Edição nº 637

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de setembro de 2015 a 20 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 637

Fazendo o papel de sensor

Substrato celulósico é a base de língua eletrônica e de sistema que analisam de glicose a bebidas

Acima, sistema de língua eletrônica para a análise de amostras de cerveja; abaixo, aparelhos de análise eletroquímica de glicose, colesterol e ácido úricoO papel está presente no mundo da química analítica há séculos, mas somente há dez anos ocorreu a sua redescoberta como um substrato valioso para sensores de plataformas analíticas, iniciando-se um boom nas pesquisas com esta finalidade. A constatação é da pesquisadora Emília Katarzyna Witkowska Nery, que acaba de apresentar tese de doutorado focando o desenvolvimento de dois sistemas tendo o papel como base: um sensor para análise simultânea de glicose, ácido úrico e colesterol; e línguas eletrônicas para análise de bebidas (água, cervejas e vinhos). Os dispositivos são do tipo POCT (Point of Care Test), que podem ser manuseados por leigos e os resultados analisados imediatamente ou transmitidos a um laboratório.

“Podemos listar facilmente algumas das inúmeras vantagens desse substrato celulósico, incluindo propriedades mecânicas, estrutura fibrosa tridimensional, biocompatibilidade e biodegradabilidade, facilidade de produção e modificação, preço razoável e disponibilidade em todo o mundo. Essas características fazem do papel uma primeira escolha para sensores descartáveis e plataformas de sensores integrados”, afirma a autora na tese intitulada “Dispositivos analíticos a base de papel para análise de interesse clínico e alimentício”, orientada pelo professor Lauro Tatsho Kubota e defendida no Instituto de Química (IQ).

Emília Nery lembra que os primeiros sensores deste tipo remontam há 2.000 anos e que hoje, apesar de a maioria dos testes populares oferecerem somente respostas do tipo “sim” ou “não”, já temos no mercado aqueles que também medem concentrações, como o de pH. “As técnicas atuais possibilitam desenvolver maior número de testes quantitativos, com várias análises ao mesmo tempo e apresentando os dados de maneira simples para leigos. Aqui no laboratório do professor Lauro Kubota, os trabalhos em papel começaram alguns anos antes do meu, e eu quis dar sequência por se tratar de um material facilmente modificável, levando-se muito pouco tempo entre se ter a ideia e desenvolver um dispositivo.”

Segundo a pesquisadora, em trabalho com polímero, por exemplo, que exige técnicas mais complexas de microfabricação, o tempo para produzir um dispositivo é bem maior e, muitas vezes, sem trazer os resultados desejados. “Com o papel também pode não dar certo, mas basta imprimir e recortar outras folhas para insistir no teste – se a opção é a impressão com cera criando uma parede hidrofólica, já se tem um microcanal para passagem da amostra. Muitos grupos iniciaram suas pesquisas por causa da técnica extremamente simples, rápida e barata. Já foram desenvolvidas inúmeras técnicas de fabricação e metodologias de detecção, sendo que agora se busca viabilizar aplicações efetivas desses dispositivos.”

COLESTEROL,
ÁCIDO ÚRICO E GLICOSE

A primeira parte do projeto de Emília Nery envolveu o desenvolvimento de sistemas para análise de glicose, colesterol e ácido úrico em amostras biológicas (com detecção colorimétrica e eletroquímica), a avaliação dos métodos de quantificação de proteínas imobilizadas no papel e a revisão dos métodos de imobilização enzimática. “Alguns sistemas baseados em papel já foram propostos, mas nenhum deles realiza a análise de três compostos em um único dispositivo. Além disso, os outros sistemas são baseados na quantificação de peróxido de hidrogênio, com uso de uma enzima auxiliar, a peroxidase – que não é empregada no meu sistema, reduzindo o custo e a complexidade do sensor.”

A pesquisadora explica que passou por várias etapas e por vários problemas, desde a dificuldade inicial de detectar os três analitos (amostras com glicose, ácido úrico e colesterol) simultaneamente. “A glicose é facilmente detectável, em qualquer tipo de dispositivo; já para colesterol, a parede não pôde ser feita de cera, pois a amostra perpassa esse material; e com o ácido úrico, a área de detecção não coloria uniformemente, formando um anel. Tive então que criar um dispositivo para cada analito.”

A pesquisadora Emília Katarzyna Witkowska Nery, autora da tese de doutorado: dispositivos possibilitam resultados imediatosO passo seguinte, segundo a autora da tese, foi juntar os três dispositivos em um, onde o fluxo de amostra não se dá de um lado ao outro, e sim de cima para baixo: são três camadas de papel (quantidade que pode variar), havendo, além da zona de controle, uma zona para cada analito. “Nesse caso já foi possível juntar glicose e ácido úrico. O colesterol, porém, ainda foi detectado em dispositivo separado, sem impressão de cera, mas com diversos métodos de microfabricação e impregnação com polímeros, num desenho que deve permitir a retenção de amostras e uma resolução suficiente.”

A estabilidade para armazenamento e transporte dos sensores foi outro aspecto avaliado por Emília Nery, uma preocupação que não aparece na literatura relacionada a outros dispositivos baseados em papel, embora eles sejam geralmente submetidos a temperatura elevadas. Ela estudou 33 métodos de imobilização com base em diferentes fenômenos de absorção, por meio de simples microencapsulação em gel, acompanhando a atividade enzimática por 24 semanas. “Obtive uma estabilidade de vinte semanas, o que é bastante considerável.”

LÍNGUAS ELETRÔNICAS

A segunda parte do projeto foi voltada ao desenvolvimento de sensores potenciométricos e sua aplicação em sistema de língua eletrônica para análise de água (visando principalmente falsificações nas águas minerais) e classificação de cervejas e vinhos. “Simplificando, podemos dizer que a língua eletrônica procura imitar o reconhecimento biológico pela língua e nariz. A língua possui sensores que não são tão seletivos e fornecem um sinal bastante complexo enviado ao cérebro para análise – analogicamente, a resposta dos sensores potenciométricos é analisada por quimiometria.”

A pesquisadora testou diferentes tipos de isolamento, bem como de papel e de eletrodos para obter sensores estáveis capazes de executar medições em amostras líquidas, chegando a um primeiro dispositivo para identificar adulterações em águas minerais. “Conheço quem viajou para a Índia e ficou com medo de comprar água mineral por achar que a garrafa tinha sido enchida na torneira e, portanto, com contaminantes. No Brasil isso também acontece e nem precisa ser intencional: se o recipiente for mal lavado, podem surgir bactérias ou outra contaminação orgânica e inorgânica.”

Como cada água mineral possui uma composição diferente, podendo variar inclusive de poço para poço, Emília Nery observa que o sensor não vai determinar o tipo de contaminação (por bactérias ou excesso de ferro, por exemplo), e sim que há algum composto estranho. “Coletei águas minerais engarrafadas, diretamente na fonte, de torneira e também de lago (‘falsificadas’). Foi possível distinguir as águas minerais e as falsificadas, e ainda utilizei parte das amostras para treinar o sistema, que as classificou corretamente como adulteradas e não adulteradas. O aproveitamento foi de cem por cento.”

Em relação à cerveja, considerada a terceira bebida mais popular do mundo e a primeira entre as alcoólicas, a autora da tese testou 34 tipos de várias marcas. “Pela lei de pureza da Alemanha, a cerveja deve ser composta apenas de lúpulo, malte e água. Porém, muitos produtores, para diminuir o custo, adicionam milho, arroz ou mesmo açúcar ou caramelo, sem informar os consumidores na embalagem. A língua eletrônica permitiu medir o pH de todas as amostras, prever o teor alcoólico de mais da metade, discriminar alguns tipos de cerveja de outras, a presença dos ingredientes essenciais, tipo de fermentação e adição de corantes ou estabilizadores, de outros cereais e de açúcar ou caramelo.”

VOLUME DE AMOSTRA 

A terceira etapa foi da aplicação da língua eletrônica para discriminar 11 tipos de vinho, uma bebida mais cara e bastante sujeita a falsificações, sobretudo quanto à origem. “Assim como o champanhe, há vinhos característicos de uma região cujo nome é apropriado por outros produtores. A ideia era classificar as amostras por origem geográfica, casta de uva e outros fatores que lhe dão sabor, mas identifiquei apenas o tipo de uva; para conseguir outras informações precisaria incluir mais eletrodos. Ainda para a tese, procurei minimizar o volume de amostra necessária para cada tipo de análise, com o uso de pastilhas de papel e medição em condições de escoamento, chegando a quantidades de 40 microlitros.”

Na opinião de Emília Nery, entre os dois conjuntos de sensores que desenvolveu, as línguas eletrônicas estariam mais próximas que virarem produtos comerciais, visto que foram aplicadas para amostras reais e com resultados próximos dos exames laboratoriais. Quanto ao outro grupo de sensores, falta incluir a detecção de colesterol. “Para os usuários, os sensores de glicose, ácido úrico e colesterol funcionariam similarmente a um teste de gravidez. Já a língua eletrônica seria uma segurança para o turista na compra da água e um dispositivo útil para os produtores de cerveja – inclusive das artesanais, que precisam acompanhar o tempo de fermentação.”

 

Publicação

Tese: “Dispositivos analíticos a base de papel para análise de interesse clínico e alimentício”

Autora: Emília Katarzyna Witkowska Nery

Orientador: Lauro Tatsho Kubota

Unidade: Instituto de Química (IQ)