocorrido nos países do Grupo dos 7 (mais ricos) e em países do leste da Ásia (veja o gráfico abaixo), o que se reflete na saída do Canadá dentre as 30 nações com mais investimentos em P&D.

Percentual de investimento do PIB em Pesquisa e Desenvolvimento

Foto: Reprodução
Uma comparação entre os países do G7 – EUA, Austrália, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão, Coreia do Sul e China – e o Canadá (vermelho), único país cujo investimento diminuiu desde 2000. Reprodução do relatório Canada’s Fundamental Review

Os investimentos na contratação de talentos estrangeiros para as instituições de pesquisa e universidades continuam estáveis desde 2000 – CAD$ 265 milhões! (ou quase R$ 676 milhões) , segundo dados do Canada’s Research Chair. E o mesmo tem ocorrido com os recursos para bolsas de mestrado e doutorado, estáveis desde 2007, apesar do número de estudantes estar em crescimento médio de 20% entre 2010-2014 (dados mais recentes do Statistics Canada, veja também gráfico abaixo) <http://www5.statcan.gc.ca/cansim/a26?lang=eng&id=4770036> .

Evolução das matrículas do mestrado (azul) e doutorado (vermelho) no Canadá de 2008 a 2013

Foto: Reprodução
Fonte: Canada Institute of Health Research (CIHR)

Apesar de baixos investimentos, o Canadá ainda é responsável por 3,8% dos artigos indexados no Web of Science (base de dados internacional de prestígio), queda de 0,4% em relação ao quinquênio anterior, o que o coloca em 9o lugar no ranking mundial (em 2010 estava em 7o lugar). No entanto, a produção de artigos científicos cresceu abaixo do ritmo médio dos demais países, refletindo, assim, as consequências de tímidos investimentos.

Enquanto o Canadá tenta recuperar o sistema de ciência, tecnologia e inovação prejudicados na última década, Barbara Holland, consultora sobre engajamento comunitário do ensino superior, alerta que as universidades passam por uma transformação profunda no ensino superior. Holland, em visita à Simon Fraser University no último dia 9, tratou sobre o necessário investimento na renovação no quadro de docentes e pesquisadores, aos moldes de grandes universidades nos EUA e Austrália, e que permitem potencializar a transformação na forma tradicional e resistente de se ensinar e fazer pesquisa. Para a especialista, o MIT (Massachusetts Institute of Technology) lidera esta transformação, uma vez que também prioriza a interdisciplinaridade dentro da instituição e investe em propostas criativas e ousadas. A nova geração, afirma, não está estudando para ter o mesmo emprego por 35 anos, portanto quer ser eclética, múltipla. “Grandes mudanças estão a caminho”, acredita.

Neste momento de transformação de um ainda tradicional ensino superior, Holland enfatiza a importância da universidade se engajar com a comunidade e os estudantes, rompendo com a tradição de “fazer para a sociedade” ou “ensinar o aluno”, indo na direção “fazer com a sociedade” e “com os estudantes”. Para tanto, lembra, é fundamental reduzir o tempo entre ensino/aprendizado/pesquisa, e valorizar, cada vez mais, a interdisciplinaridade e o coletivo afinal “os problemas são cada vez mais complexos e exigem o trabalho colaborativo para resolvê-los”.

O Canadá tem pressa de recuperar uma década cheia de atropelos em ciência e tecnologia para acompanhar as profundas transformações que estão em curso. O risco de não investir agora é ficar cada vez mais distante dos países do primeiro escalão e com reduzida capacidade de liderar a resolução dos problemas complexos em níveis global e local. A paciente ciência está em recuperação – por aqui –, mas com pressa para retomar as rédeas de seu futuro.

 

 

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