Edição nº 638

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de setembro de 2015 a 27 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 638

O canto do cisne da escravidão

Análise de 814 escrituras revela declínio do tráfico de escravos na cafeicultura de SP entre 1861 e 1887

Na fronteira agrícola da cafeicultura paulista, a última década em que vigorou a escravidão no Brasil foi marcada por incertezas que levaram a uma queda nos preços dos cativos, por um aumento do comércio de mulheres em relação ao de homens e à manutenção de um mercado pouco competitivo. Esses aspectos emergem dos dados levantados e analisados pelo pesquisador Gabriel Almeida Antunes Rossini para sua tese de doutorado “A dinâmica do tráfico interno de escravos na franja da economia cafeeira paulista (1861-1887)”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp e orientada pela professora Lígia Maria Osório Silva.

“Na pesquisa que realizamos, a ideia de franja foi usada como algo correlato à noção de fronteira, ou seja, uma zona que se insere entre áreas pouco ocupadas, ou desocupadas, e regiões cuja ocupação encontrava-se mais estruturada. A ampla disponibilidade de terras nessas áreas permitiu a formação de grandes propriedades, sobretudo por meio do apossamento e da grilagem”, disse o autor, que respondeu às questões da reportagem por e-mail. 

“O acesso recorrente a novas porções de terra situadas na franja da economia cafeeira foi essencial para o seu sucesso, pois atenuava as consequências de práticas agrícolas extensivas e predatórias e, assim, alargava a possibilidade de acumulação, mesmo em um contexto de alta significativa do preço dos escravos, decorrente do fim do comércio transatlântico de cativos, ocorrido em 1850”, prossegue Rossini. 

Rossini analisou alguns importantes centros cafeicultores do Oeste Paulista pertencentes à Zona da Baixa Paulista (Rio Claro, Araras e Araraquara). Tal como diz o autor, “direcionamos nossa atenção para a Zona da Baixa Paulista, área considerada por parte da literatura como uma das mais interessantes zonas de São Paulo por representarem, as suas atividades econômicas e o seu povoamento, uma síntese da dinâmica econômica e demográfica de São Paulo”.

A partir da análise de 814 escrituras de compra e venda de escravos, que registraram a comercialização de 1.756 indivíduos das mais diferentes idades, origens e de ambos os sexos, a pesquisa lança luz sobre aspectos importantes das dinâmicas econômica e demográfica da segunda metade do século 19.

Terreiro de café na região de Campinas, em 1888: nos anos que antecederam a Abolição, proprietários de escravos falsificavam registros para burlar a legislação

FAMÍLIAS

A tese descreve como o mercado interno de escravos, no contexto da expansão das áreas dedicadas ao café, se adaptou ao fim do tráfico internacional, ocorrido e 1850, e também, à sucessão de medidas legislativas que prenunciavam a Abolição, como a proibição da separação de famílias de escravos no ato da venda (decreto de 1869), a Lei do Ventre Livre (de 1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). 

Inicialmente, no âmbito do recorte espacial eleito para a pesquisa, no decorrer dos anos 1860 ficou clara a preeminência do tráfico intraprovincial, entre os escravos negociados em grupo, e do comércio local, entre os cativos vendidos individualmente. Ao longo dos anos 1870, principalmente, entre 1874 e o ano de 1880, o tráfico doméstico se intensificou e a preponderância das transações interprovinciais foi marcante entre os indivíduos negociados em grupo (maioria absoluta dos escravos comercializados). “Por sua vez, o início dos anos 1870, tal como apontou o professor José Flávio Motta no seu último livro, foi marcado por grandes dúvidas relativas ao prosseguimento do comércio interno de escravos, resultantes da promulgação da Lei do Ventre Livre. Dentre os escravos cujas vendas foram registradas ao longo dos anos 1881-1887 em uma das três localidades em análise, apreendemos que o maior contingente (55%) foi comercializado localmente”, disse Rossini. “As vendas intraprovinciais abarcaram 45% dos escravos transacionados e, como era de se esperar, não houve transações por meio do tráfico interprovincial, em razão da promulgação dos impostos que tornaram proibitivas as movimentações de cativos entre diferentes províncias do Império”.

Também foram encontrados indícios de que os proprietários de escravos passaram a falsificar registros, a fim de escapar das restrições impostas pela legislação. O decreto de 1869 determinava que “em todas as vendas de escravos, sejam particulares ou judiciais, é proibido, sob pena de nulidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos”. Já a Lei do Ventre Livre estabelecia que “em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou da mãe”. 

“Aventamos a hipótese de que os senhores, no momento da venda, para atenuar a perda de liquidez dos seus cativos, decorrente das promulgações citadas, omitiam a real situação conjugal e familiar dos seus escravos”, disse o pesquisador. “Para tanto, declaravam, por um lado, que as crianças tinham pais desconhecidos ou eram órfãs e, por outro, afirmavam que os adultos eram, na sua maioria, solteiros, ou meramente não incluíam essa informação. Assim, foram colocados em marcha estratagemas que permitiram aos senhores, quando conveniente, desmembrarem as famílias escravas durante a venda, momento particularmente importante para a vida do cativo e para a dinâmica do sistema”.

“Esses artifícios corroboram, em parte, o movimento diagnosticado por autores que afirmam que a política senhorial dificultava a família e a solidariedade entre os cativos, mesmo tendo em vista que os africanos escravizados e seus descendentes construíram, para além do parentesco, outras formas e meios de solidariedade para orientar suas vidas”, acrescentou Rossini. “Contudo, a despeito disso, não compartilhamos as formulações que afirmam que os escravos foram incapazes de formar famílias estáveis, de aculturação, de exercer participação política, ou seja, que prevalecia dentre eles condição de anomia”. 

Ele cita trabalhos do pesquisador do IFCH-Unicamp Robert W. Slenes, que mostram que, em propriedades grandes e médias, com vários anos de operação, “houve importante constância da família escrava”. “Aí, encontramos famílias escravas extensas, que perpassam, às vezes, três gerações, e a convivência entre irmãos adultos e seus respectivos filhos”.

Os dados levantados para a tese indicam que, em relação às décadas anteriores, houve um número um pouco maior de escravos registrados como casados nos anos finais do regime escravista. “O que talvez tenha ocorrido em virtude da expectativa de proximidade da abolição, que atenuou as preocupações de outrora, relativas à liquidez dos escravos decorrentes da promulgação de 1869 e da Lei do Ventre Livre”, disse o pesquisador.

INCERTEZAS

A tese aponta ainda que houve uma expressiva queda no preço médio dos escravos negociados na região estudada, na última década antes da Abolição, que aconteceu em 1888. “É importante termos em vista, tal como notou Carvalho de Mello [Pedro Carvalho de Mello, autor de ‘A Economia da Escravidão nas Fazendas de Café: 1850-1888’], que o preço do aluguel de escravos não sofreu variações significativas até a Abolição, mesmo com a queda do preço dos escravos ao longo dos anos 1881-1887, no sudeste cafeeiro do Império”, disse Rossini. “Assim, a queda de preços dos cativos estava mais relacionada às incertezas, por parte dos fazendeiros, sobre o futuro da escravidão do que à paulatina inadequação do trabalho escravo às condições de produção vigentes”.

Essas mesmas incertezas, afirma o pesquisador, ajudam a explicar o fato de a última transação de escravos registrada na área de estudo datar do ano anterior à abolição. “O fato de termos encontrado, em 1887, o último registro de negociação envolvendo escravos diz respeito às dúvidas e inseguranças dos fazendeiros em relação à continuidade do sistema”, disse ele. 

A documentação analisada para a tese mostra que a maioria dos cativos comercializados, na região estudada, na última década da escravidão foi negociada em grupo, e com gradual crescimento das escravas em relação ao volume de escravos homens negociados. “Observamos, ao longo dos anos derradeiros do escravismo, uma ascendência das escravas, em parte importante do recorte espacial estudado. Por exemplo, em Araraquara, a relação de sexo foi de 170 escravas mulheres por 100 homens vendidos” no período 1881-1887, disse o pesquisador. “Desta forma, os dados corroboram as proposições que afirmam ter a extinção do tráfico negreiro transatlântico introduzido um movimento de gradual minoração do gênero masculino dentre os escravos transacionados”.

COMPETITIVIDADE 

Uma das conclusões da tese é de que o mercado interno de escravos na região analisada foi pouco competitivo. 

“Na nossa pesquisa, percebemos, a despeito do extenso número de agentes envolvidos nas transações, recorrência de compradores e vendedores, e agentes que, em dado momento, realizaram compra ou venda de grande número de escravos em uma única transação, o que possivelmente possibilitou assimetria nas atuações desses indivíduos no mercado”, afirmou Rossini.

“Além disso, notamos que os escravos, mesmo aqueles pertencentes à mesma faixa etária, não eram bons substitutos. Variáveis como nacionalidade, experiência prévia, sexo, etc. influenciavam o preço e a preferência manifestada pelos compradores. Observamos, ainda, que o contato entre os mesmos agentes não foi recorrente ao longo do tempo. Ou seja, as transações não eram condicionadas por laços de confiança que poderiam facilitar vendas a prazo”.

“Com relação os anos 1881-1887, inicialmente aventamos a hipótese de que o mercado, ao longo desse período, deveria ser mais competitivo em relação às décadas anteriores, em virtude da promulgação de tarifas inviabilizadoras do tráfico interprovincial, da crescente fragilidade dos negócios realizados e do consequente esmaecimento da figura de possíveis traficantes de maior envergadura. Contudo, novamente notamos a recorrência e a relevância de parte dos agentes envolvidos nos negócios negreiros. Assim, acreditamos que o mercado interno de escravos, ao menos na parte inicial da importante região da Baixa Paulista, que foi uma das principais áreas receptoras de cativos, ao longo dos anos 1861 e 1887, foi pouco competitivo”, afirmou.

 

Publicação

Tese: “A dinâmica do tráfico interno de escravos na franja da economia cafeeira paulista (1861-1887)”

Autor: Gabriel Almeida Antunes Rossini

Orientadora: Lígia Maria Osório Silva

Unidade: Instituto de Economia (IE)