Escutando os Ticuna no Alto Solimões: experiências das Guardas Indígenas

Em janeiro deste ano, uma equipe da Unicamp realizou uma viagem de campo na região do Alto Solimões, no extremo ocidente da Amazônia. O objetivo foi lançar um projeto piloto sobre segurança e guardas indígenas promovidas pelos Ticuna nas comunidades. Este é um ramo do projeto internacional que se dedica ao estudo de políticas e práticas do trabalho policial. **

Começamos visitando a comunidade de Umuariaçu no município de Tabatinga, com cerca de 4,5 mil residentes indígenas Ticuna. Na sexta-feira à noite, encontramos os guardas indígenas reunidos na chamada “mini-delegacia” de Umuariaçu II. Na noite seguinte, eles aceitaram conversar longamente e permitiram que acompanhássemos suas patrulhas nas ruas. Falamos muito sobre o que eles e outros habitantes chamam de “perigos” nas aldeias. Estes guardas, além de serem um mecanismo de manutenção da ordem nas comunidades, das desconfianças de feitiçaria e de outros males que consideram específicos de suas realidades, lidam também com as ameaças da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, que atingem as áreas indígenas próximas às cidades de Tabatinga e Benjamin Constant.

Segundo Mislene Mendes, a criação de uma guarda indígena é um mecanismo repressivo para conter a violência nas aldeias e uma fonte de reclamação de segurança pública. Por isso, ela é entendida como parte de uma mobilização etno-política em defesa dos interesses dos povos Ticuna, no contexto da política indigenista do Estado brasileiro. O Serviço de Proteção aos Índios foi criado na República Velha como meio de contraposição a práticas de ataque à condição indígena. Em face dos vários escândalos envolvendo funcionários do SPI, desde corrupção até crime de genocídio, o órgão foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967. Como Antônio Souza (2005) tem defendido em seus trabalhos, a legislação e as políticas indigenistas, com seu pendor evolucionista, construíram a ideia de que o índio seria, no curso histórico, “civilizado”, e, por isso, precisava ser tutelado.

O resgate das experiências de auto-segurança teve início em 2008, com a Polícia Indígena do Alto Solimões (PIASOL) e a Segurança Comunitária Umariaçu (SEGCUM). Mesmo com seu elevado nível de complexidade, elas são muitas vezes confundidas, de maneira equivocada, com milícias ou organizações paramilitares. Depois de vários anos lutando por uma estabilização institucional, os grupos de guardas funcionam hoje de modo intermitente e à base de voluntariado, apenas com alguma ajuda alimentar por parte da comunidade e com dádivas ocasionais de material fornecido pelas Guardas Civis Municipais.

Muitos desses guardas vivem do que plantam, e alguns, de seus animais, de modo que seu tempo de descanso é escasso e precioso. Por isso, o que mais reivindicam é a estabilização e a remuneração do serviço que prestam, procurando evitar brigas, tentativas de homicídio com facas e outras formas de agressão, sobretudo entre os mais jovens. Defendem que sua presença e ação permitem aos residentes circularem à vontade e sem assaltos nas comunidades. Por isso, o trabalho dos guardas se concentra no período que vai de quinta-feira à madrugada de domingo, mimetizando os procedimentos adotados pelos guardas civis municipais e, em parte, dos militares do exército, em sua estética, hierarquia e táticas de trabalho. O exército tem uma extensa base militar em Tabatinga que atrai muitos Ticuna e oferece contratos de serviço temporários, sobretudo aos que vivem em Umuariaçu e em outras aldeias próximas.

Estivemos em Tabatinga no domingo em que se realizou mais uma série do vestibular indígena da Unicamp. Quando regressamos às aldeias, percebemos que frequentar a universidade é uma aspiração de muitos, não só dos mais jovens. Famílias tentam a sua sorte. Estudar é uma alternativa ou uma composição de vida combinada com a roça, a cozinha, o artesanato e outras fontes de sustento.

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A ausência do Estado é uma dos problemas enfrentados pelas comunidades (Foto: Divulgação)

Em Benjamin Constant, conhecemos a história da pioneira Izelina Otaviano Guilherme, uma cinquentenária que representou o SPI nas aldeias próximas à cidade (em Bom Jardim) e que, com seu voluntarismo, em momentos cruciais, como nos anos da pandemia de covid-19, conseguiu evitar uma onda de mortes entre os Ticuna. Com ela, atuou sua irmã, Josiane Otaviano Guilherme, uma importante liderança feminina e ativista Ticuna que tive a oportunidade de conhecer e entrevistar por longas horas. A família extensa de Izelina tem uma ramificação de atividades e redes por todas as aldeias e polos indígenas do Alto Solimões, incluindo-se vários técnicos da FUNAI e da SESAI.

Assim, fomos levados pela mão de Izelina à reunião do PAC — Patrulha Aérea Civil 64 —, um projeto que ela integrou no último ano. O Capitão Palmeira, reserva do exército, trata Izelina como “Sargento Otaviano” e acredita que, em breve, com os treinamentos, ela será novamente promovida nas patentes atribuídas pelo PAC, composto majoritariamente por voluntários Ticuna. O PAC tem a ambição de aplicar, na prática, estratégias e táticas de salvamento de pessoas na floresta, mas também de "educar" as populações indígenas para uma certa ordem moral.

Enquanto estávamos na sua casa, ficamos sabendo que Izelina foi selecionada para fazer o curso da Guarda Civil Municipal (GCM) de Benjamin Constant. Embora trabalhe como agente de saúde e intérprete indígena no único hospital da cidade, após muitos anos de trabalho em um hospital militar, Izelina "levanta serviço" temporário na GCM, como diz. Assim, nas noites de 28 e 29 de janeiro, acompanhamos Izelina, ostentando sua camiseta da guarda indígena e outros apetrechos de segurança, nos festejos do dia da cidade de Benjamin Constant. Ela foi destacada pela GCM para revistar mulheres que entravam na área VIP onde o prefeito e aliados assistiam aos shows.

Na aldeia do Bom Porto Cordeirinho, fomos convidados para a primeira reunião de lideranças. Escutamos professores da FUNAI, ex-seguranças, agentes de saúde e enfermeiras do SESAI, sacerdotes, pastores e toda uma série de pessoas disputando visões sobre os problemas que assolam as comunidades Ticuna, que vão desde a necessidade de estradas asfaltadas e pontes à violência causada pelo tráfico de entorpecentes e pela venda de álcool.

Por fim, viajamos até a aldeia natal de Quirino, Novo Porto Lima (com cerca de 350 pessoas e 50 casas), onde encontramos seus avós, tios, tias, irmãos e irmãs, uns trabalhando na limpeza e moedura das macaxeiras, outros nas roças distantes, e ainda outros construindo canoas ou tecendo as belíssimas redes de pesca, como no caso do avô. Descemos e subimos o rio Solimões de canoa, debaixo de intenso sol, seguido de chuvas.

O Alto Solimões é musical. Foram dias intensos escutando histórias sobre os perigos e as famílias, entre comensalidades e afetos. Ouvimos o uirapuru-verdadeiro, o cricrió e a harpia "chorar", como diz Izelina. As aves trazem notícias de além. Avisam. Mas o som das aves canoras é constantemente intermediado por cantos evangélicos, pelo forró eletrônico, o piseiro e a pisadinha das caixas de som, e ainda pelo motor das mototáxis, uma das poucas formas de transporte terrestre das cidades amazônicas. Escutamos as mulheres mais velhas sobre a sua vontade de estudar e de ajudar seus filhos nesse processo, enquanto suas mãos teciam bolsas de tucum para vender em Manaus.

Deste projeto inicial, com 16 entrevistas realizadas (com cerca de 3 horas cada), surge a conclusão provisória de que os povos Ticuna, como se referem a si mesmos, se sentem frequentemente esquecidos pelo Estado. Enquanto o Estado não chega para os apoiar, eles e elas criam suas próprias formas de organização coletiva, como a segurança local — que, há décadas, as instituições do Estado e as políticas indigenistas tardam em reconhecer, oficializar e governar.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

*Susana Durão é professora de antropologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e coordenadora da Secretaria de Vivência nos Campi; Quirino Pinto Lucas é aluno da graduação em Ciências Sociais. Ele ingressou na Unicamp via vestibular indígena.

** O projeto se intitula "Police Unions, Democratic Transformation, and Social Justice" e está sediado no Centre for Criminology & Sociolegal Studies da University de Toronto (com o protocolo ético 00032842), com coordenação geral da Profa Beatrice Jauregui. No Brasil, é coordenado por Susana Durão, no âmbito das atividades do NEPP e do IFCH. O projeto visa a criar dados comparativos entre as realidades dos Estados Unidos, do Canadá e do Brasil.

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