Audiodescrição: Imagem colorida de uma gota de água projetando uma planta no fundo.

A coluna Ambiente e Sociedade é um espaço de discussão crítica e analítica sobre as questões ambientais contemporâneas, dando ênfase às problemáticas concernentes às transformações para sociedades sustentáveis. Dentre outros, são abordados temas como mudanças climáticas, políticas públicas ambientais, biodiversidade, degradação ambiental urbana e rural, energia e ambiente, Antropoceno, movimentos ambientalistas, desenvolvimento e sustentabilidade, agricultura sustentável e formação de quadros na área.

O resíduo sólido é a prova da nossa insustentabilidade

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Resíduo é aquilo que resta, que remanesce, a diferença entre o valor verdadeiro e o valor observado, erro. Essa definição nos remete à ideia de desperdício, de algo que não deveria existir. O excesso e o desperdício são características latentes da sociedade atual e têm como consequência direta a geração de resíduo sólido.

Fisicamente, o resíduo contém as mesmas matérias-primas encontradas nos produtos que consumimos. O que os diferencia é a  maneira como percebemos o seu valor. No século XXI, há diferentes razões para descartar objetos. Razões que, se não inteiramente novas, operam em uma escala sem precedentes. Em muitas situações, a ausência de valor  é subjetiva e não está diretamente relacionada às condições físicas do produto ou à sua funcionalidade. O aumento agressivo de inovações tecnológicas criou uma geração de consumidores ansiosos por comprar coisas que se tornarão obsoletas antes mesmo que a maioria das pessoas tenha  acesso a elas.  A ética do consumo se baseia no direito natural a novos objetos. Veneramos a novidade e, com isso, enchemos nossas lixeiras com coisas perfeitamente funcionais, mas que simplesmente deixaram de ser novas.

Grande oferta de novos produtos, ou versões novas dos mesmos produtos geram toneladas de resíduos sólidos. Crédito: Pixabay
Grande oferta de novos produtos, ou versões novas dos mesmos produtos geram toneladas de resíduos sólidos. Crédito: Pixabay

A primeira vez em que a maioria das pessoas se depara com o resíduo é quando os pais pedem para colocar o saco de lixo para fora ou no local de coleta. Ao executar essa ação simples, aprendemos que o lixo consiste em coisas quebradas, estragadas, velhas e sem valor, coisas que não precisamos e não queremos mais. Tudo fechado num saco plástico preto. O que acontece posteriormente ao descarte é desnecessário saber. Essa narrativa nos ensinou a não pensar na coleta e no destino do lixo. Ao longo das últimas décadas, entretanto, o saco de lixo vem se tornando cada vez maior e já não podemos ignorá-lo.

A geração de resíduo sólido se tornou um dos problemas mais significativos do nosso tempo. Em geral, a gestão de resíduos sólidos é o maior item orçamentário nas prefeituras e fonte direta de geração de empregos. Na era da sustentabilidade, o desafio para os gestores públicos é imenso: gerir o resíduo sólido da maneira mais econômica, social e ambientalmente adequada possível. Essa tarefa envolve monitorar a geração do resíduo, sua composição, seus movimentos transfronteiriços, realizar campanhas de educação e informação, alocar verbas do orçamento, estabelecer parcerias e contratos, adotar tecnologias de tratamento e promover a geração de emprego. Uma cidade que não consegue gerir efetivamente o seu resíduo sólido, raramente consegue administrar de forma eficiente os demais serviços públicos.

A reciclagem é ainda a política pública mais popular nos programas de gerenciamento de resíduos sólidos. Vista como política ambiental, governos municipais têm defendido o reprocessamento industrial do resíduo sólido e da produção de matéria-prima secundária como uma forma viável de recuperar o seu valor. No entanto, nos últimos anos, a reciclagem vem apresentando diversos efeitos colaterais, entre eles o downcycling. Isso ocorre quando o processo de reciclagem reduz a qualidade de um material e produz uma matéria-prima secundária de baixa qualidade, utilizada para fabricar produtos que, ao final de sua vida útil, não podem ser reciclados. Além disso, o principal problema da reciclagem deve-se ao fato dela desviar o foco do quão é insustentável o atual sistema econômico baseado no consumo. A maioria das pessoas adeptas da reciclagem declaram que o seu direito de consumir advém da sua contribuição à coleta seletiva. Por isso, a reciclagem como política pública, dificilmente contribuirá para a diminuição da geração de resíduo sólido, pois não age para reduzir a taxa de crescimento do consumo.

A prevenção, um dos princípios Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), ainda é mal compreendida pela maioria das pessoas. Muitas vezes, elas identificam a reciclagem como uma forma de reduzir a quantidade de resíduo depositada nas lixeiras convencionais. Contudo, a prevenção ocorre antes que um produto seja percebido como resíduo. Ela é composta por atividades que visam: (1) eliminar ou reduzir a quantidade de resíduo gerado; (2) melhorar a eficiência dos produtos através de processos de reutilização, recuperação, manutenção; e (3) aumentar a durabilidade e longevidade dos produtos. Ou seja, a prevenção pode ser feita de maneiras diferentes dependendo das características do produto, do ator social e das circunstâncias locais. Essa condição multifacetada da prevenção a difere da reciclagem, que se limita a um comportamento homogêneo (segregar o resíduo e destiná-lo à coleta seletiva). Sua natureza heterogênea pode influenciar preferências e escolhas, traduzindo-se em comportamentos diferentes, já que cada indivíduo julga as suas ações de prevenção de geração de resíduo sólido de acordo com sua perspectiva.

Existem vários exemplos de ações individuais para evitar a geração de resíduo sólido como mudar hábitos de consumo, eliminar o uso de produtos descartáveis, evitar produtos com um número excessivo de embalagens, dar preferência aos que possuam manutenção e reutilizar ao invés de descartar. Prevenir significa, portanto, consumir de modo responsável. Em uma sociedade hiperconsumista, o consumo responsável se coloca como um antídoto ao assumir que todo consumo gera impactos ambientais e sociais em todas as fases do ciclo de vida do produto. Essa nova forma de consumir exige entender o comportamento humano e suas interfaces, pois a valoração de um produto é fluída e definida socialmente. Algumas pessoas guardam objetos por razões sentimentais, outras porque sua cultura valoriza a preservação de determinados objetos e outras porque o grupo social ao qual pertencem desenvolveu práticas de reutilização.

Prevenir a geração de resíduo sólido requer não apenas inovações tecnológicas em relação ao produto, mas também legitimidade das políticas públicas. Legitimidade em relação à percepção da população de que as suas metas são baseadas em valores centrais pró-ambientais estabelecidos pela sociedade. Qualquer tentativa de garantir a conformidade pública com os requisitos de uma política de prevenção da geração de resíduo sólido não será bem-sucedida à medida que o grau de legitimidade da política diminuir. Consequentemente, a legitimidade tem como condição prévia a educação para uma cidadania informada, visando uma democracia participativa. Educar não é somente informar. Vivemos sobrecarregados por informação, que acaba causando  dificuldade de raciocínio, obstruindo nossas ações. Educar a população para prevenção significa viabilizar a formação de  competências, conhecimentos e experiências para formar uma base sólida, de forma que, quando um indivíduo decide reduzir a geração de resíduos, isso possa ser facilmente reconhecido.

A educação voltada ao consumo responsável não é apenas importante para motivar a população a se envolver em comportamentos voltados à prevenção. No campo do design, por exemplo, muitos especialistas não conseguem inferir corretamente os impactos ambientais e sociais de seus projetos ou dos sistemas produtivos das empresas. Como consequência, temos, por exemplo, máquinas de café que utilizam cápsulas de café orgânico, frutas e legumes orgânicos embalados em filme plástico, roupas produzidas com algodão orgânico importado e transportado a longas distâncias, sucos naturais envasados em garrafas de vidro não-retornáveis. Essas situações poderiam ser, no mínimo, contornadas se esses profissionais tivessem o conhecimento da importância em inferir corretamente os riscos ambientais e o impacto desses produtos.

Prevenção de geração de resíduos sólidos depende de políticas públicas específicas na área de gestão e de educação
Prevenção de geração de resíduos sólidos depende de políticas públicas específicas na área de gestão e de educação

O que vemos em nossas lixeiras é apenas a ponta do iceberg. Na visão tradicional dos gestores públicos, reduzir a geração de resíduos sólidos implica diretamente em reduzir a atividade econômica, o que se traduz na redução do consumo que, por sua vez, não se mostra atraente como atividade de prevenção. É necessário mudar essa perspectiva e investir em alternativas inovadoras ao hiperconsumo por meio de uma compreensão melhor dos geradores diretos e indiretos de resíduo sólido e de como a população e os demais atores sociais lidam com a questão do resíduo. O produto deve ser compreendido para além do seu ciclo de vida, incluindo seu design e simbologia. O cidadão não deve apenas reduzir o seu consumo, deve exigir produtos mais duráveis, menos tóxicos, projetados para agregar valor e com informações claras sobre seu processo de fabricação, uso e pós-uso. Portanto, políticas de gestão de resíduo sólido devem se basear em programas de educação para mudança comportamental, lembrando que será mais fácil alterar o comportamento de consumo da população na medida em que houver mais situações sociais para apoiar essa mudança.

 

Ana Paula Bortoleto

Professora Livre-Docente do Departamento de Infraestrutura e Ambiente da FECFAU e docente permanente do Programa de Doutorado em Ambiente e Sociedade/NEPAM.

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