Foto: DivulgaçãoEtienne Samain é professor titular aposentado do Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Entre outros trabalhos, publicou o livro Moroneta Kamayurá (1991) e organizou a coletânea O fotográfico (2005). Com o suporte de bolsa produtividade do CNPq, suas pesquisas recentes partem da obra de Gregory Bateson e de Aby Warburg para pensar a comunicação humana sob a perspectiva da Antropologia, da Epistemologia e da Estética. Em 2012, organizou o livro Como pensam as imagens (Editora da Unicamp).

De passagem

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LPA certeza é universal: sairemos, um dia, do tempo e da convivência humana. No relógio do tempo, as agulhas, para cada um, pararão por um instante. Não levaremos nem nosso corpo, nem nosso espírito, nem esse último sopro que nos animava, nossa “alma”. Tudo estará consumado.

Dia ou outro, cada um vai se perguntando como será sua morte, o que acontecerá após sua morte, o que faremos, todos reunidos, após nossa morte. Não sou diferente. São questões e respostas às quais gostaríamos de responder, mas permanecemos juntos aos nossos balbucios.

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Era pequeno ainda quando vi o cadáver do velho Aristides, nosso vizinho. Era jardineiro e tomava conta de nós. Tinha até construído um abrigo na terra para poder nos refugiar durante os bombardeios da Segunda Guerra mundial. Ao vê-lo morto, não tive medo.

Mais tarde, imaginava um lugar onde poderia, um dia, me encontrar com ele. Era como uma grande sala de espetáculo, um espaço redondo com poltronas de veludo vermelho. Havia muita luz e muitas pessoas. A gente me recomendava de fixar uma espécie de trono. Mas não enxergava nada. Era grandioso, silencioso demais e enfadonho. Saí desse paraíso sem remorsos.

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Takumã Kamayurá

Foi num dia de julho de 1978.  Recolhia mitos na tribo dos índios Kamayurá, no Alto Xingu. Takumã (1932-2014), então capitão da aldeia e pajé de grande fama na região me contou como “subiu” para o céu. Disse: “Fiquei doente muito; estava assim como num sono. Aí saí pela porta dianteira [da maloca]. Meu pai que já tinha morrido, estava lá e disse para mim que lá, na aldeia dos índios no céu, os avós, ele, a minha mãe estavam, todos, com muita saudade de mim. Então ele vinha me levar.

Aí saí pela porta: tinha um caminho que estava subindo para o céu, um caminho bem direito. Aí o meu pai estava à frente de mim. Logo, perto da porta, tinha lá como um pau [liminar]. Essa coisa quando a gente pisa, então não volta mais a viver. É por isso que o meu mama´e (“espírito da gente”, avô de mim também) disse: ‘Não pise aqui não!’. Aí, não pisei, andei de novo. Depois, o meu pai me deu uma cuia para eu beber. Parecia mingau assim. Aí, o meu mama´e disse: ‘Não beba, não, sem isso você não vai voltar mais atrás’. Não bebi não. Andei de novo. Aí tinha lá um pau, parecia como gente, bem no meio do caminho. Papai ia bem à frente, mas o meu mama´e tomou a minha mão: ‘Você tem que passar muito longe desse pau, sem isto, você não vai voltar mais!’. Aí, depois, o meu pai falou: ‘Daqui a pouco, vamos chegar lá na aldeia. Nessa aldeia, igual à nossa, o pessoal, os nossos avós estão dançando, lá no centro. Lá, tudo é bonito e nada estraga’.

Não vi a aldeia lá. Só o meu pai dizia: ‘O pessoal, o seu pai, a sua mãe está com muita saudade de você’. Disse ao meu pai – tinha aqui a minha mulher, o meu irmão que choravam - ‘Não vou agora não’. Aí, voltei até chegar aqui. Quando cheguei na casa, aí espirrei de novo”.

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Christian de Duve

Existe essa posição radical de Christian de Duve (1917-2013), um médico belga, prêmio Nobel de Medicina [1974] que, pouco antes de pedir a eutanásia, dizia a uma jornalista: “A morte, seria exagero dizer que não me assusta, mas não tenho medo do após, do depois, pois não acredito. Quando desaparecerei, desaparecerei, não sobrará mais nada”. Esse cientista católico, que se tornou agnóstico [1], acrescentava: “O verdadeiro, o belo, o bom não é algo que vive fora de nós e que descobrimos, e sim, o que criamos”. Para de Duve, Jesus não era mais a transfiguração e a divinização do personagem histórico. Tinha-se tornado, para ele, um homem a tal ponto humano que podia dizer ao [seu vizinho] paralítico: “Levante-se e ande”. Solidariedade e ajuda aos humanos para “superar sua fraqueza genética e libertar-se do jugo da seleção natural” (p.55).

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Gregory Bateson

Sempre tive uma enorme admiração para com Gregory Bateson (1904-1980), biólogo e antropólogo inglês, um incomparável epistemólogo da comunicação. Lembrava que temos de deixar os fatos da nossa existência trabalharem nossas ideias e não o contrário, e resumia todo seu percurso de pesquisador nesses termos: “Qual é a estrutura que conecta o caranguejo do mar à lagosta e a orquídea à prímula? E o que os conecta, eles quatro, a mim? E eu a vocês? E nós seis à ameba de um lado, e ao esquizofrênico que a gente interna, do outro? Sempre procurei as estruturas que conectam os seres vivos?”.

É, nessa direção que Bateson, à sua maneira, falava da post mortem:

“Por último está a morte. É compreensível que em uma civilização que separa a mente do corpo, tratemos de esquecer-nos da morte ou de criar mitologias sobre a sobrevivência da mente transcendente. Mas se a mente é imanente, não só aos caminhos de informação que estão localizados no interior do corpo, mas também nos caminhos exteriores, logo a morte assume um aspecto diferente. O nexo individual de caminhos que eu chamo de ‘eu’ já não é tão precioso porque este nexo é apenas parte de uma mente mais ampla. As ideias que pareciam ser ‘eu’, também podem chegar a ser imanentes em vocês. Que elas sobrevivem, se for verdade” [2].

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No tocante a essa post mortem, não acredito mais numa “remissão dos pecados, numa ressureição da carne e na vida eterna” como eu proclamava, no passado, recitando o credo da Igreja católica. Acredito, sim, numa “comunhão” (mas não dos “santos”), num possível refluxo de re-conhecimentos e de interações.  Pois parece-me enigmático pensar que todos os laços que se teceram e se partilharam com os vivos numa vida inteira se dissolvam sem mais e desaparecem num silêncio sem fim.

Não sei o que acontecerá depois do nosso desaparecimento. Eu não sei mais do que aquilo que todos ignoram também. No entanto, não posso pensar que tudo o que foi vivido, amado, compartilhado com os outros, com a vida, seja sem destino, sem futuro. Há, penso, uma grande memória da terra, do universo, dos homens e da natureza. Uma grande memória que vive no tempo e fora do tempo. Uma grande memória que nos precede, da qual somos parte e que nos sobreviverá. Uma grande memória que, desde sempre, articula esses pequenos fragmentos de existência que somos.

Afinal das contas, o que a vida nos oferece? Questionamentos e memórias. Traços de memórias e traços de saber. Somos todos precedidos e todos somos seguidos. Estamos apenas de passagem.

 


 

[1] Ver, entre muitos outros, seu curto ensaio De Jésus à Jésus en passant par Darwin. Paris: Odile Jacob, 2011.

[2] Texto de Bateson retomado por Rodney E. Donaldson na sua Introdução ao Sacred Unity. Further steps to an Ecology of Mind de Gregory Bateson. New York: Hampton Press, 2017.

 

 

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