Edição nº 644

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de novembro de 2015 a 29 de novembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 644

Da inovação à transferência de tecnologia

Estudo sugere que condicionantes endógenos e exógenos interferem nas políticas de C&T no país

As instituições públicas de ciência e tecnologia (C&T), e de pesquisa e de ensino, têm sido pressionadas a dar respostas e a contribuir para enfrentar os muitos desafios da sociedade, isso no Brasil e no exterior. Ainda que tais instituições tenham múltiplos papéis – gerar conhecimento, formar recursos humanos e promover o avanço da ciência –, esta pressão tem se concentrado no papel e na contribuição das pesquisas para a inovação. Uma inquietação em especial salta aos olhos: nem tudo o que é produzido é utilizado. Então o que impede a tecnologia de ser transformada em inovação no Brasil?

Estudo de doutorado do Instituto de Economia (IE), que teve como foco a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), sugeriu que alguns condicionantes endógenos e exógenos perpassam a falta de definição de C&T para o desenvolvimento econômico do país. Esses fatores, em alguns momentos, agem ajudando e em outros inibindo a transferência de tecnologia, particularmente na agricultura.

Cássia Isabel Costa Mendes, autora do trabalho, concluiu que, “no árido panorama da relação entre ciência e inovação, é preciso se aproximar mais dos agentes do sistema nacional de inovação para desenvolver tecnologias ainda mais apropriadas ao ambiente produtivo e social”.

Mesmo a Embrapa, que se desponta como caso exitoso nesse cenário, também sofre pressão para mostrar que seus trabalhos continuam impactando positivamente o agronegócio brasileiro. De outra via, a empresa tem sido questionada quanto à apropriação, pelos agricultores e pela sociedade, das tecnologias dos seus pesquisadores. Ela enfrenta problemas para transferir suas tecnologias para aqueles que dela deveriam se beneficiar? A burocracia dificulta o desenrolar de um processo que necessita ser muito fluido, dinâmico, flexível para responder às múltiplas situações e exigências do mercado e da sociedade? Ou é um pouco de tudo?

Para saber o que de fato ocorre, Cássia entrevistou 57 especialistas em inovação tecnológica e transferência de tecnologia agrícola: representantes de setores do Sistema Nacional de Inovação na Agricultura, de instituições públicas e privadas nacionais e internacionais, de pesquisa, ensino, extensão rural, governo, produtores rurais e dirigentes de empresas líderes de agronegócio.

Com base nas entrevistas, ela analisou os fatores que estariam condicionando a transformação dos conhecimentos e tecnologias gerados nos Institutos Públicos de Pesquisa (IPP) em Inovação. Adotou o conceito de inovação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que envolve produto, processo ou serviço, novo ou melhorado, em uso produtivo e social.

APROXIMAÇÃO

Entre os fatores externos avaliados, a pesquisa sinalizou que a C&T tem um papel protagonista no país, porém somente no papel. Na prática, sua inserção no aparelho produtivo é frágil, e a política pública não possui mecanismos para transformar a tecnologia de bancada em inovação, nem para incentivar seu uso nas empresas em geral.

A atual estruturação das cadeias produtivas globais, realça Cássia, requer certa subordinação do agricultor às práticas propostas pelas empresas líderes e difundidas entre os agricultores pela rede de prestação de serviços financeiros e tecnológicos das próprias empresas.

Sabe-se que os pacotes tecnológicos existem e que para os agricultores é ‘cômodo’ adotá-los como parte de uma relação mais ampla, que envolve financiamento, compra e venda antecipada de insumos e de produtos, garantia de armazenagem e transporte, e assistência técnica.

De acordo com Antônio Márcio Buainain, docente do IE e orientador da tese, o jogo do mercado é mais pesado e complexo, e a tecnologia é apenas uma parte (nem sempre a mais relevante). Se a oferta tecnológica não está envolvida neste jogo, que inclui desde o financiamento até a comercialização, dificilmente vai se tornar dominante. 

O agricultor, considera o professor, torna-se cada vez mais subordinado às cadeias produtivas, e as opções tecnológicas estão muito distantes dele. Em casos extremos, cabe-lhe aceitar ou não a tecnologia oferecida. Entretanto, se não aceitar, está fora da cadeia de suprimento. “Tal subordinação tem impacto na transferência de tecnologia pela Embrapa, em especial nas cadeias em que a empresa tem pouca atuação.”

Cássia comenta que, além disso, a fragilidade do sistema de extensão rural impacta principalmente os pequenos agricultores, que não recebem a atenção das grandes corporações e não estão plenamente inseridos nas cadeias mais dinâmicas do agronegócio. Então o desmantelamento da extensão rural, relata ela, produz pressões para que a Embrapa assuma este vazio institucional, o que tem trazido confusões no interior da empresa.

Por um lado há aqueles que favorecem uma contribuição mais ativa em atividades de extensão, para viabilizar a transferência de tecnologia; por outro lado, há aqueles que entendem que este papel extrapola os limites de uma empresa de P&D, cuja competência é voltada a estas atividades e cujos recursos já são insuficientes frente à crescente pressão para gerar tecnologia.

“Independentemente das opiniões contrárias, a pesquisa constatou que falta clareza sobre o modelo de extensão rural adequado para colaborar no processo de transferência de tecnologia pela Embrapa”, informa a pesquisadora.

MODELO 

Em sua fase inicial, conta a doutoranda, essa empresa adotou com êxito o modelo tradicional linear de transferência de tecnologia, tendo a fonte (pesquisa) de um lado e o receptor (produtor rural) de outro, com a intermediação da extensão. Ocorre que as condições atuais são outras, e este modelo já não responde mais à realidade.

A agricultura passou a ficar mais complexa, surgiram novos desafios e uma maior presença da iniciativa privada, exigindo da Embrapa a necessidade de desenvolver pesquisas em parcerias. Neste novo contexto, ter ou não o serviço de extensão, provavelmente não resolveria o problema da transferência.

Ao mesmo tempo, milhões de pequenos agricultores foram incorporados à agenda de políticas públicas da década de 1990 com a criação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf), tornando-se stakeholders do sistema de inovação. “Falhou o modelo inicial porque não havia um sistema de extensão rural eficaz. A Embrapa sempre teve tecnologias que poderiam e podem alavancar esses produtores excluídos tecnologicamente, mas elas não chegaram e ainda não chegam a eles.”

Para Buainain, a questão que ora se impõe é o que a Embrapa deve fazer para mitigar ou superar este deficit? Muito pouco, opina, “porque os determinantes da exclusão não têm a ver com a qualidade da tecnologia e sim com fatores fora do seu alcance, desde o financiamento até o acesso aos mercados”.

Cássia Isabel Costa Mendes, autora do trabalho e professor Antônio Márcio Buainain, orientador da teseINTERAÇÃO

Avaliando a Embrapa, Cássia notou que a adoção da sua tecnologia decorre do seu modelo de gestão. A empresa trata, entende, analisa e percebe os fatores que influem na transferência da tecnologia. Mas ela carece de um modelo de gestão organizacional sistêmico e horizontal que se reflita numa governança transversal da pesquisa. Esse modelo deve buscar uma maior conexão com o ambiente externo, para trabalhar no contexto de redes, numa contínua interação entre agentes do sistema nacional de inovação na agricultura.

Para essa inovação ser efetiva, afirma ela, é preciso que participem do processo inovativo os agentes de P&D e os agentes responsáveis pela produção, comercialização, distribuição e assistência técnica de inovação. Este é um pressuposto do modelo interativo de inovação.

A interação e a complementariedade de competências entre os agentes são condições para revigorar ainda mais a Embrapa, no contexto da nova fase de desenvolvimento agrário brasileiro e das forças motrizes da agricultura de dimensões nacional e mundial.

A Embrapa precisa operar com competências que vão além da pesquisa, sublinha a autora, intensificar suas interações com instituições que detêm competências de mercado não associadas apenas à C&T e à P&D, visto que, sozinha, ela não responde a todas as iniciativas de inovação agrícola.

Graças aos resultados desse estudo, Cássia, que também fez mestrado no IE, acaba de receber o prêmio de melhor tese em Administração Rural do Conselho Federal de Administração da organização do 53º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia e Rural (Sober), em João Pessoa.  

MODELO 

A Embrapa é um dos paradigmas da política científica e tecnológica do país. Conforme Buainain, pesou muito o fato de, ao ser criada há 43 anos, seus fundadores perceberem que uma empresa de pesquisa se faz com recursos humanos qualificados. Foi então que encaminhou cerca de 1.000 pesquisadores para estudarem no exterior. “Naquele momento, não estava gerando tecnologia. Estava criando essas condições.”

A empresa percebeu que tinha que lidar com fatores mais urgentes da agricultura. Fez uma década de investimentos, e surgiram tecnologias-chaves à ocupação do Cerrado. O que era visto como impróprio, em razão da tecnologia da época, é hoje a principal área agrícola do país.

Tecnologias como fixação biológica de nitrogênio no solo impulsionaram o Brasil. A Embrapa criou uma ferramenta em que a própria planta fixa esse elemento e reduz o uso de nitrogenados, que são 80% importados. Também trouxe a tecnologia do cultivo mínimo, suprimindo as atividades de aração e gradação de terra.

Antigamente, a terra ficava exposta, pois essa tecnologia era de países frios. “Vinha o inverno e protegia o solo. Com o calor, os microrganismos eram destruídos, e o solo endurecia. Havia problemas de compactação por causa das máquinas. Era inviável uma agricultura nessas condições”, reconhece Buainain.

Atualmente, com a tecnologia do cultivo mínimo, o solo não fica mais exposto às condições do tempo. Aumentou a produtividade, reduziu custos e propiciou o plantio de duas safras. Só se plantava no verão. Agora, o Brasil caminha para usar a terra 365 dias por ano.

“Enquanto nos países do Norte a terra ‘hiberna’ no inverno, no nosso país, quando sai a safrinha, entra o gado, sai o gado e entra nova safra e tem ainda o aproveitamento da floresta. O rendimento é alto. Esse é o programa Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF)”, informa o orientador.

 

Publicação

Tese: “Transferência de tecnologia da Embrapa: rumo à inovação”

Autora: Cássia Isabel Costa Mendes

Orientador: Antônio Márcio Buainain

Unidade: Instituto de Economia (IE)

Financiamento: Embrapa