Edição nº 648

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 04 de março de 2016 a 11 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 648

Pesquisador analisa ilustrações
científicas em livros didáticos

Trabalho desenvolvido no IG foi o primeiro
concluído em regime de cotutela

O pesquisador Edson Roberto de Souza, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, investigou em sua tese de doutorado as relações entre o papel desempenhado pelas ilustrações científicas em livros didáticos que abordam temas de geociências e seus respectivos processos editoriais. Ele usou livros produzidos no Brasil, Espanha, Portugal e Itália e elaborou uma proposta de boas práticas para a produção e utilização dos diferentes tipos de ilustrações científicas em livros didáticos. O trabalho foi a primeira pesquisa concluída em regime de cotutela pela Unicamp. Nesse regime, o doutorando pode obter o grau de doutor simultaneamente em duas universidades. No caso, Souza tornou-se doutor em Ciências pela Unicamp e doutor em Ciências Experimentais e Sustentabilidade pela Universitat de Girona, na Espanha.

“As imagens são fundamentais para as geociências”, disse ele. “Por exemplo, a gente trabalha com uma extensa escala temporal: vamos desde eventos que podem ocorrer de uma maneira muito rápida, instantânea, até eventos, processos que são muito demorados. Então, como não é possível observarmos uma gama de eventos in loco, as ilustrações desempenham papel crucial”. O pesquisador, que também é professor do Ensino Médio e já publicou um livro com os resultados de uma investigação sobre o papel discursivo dos gráficos em questões das provas do Enem, afirmou que, em sua tese, quis dar “um passo além” da mera enumeração de problemas.  Souza estabeleceu, entre outras coisas, uma categorização para as ilustrações que aparecem nos livros, identificando seis grupos: fotografias, representações esquemáticas, gráficos, mapas, ilustrações tradicionais e reproduções de obras de arte – cada um deles com desafios e soluções próprios.

“Usei dois referenciais para fazer minhas análises”, explica Souza. “Um é o da análise de discurso, para estudar o funcionamento didático das representações gráficas e também para ser capaz de compreender os discursos gerados pelas respostas dos profissionais vinculados aos processos editoriais. O outro é um referencial das geociências: um documento que foi produzido na Espanha pela comunidade geológica do país”. Esse documento definiu os temas fundamentais das Ciências da Terra e a forma como deveriam ser estudados no Ensino Médio. “Nesse debate, os espanhóis chegaram a dez ideias-chave. E essas dez ideias são divididas em subtemas”.

Foco

A pesquisa reuniu cerca de 120 livros do Brasil, da Itália, de Portugal e da Espanha. “Identificamos um tema que usava, de modo mais uniforme, os diferentes tipos de ilustrações. Esse procedimento foi necessário porque não serie possível olhar o funcionamento das imagens dentro de todos os tópicos da disciplina. O tema a que chegamos foi o da dinâmica interna da Terra”. Entre os assuntos cobertos por esse tema estão questões como a origem do campo magnético terrestre e os terremotos.

“Um tipo de ilustração ligada a esse tema pode mostrar, por exemplo, um modelo do interior da Terra. O interior da Terra a gente nunca viu, nunca vai ver”, disse Souza. “Então, a imagem tem esse papel fundamental, porque proporciona uma representação, e é em cima dessa representação que o estudante vai tentar entender os complexos processos que ocorrem no interior do nosso planeta”.

Ele cita, como exemplo relativamente comum de imagem que induz ao erro, a representação do campo magnético da Terra com o desenho de um ímã no interior do globo. “Isso está totalmente em desacordo com as teorias modernas”, disse. A origem do campo magnético

terrestre está possivelmente associada ao movimento de cargas elétricas na parte externa, fluida, do núcleo do planeta.

Cada categoria de representação apresentou problemas próprios, comuns a todos os países.  “Encontramos fotografias desconectadas do texto, sem nenhuma citação nele, então ela está lá apenas como enfeite”, exemplifica. “Ou uma fotografia que ocupa duas páginas de abertura de um capítulo, mas não há comentário que direcione o olhar do leitor, facilitando sua interpretação. Então o aluno vai olhar aquilo e pensar o quê?”

Souza explica que, ao analisar ilustrações, ele se fazia uma série de questões, entre elas: “Essa ilustração representa claramente o que se pretende? Um leitor leigo teria condições de interpretar o que a ilustração demanda?”, disse. “E essa é uma questão interessante porque não sou geólogo, sou físico. Não tenho olhar ‘viciado’ de um geólogo, que às vezes passa o olho na imagem geocientífica e já está tão acostumado com o tema que acha que ela é adequada. Ele pressupõe coisas que não estão na imagem”.

Outro problema é gerado por ilustrações que criam falsas expectativas. “Por exemplo, a legenda diz que se trata de uma imagem do Monte Olimpo de Marte, o maior edifício vulcânico do sistema solar. Só que o texto apresenta ao aluno uma foto chapada, de satélite. Se o texto afirma que ele é o maior, como podemos esperar que o aluno vá enxergar isso numa imagem de satélite? De que maneira problemas assim poderiam ser evitados?”

Neste caso do Monte Olimpo, Souza sugere que um exemplo de boa prática seria associar à imagem de satélite uma ilustração do perfil do vulcão, e uma comparação, em escala, com as maiores elevações da Terra.

“Nas representações esquemáticas também apontei todos os erros que via. Nos mapas, também: falta de legenda, legenda incompleta, mal posicionada, cores muito próximas, falta de título, falta de orientação espacial, e por aí vai”.

 Discursos diversos

“Para realizar o trabalho, levantamos um número grande de ilustradores, autores e editores dos diferentes países, montamos os questionários nos três idiomas – português, italiano, espanhol – e aí a gente ficou mandando e-mail para esse pessoal, pedindo para participarem da pesquisa”, relatou Souza. “Na Espanha foi fácil, porque eles têm o hábito de participar de pesquisas, talvez porque vejam uma possibilidade de aperfeiçoamento de processos. Na Itália e em Portugal foi difícil pela escassez de editoras. No Brasil, nem se fala: o pessoal nem responde e-mail”, disse, acrescentando que só conseguiu a cooperação de editores nacionais após a intercessão de uma colega professora, autora de livros didáticos.

Depois de receber as respostas, o pesquisador passou a ligar os problemas encontrados às características do processo editorial.

“Também é preciso entender que as posições ocupadas pelos profissionais interferem de forma decisiva nos diferentes discursos produzidos”, disse o pesquisador. “Se você conversa com o ilustrador, que normalmente é freelance e não tem compromisso com a editora, ele é bastante crítico: diz que quem encomenda a ilustração muitas vezes não tem clareza do que quer”. Já o autor, de acordo com Souza, tem um olhar mais pedagógico pra obra. O editor, por sua vez, tem um olhar mais comercial. “Então, o processo tem três profissionais com visões diferentes que, de alguma maneira, têm de se entender para produzir a obra. E aí entram várias coisas: falta de recursos financeiros, tempo insuficiente, ilustradores não especialistas –

isso é um problema sério, porque o profissional tem que produzir uma ilustração que é científica, mas não tem o conhecimento. Então, acaba produzindo representações que induzem a interpretações distorcidas”.

Muitas vezes, o ilustrador trabalha com base em referências fornecidas pelo editor, recriando uma ilustração já existente sobre o mesmo assunto. Se há erros ou distorções na referência, eles se perpetuam. O pesquisador sugere investimento na formação de ilustradores especialistas. “Não é qualquer ilustrador que serve para qualquer projeto. O que os editores dizem é que não há ilustradores especialistas no mercado, são raros. Uma sugestão que dou é que o próprio editorial deveria trabalhar na formação de ilustradores”.

Brasil e Espanha

As geociências não constituem uma disciplina específica no currículo do Ensino Médio brasileiro. Seus conteúdos se distribuem entre os programas de outras matérias. “Sempre se fala que não tem geociências nos livros brasileiros. Mas elas estão ali, só que diluídas. Aquelas dez ideias-chave, que nos livros espanhóis, italianos e portugueses vão aparecer em uma única disciplina, nos nossos livros vão aparecer um pouco em física, um pouco em biologia, um pouco em geografia”, relata Souza. “Tem um problema isso, porque cada professor está trabalhando os conceitos e métodos segundo seu olhar de especialista em sua área”, e não segundo um modelo estabelecido pelas Ciências da Terra.

Os livros brasileiros se destacam, de acordo com o pesquisador, na qualidade dos mapas. “Nossos mapas são imbatíveis”, disse. “Todos eles têm título, escala, orientação espacial. Esteticamente são mais pobres, mas tecnicamente são perfeitos. Creio que é porque, e isso é uma suposição, como esses esquemas aparecem na geografia, e o mapa é uma linguagem do geógrafo, acaba sendo muito bem feito. E nos livros lá fora isso não ocorre, sendo comuns mapas sem uma série de requisitos fundamentais. Para mim, foi uma surpresa bem legal e um resultado importante, esse dos mapas brasileiros”.

Para o futuro, Souza pretende levar a pesquisa à sala de aula, para investigar como as ilustrações científicas são interpretadas pelos alunos. “Ainda não existe uma pesquisa ampla nas geociências sobre isso: como os alunos interpretam as ilustrações científicas em contextos didáticos. No pós-doutorado pretendermos avançar e complementar a pesquisa desenvolvida no doutorado adicionando a análise da ponta final do processo, ou seja, o funcionamento da imagem no ambiente de leitura em sala de aula”.

O pesquisador também pretende retornar à Espanha, onde permaneceu durante parte do doutorado, para apresentar os resultados do estudo. “Nós nos comprometemos com as editoras. Elas nos apoiaram muito, enviando livros para análise, atendendo aos questionários. Porque têm interesse em melhorar, sabem que têm problemas”.

No Brasil, diz ele, não temos essa cultura. As editoras parecem estar mais focadas na comercialização do que na qualidade do livro. “O editor brasileiro vai muito pelo mercado, e não pensa tanto na questão da qualidade. Ele quer ter um produto novo, está de olho na legislação, nas novas diretrizes curriculares do governo. Essa é a preocupação. Esperamos que a divulgação da nossa investigação sensibilize as editoras.”

Souza teve dois orientadores e uma coorientadora nesse trabalho: no Brasil, Denise De La Corte Bacci, da Unicamp. E na Espanha, David Brusi Belmonte, de Girona, e a coorientadora Maria Amelia Calonge García, da Universidad de Alcalá.

Publicação 

Tese: “O potencial didático das imagens geocientíficas em livros de textos do ensino secundário: representações gráficas da dinâmica interna da terra”
Autor: Edson Roberto de Souza
Orientadores: Denise De La Corte Bacci e David Brusi Belmonte
Coorientadora: Maria Amelia Calonge García
Unidade: Instituto de Geociências (IG) e Universitat de Girona (Espanha)