Edição nº 590

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de março de 2014 a 24 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 590

Luz sobre a hipofosfatasia

Modelo 3D permite identificar a importância de mutações genéticas na perda precoce de dentes

 

Construção de modelo tridimensional (3D) permite identificar como uma mutação genética, ainda não descrita na literatura, afeta a função de uma enzima fundamental para a correta formação do osso e dos tecidos envolvidos na sustentação do dente, mais especificamente o cemento dental. O estudo, realizado na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp e desenvolvido pela bióloga Luciane Martins, da área de periodontia, que contou com a colaboração da também bióloga Mariana M. Ribeiro, da área de histologia e embriologia, recebeu destaque na capa da revista BONE, um dos principais periódicos da área de tecido mineralizado, com fator de impacto de 4,247 nos últimos cinco anos.

Iniciado em 2004 e coordenado pelo professor Francisco Humberto Nociti Junior, o trabalho interdisciplinar faz parte de uma linha de pesquisa que tem como objetivo principal o entendimento do metabolismo de fosfato e o processo de mineralização dos tecidos dentais. Também participaram do estudo Thaisangela L. Rodrigues, Ana Paula O. Giorgetti, Miki T. Saito, bem como os professores Márcio Z. Casati e Enilson A, Sallum e o grupo da professora Martha Somerman (NIH/NIAMS, EUA). Esta linha de pesquisa tem contado com o apoio no Brasil da Fapesp, CNPq e Capes e nos EUA do Forgaty Institute - do National Institute of Health (NIH).

O projeto começou a ser idealizado quando dois gêmeos idênticos, na época com dois anos de idade, foram levados à FOP por apresentarem perda precoce dos dentes de leite. Os pacientes foram encaminhados ao Departamento de Periodontia da Faculdade para avaliação detalhada das anormalidades dentais e tratamento adequado com vistas ao gerenciamento de sintomas e à prevenção da perda de dentes permanentes.

A hipofosfatasia é uma doença que afeta a formação dos tecidos mineralizados tais como os ossos e os dentes. Nos casos mais severos da doença, os ossos do esqueleto não são formados corretamente e, sendo extremamente frágeis, ocasionam a morte do feto ainda no ventre da mãe. Nos casos em que a doença se expressa de forma mais branda, o indivíduo não exibe alterações detectáveis na formação do osso esquelético, mas apresenta perda precoce de dentes de leite ou permanentes e outras anormalidades dentais como atraso na erupção dos dentes, raízes curtas, falta de cemento acelular, defeitos na polpa, dentina e na formação do esmalte dental, anormalidades da coroa e caries dentarias severas.

 

Causas

A hipofosfatasia é uma doença genética hereditária caracterizada pela deficiência na atividade da enzima fosfatase alcalina (TNAP), essencial para o metabolismo de fosfato e formação de tecidos mineralizados. A doença é causada por mutações no gene ALPL, que codifica a TNAP, afetando sua estrutura e/ou sua capacidade catalítica e em consequência sua função na célula.

Luciane explica que as células de todos os indivíduos contêm as informações genéticas – contidas na molécula do DNA – necessárias à produção de proteínas que constituem a estrutura das células que compõem os diferentes órgãos do corpo. Essas proteínas desempenham diversas funções essenciais para o bom funcionamento do organismo. Em decorrência, a produção incorreta de uma proteína específica, devido à ocorrência de mutações, pode acarretar a redução ou perda da atividade desta proteína prejudicando o desenvolvimento e/ou funcionamento correto dos tecidos nos quais ela esta presente.

Como mostra o estudo realizado pelo grupo da FOP e recentemente publicado pela revista BONE, as células obtidas dos dois pacientes portadores da odontohipofosfatasia foram utilizadas como um modelo biológico para a caracterização dessa nova mutação.

Em vista de a doença estar associada a mutações na enzima TNAP, a pesquisadora se propôs a identificar primeiramente que tipo de mutações poderiam ser encontradas nas células dos pacientes estudados, em que região do gene da TNAP elas se localizavam e se estas resultavam da transmissão através do pai ou da mãe.

 

Achados

Nessa procura, a pesquisadora identificou duas alterações genéticas, uma transmitida pela mãe, portadora assintomática, e outra, ainda não relatada na literatura, transmitida pelo pai, o qual também apresentava alterações odontológicas.

Uma vez identificadas as mutações, explica Luciane, “nos buscamos entender como estas alterações no gene da fosfatase alcalina afetavam a estrutura da proteína, que regiões desta (domínios) estavam sendo modificadas e como estas alterações estruturais poderiam afetar sua função nos tecidos mineralizados”. Estas elucidações somente seriam possíveis através da construção de modelos tridimensionais (3D) da proteína mutante, com a sobreposição destas estruturas 3D com as da proteína normal e da análise de parâmetros físico-químicos dos aminoácidos afetados. O trabalho de construção das estruturas 3D foi realizado pela bióloga Mariana M. Ribeiro, da área de histologia e embriologia da FOP.

O resultado desse estudo em modelagem 3D recebeu destaque na BONE e um dos modelos foi estampado na capa da edição de outubro. Foi através da construção de modelos tridimensionais da proteína mutante e de estudos mais específicos que os pesquisadores buscaram entender a consequência biológica de cada uma das mutações, ou melhor, de como a mutação altera a atividade da enzima e como a deficiência de atividade desta enzima afeta o desenvolvimento e o bom funcionamento dos tecidos em que ela atua.

Entre outros achados os pesquisadores verificaram que a mutação em questão era responsável pela redução na quantidade de proteína na superfície da célula, onde ela exerce sua função no metabolismo de fosfato. O estudo de correlação entre o genótipo – mutação no gene – e o fenótipo – características da doença observadas nos pacientes – mostrou que as alterações provenientes do pai e da mãe dos indivíduos afetados eram responsáveis e cooperaram para a diminuição de proteínas funcionais na superfície da célula, resultando em uma atividade deficiente da enzima com o consequente impacto nas estruturas de sustentação do dente, particularmente do cemento dental. O cemento dental é uma camada de tecido mineralizado que circunda a raiz do dente responsável, juntamente com o ligamento periodontal, pela estabilização dos dentes no tecido ósseo.   A sua formação deficiente causa perda precoce dos dentes nestes pacientes.

Luciane considera que o estudo trouxe importantes contribuições para as áreas odontológicas e médicas: “Na odontologia a compreensão dos eventos envolvidos na formação e manutenção dos dentes e das estruturas que lhes dão sustentação, o periodonto, é fundamental para o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas e de regeneração/reconstrução das estruturas perdidas durante a doença, evitando a perda dental. Para a medicina o conhecimento gerado poderá vir a servir de base para estudos que visam entender os aspectos envolvidos no metabolismo ósseo que têm como objetivo propor novas abordagens de tratamento de doenças que afetam de forma geral os ossos”. 

 

Um longo caminho

O professor Francisco Humberto Nociti Junior lembra que o trabalho publicado faz parte de pesquisas da área de periodontia iniciadas em 2002, quando iniciou seu estágio de pós-dourado na Universidade de Michigan (EUA). Quando lá chegou se deparou com um problema que lhe foi apresentado pela sua supervisora, professora Martha Somerman: uma mutação no gene ANK, responsável pelo transporte de pirofosfato do ambiente intracelular para o extracelular, poderia resultar na calcificação das articulações. Dessa forma, a proposta foi a de avaliar qual o impacto de alterações no metabolismo do fosfato nos tecidos periodontais.

De posse de amostras biológicas, Nociti iniciou então suas pesquisas, centrado no fato de que alterações na proteína ANK, e consequente desequilíbrio da razão entre pirofosfato e fosfato, poderia resultar em nódulos mineralizados na região do ligamento periodontal. Entretanto, surpreendentemente, os pesquisadores não observaram a presença de nódulos naquela região: “Para nossa surpresa, não ocorria nenhuma alteração no tecido conjuntivo do ligamento periodontal. Porém, o cemento dental, que compõe o periodonto, apresentava uma espessura aumentada de dez a vinte vezes. Este foi um achado que jamais poderíamos imaginar”, afirma o docente.

Então veio a pergunta: esta alteração no cemento dental decorria da alteração no equilíbrio fosfato/pirofosfato ou estava relacionada à mutação do gene? O problema foi resolvido estudando em outros animais os efeitos de outra mutação genética (alterações no gene PC-1) capaz de produzir o mesmo desequilíbrio extracelular de fosfatos. Constataram então que o efeito era o mesmo, ou seja, o cemento dental apresentava-se igualmente aumentado sem que houvesse nenhum sinal perceptível de calcificação periodontal. Estava caracterizada a importância do equilíbrio fosfato/pirofosfato na formação das estruturas periodontais (Nociti et al., 2002).

Com o seu retorno ao Brasil, em 2004, o professor deu continuidade às pesquisas conjuntamente com o grupo de Martha Somerman, conseguindo financiamento junto ao Instituto Nacional Americano de Saúde, o National Institute of Health, com vistas ao aprofundamento dos efeitos do desequilíbrio entre fosfato e pirofosfato no comprometimento da formação do periodonto.

Em 2009, Luciane entrou no projeto para identificar as alterações genéticas no gene da TNAP em pacientes portadores de odontohipofosfatasia, estudar o efeito destas mutações na atividade da enzima e qual sua relação com as anormalidades dentais apresentadas por estes pacientes. Para isso contou com a colaboração de Mariana que, através o uso da modelagem 3D, ajudou a entender a consequência biológica de cada uma das mutações na atividade da enzima.

Sobre a importância da linha de pesquisa, Nociti considera que por meio do entendimento dos mecanismos envolvidos na formação do periodonto se pode vir a encontrar num futuro próximo terapias que possibilitem a regeneração periodontal de pacientes acometidos por doenças periodontais.