Edição nº 585

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 02 de dezembro de 2013 a 08 de dezembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 585

Tese aponta convergência entre literatura e ciências sociais na obra de Antonio Candido

Estudo desenvolvido no IFCH confronta as duas áreas, investigando as articulações e as afinidades entre elas no âmbito do pensamento e da trajetória do intelectual

As intersecções entre crítica literária e ciências sociais no conjunto da produção intelectual do sociólogo, literato e professor universitário Antonio Candido de Mello e Souza constituem o objeto da tese de doutorado defendida pelo cientista social e antropólogo Rodrigo Martins Ramassote no programa de pós-graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Na investigação orientada pela professora Heloisa André Pontes, o autor demonstra que a parte mais significativa dos estudos literários do eminente acadêmico deve ser lida a partir do fecundo amálgama dos papéis que ele soube encarnar de maneira engenhosa e indissolúvel: o do analista literário refinado e o do não menos sensível cientista social.

Segundo Rodrigo, a extensa e multifacetada obra de Antonio Candido ainda não havia sido submetida a uma investigação sistemática envolvendo a discussão que ele se propôs a avançar em seu trabalho – em que pese o considerável crescimento nos últimos anos da fortuna crítica voltada para o exame do legado intelectual daquele que é aclamado como um dos principais expoentes da crítica literária brasileira contemporânea.

Conforme observa, os poucos estudos que abordaram o assunto não deixaram de subscrever uma espécie de “grande divisor” que separa a produção intelectual do autor em duas áreas disciplinares radicalmente apartadas, com tão-somente algumas obras articulando de maneira mais estreita a intersecção enfocada em sua tese “A vida social das formas literárias: crítica literária e ciências sociais no pensamento de Antonio Candido”. O mérito do estudo está justamente no empenho de seu autor em confrontar as duas áreas, buscando entender as articulações, as afinidades e os pontos de convergência entre elas – enfoque considerado de suma importância para a compreensão do método crítico do intelectual.

“A recepção crítica de Antonio Candido, com raras exceções, acaba reproduzindo essa segmentação, decretando uma separação radical e intransponível entre os estudos sociológicos e literários no conjunto de sua obra: os sociólogos investigam a produção sociológica e os críticos literários a produção literária dele”, aponta Rodrigo. “Em vez de acatar a imagem de conjuntos isolados, o que eu procurei fazer foi mostrar as relações existentes entre esses dois campos de atuação, propondo uma leitura voltada para a sondagem de convergências e imbricações, uma vez que não me parece mais apropriado examinar as duas frentes separadamente, como áreas estanques, mas sim como atividades que se alimentam reciprocamente e se complementaram na trajetória do crítico e do sociólogo, evitando incorrer em uma dissecação que levaria a perder de vista a unidade central que as reúne e anima”, argumenta o pesquisador.

Não se trata, no entanto, de concebê-lo como um sociólogo travestido de crítico literário ou vice-versa, ressalva Rodrigo. Nesse caso, a análise reduziria a literatura à mera ilustração de teses sociológicas pré-existentes, caminho pelo qual o autor, como cientista social e antropólogo, poderia ter enveredado confortavelmente. Entretanto, desde a dissertação de mestrado, ele busca evidenciar na obra de Candido, especialmente a partir da análise dos ensaios Dialética da malandragem (1971) e De Cortiço a cortiço (1993) os princípios gerais das correlações posteriormente aprofundadas no doutorado, convencido que certas diretrizes analíticas e pressupostos interpretativos acionados pelo intelectual para refletir seja sobre nossa produção literária seja sobre nossa formação social dialogavam, em boa medida, entre si.

 

“Crítico sociológico”

Embora reconheça a extrema pertinência e relevância das contribuições de outros estudiosos da produção do ensaísta – distinguem-se nessa vertente os poucos porém significativos estudos de Roberto Schwarz, Marisa Peirano, Heloisa Pontes e Luiz Carlos Jackson –, Rodrigo observa que, em razão dos recortes cronológicos, propósitos analíticos ou preocupações de fundo, sua abordagem delas se distancia em alguns pontos.

“Apesar das indicações certeiras sobre as afinidades entre crítica literária e sociologia em parte da produção intelectual de Candido, nenhum dos estudos indicados preocupou-se em averiguar as implicações, efeitos e repercussões dessa estreita convivência no cerne de sua obra”, sublinha na tese.

Ainda de acordo com o autor, tais estudos passam ao largo, de um lado, das circunstâncias institucionais e intelectuais subjacentes à produção dos textos de Antonio Candido e, de outro, da natureza transdisciplinar que caracteriza sua obra – não obstante sejam constantes e quase sempre com intuito desqualificador as referências ao perfil sociológico de crítica adotado pelo acadêmico.

“De modo geral, a discussão fica restrita à mera enunciação do lugar comum ‘crítico sociológico’, sem que se aprofundem questões decisivas que merecem destaque. Quais as matrizes ou as formulações sociológicas subjacentes às análises literárias realizadas por Candido? Com quais vertentes das ciências sociais ele dialoga em seus ensaios?”, pondera Rodrigo.

Para ele, a originalidade do projeto intelectual de Antonio Candido se manifesta pelo cruzamento inovador e altamente criativo de influências intelectuais distintas, de elementos provindos de sua experiência social e familiar, de princípios e formulações derivados de suas atividades de docência e pesquisa e, por fim, de suas convicções e posturas políticas de esquerda.

A propósito: outro ponto importante que diferencia o trabalho de Rodrigo é a ênfase que ele confere aos compromissos e às inclinações político-ideológicas de Antonio Candido. Embora bastante comentada, não há, salvo engano, observa ele, nenhum estudo aprofundado sobre a repercussão das atividades e discussões políticas empreendidas pelo crítico no âmbito de sua produção intelectual.

Inicialmente conduzida em pequenos grupos clandestinos de oposição à ditadura de Vargas, durante os anos finais do Estado Novo, a militância passou, em seguida, ao interior dos quadros da Esquerda Democrática (ED) e, pouco depois, ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). A partir do começo da década de 1950, ele se afasta das reuniões e atividades da agremiação, sem contudo deixar de perpetrar atos de solidariedade pessoal e profissional e manifestar-se contra a opressão e arbitrariedade nos anos de chumbo do regime militar. Conforme salienta Rodrigo, essa trajetória militante de Candido, de modo explícito ou sublimado, encontra-se incrustrada em boa parte de seus escritos, definindo posturas, alianças e compromissos.

 

Sectarismo

A pesquisa foi conduzida por Rodrigo em duas frentes. Na primeira, sua atenção se voltou para o exame da crítica literária desenvolvida por Candido e dos seguintes livros dela derivados ou associados: a coletânea Brigada Ligeira (1945), a tese Introdução ao método crítico de Sílvio Romero – com a qual ele participou do concurso para provimento da Cadeira de Literatura Brasileira na FFCL-USP, em 1945 – e O Observador Literário (1959). Para chegar a eles, apoiou-se na aquisição, transcrição, leitura e análise de 157 rodapés literários assinados por Candido na grande imprensa paulista ao longo de boa parte da década de 1940 e em fins da década de 1950.

Como lembra Rodrigo, foi o prestígio amealhado pela participação na seção de crítica literária da revista Clima, quando ainda era estudante no curso de Ciências Sociais (1939-1941) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), que viabilizou seu ingresso nas redações. Entre janeiro de 1943 e janeiro de 1945 e setembro de 1945 e fevereiro de 1947, ele ficou responsável pela coluna “Notas de crítica literária” respectivamente nos jornais Folha da Manhã e Diário de S. Paulo. Após um longo período ausente das páginas da grande imprensa, tornou-se, entre outubro de 1956 e junho de 1960, colaborador frequente das páginas do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo.

“Por meio da leitura dos rodapés, pude aprofundar minha compreensão do método e atitudes críticas defendidas por Candido nos períodos indicados, identificar os seus principais interlocutores, alvos privilegiados e preferências literárias do autor nessa altura e qualificar de maneira mais concreta os contornos do sectarismo que lhe afetava os juízos avaliativos em início de carreira, aspecto várias vezes por ele reafirmado, mas pouco explorado”, detalha.

Redigidos no calor dos últimos anos do Estado Novo, numa linguagem muitas vezes inflamada e não poupando sequer figuras renomadas no cenário intelectual, os rodapés assinados por Antonio Candido, então com 26 anos e ativo militante político de oposição ao regime autoritário, revelam um método crítico caracterizado por uma análise literária politicamente orientada, na qual o juízo de valor de um autor se subordinava à sua contribuição ao esclarecimento das ideias de seu tempo, ressalta o estudo. O próprio literato, lembra Rodrigo, reconheceu em entrevistas essa postura mais sectária de um crítico que preconizava uma teoria pragmática, segundo a qual o artista e o escritor deviam produzir obras adequadas às causas sociais.

“Havia um interesse maior por esse tipo de contribuição do que propriamente uma discussão da qualidade técnica das obras que examinava”, observa o pesquisador. Candido, contudo, nunca foi dogmático na avaliação dos autores, demonstrando sensibilidade e rigor analítico na apreciação de novos escritores ainda desconhecidos, no contexto brasileiro, como nos casos do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto e da romancista Clarice Lispector.

Apesar de relacionados na obra Bibliografia de Antonio Candido, organizada pelo crítico literário Vinicius Dantas, os rodapés estavam praticamente inexplorados e não haviam merecido qualquer exame anterior, ainda que parte deles tenha sido republicada. A análise do rico material foi ao mesmo tempo desafiadora, devido ao caráter inédito desse trabalho; importante para descortinar um outro Candido, ainda bastante jovem e que não se furta a expor de forma contundente suas convicções socialistas; e reveladora de uma série de questões por ele ali tratadas e que se prolongaram pelo restante de sua obra, mas já num registro menos acentuado do viés político, comenta Rodrigo.

 

Influências rurais

Na segunda parte, Rodrigo retoma e aprofunda as considerações do ensaio A sociologia clandestina de Antonio Candido, elaborado em 2008 a partir de sua pesquisa de mestrado e dedicado ao exame dos referenciais sociológicos que, segundo ele, ancoram as reflexões do professor em dois de seus principais ensaios: Dialética da malandragem – em que apresenta uma leitura inovadora do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida – e De Cortiço a cortiço – estudo sobre O Cortiço, de Aluísio Azevedo.

A nova incursão a esses dois estudos literários é justificada pela sua insatisfação com a primeira investida e pelo desejo de ampliar o escopo da análise com a articulação de maior número de informações. Além disso, Rodrigo chegara à conclusão que os ensaios mencionados evidenciavam de forma muito clara a estreita relação entre estudos literários e ciências sociais no conjunto da obra de Candido.

“Talvez a segunda parte da tese seja a que melhor responda à proposta de pensar esses dois campos de atuação de Antonio Candido e as confluências entre eles”, afirma.

O ponto de partida, dessa feita, conta o antropólogo, é o exame atento de parte substantiva da produção sociológica do autor – sobretudo aquela dedicada ao mundo rural paulista ou a ela associada – registrada nos ensaios The Brazilian Family (1951) e A vida familiar do caipira (1954), bem como na tese Os parceiros do Rio Bonito (1964).

Nessa análise, Rodrigo buscou extrair as linhas de força (padrões explicativos, eixos temáticos, repertório de questões) que costuram os escritos sociológicos mencionados, cotejando-os com informações relacionadas à experiência familiar e pessoal do ensaísta em Cássia (MG), à interlocução com clássicos do pensamento social brasileiro e aos cursos oferecidos por ele à frente da Cadeira de Sociologia II. Também averiguou as convergências e ressonâncias entre e a abordagem empregada por Candido na leitura das relações humanas dos universos ficcionais de Memórias de um sargento de milícias (1855) e de O Cortiço (1890).

Descendente de fazendeiros do sudoeste de Minas Gerais, Candido, descreve Rodrigo, não seguiu o destino traçado por boa parte de seus parentes, muitos dos quais enveredaram pela medicina, advocacia e política, sem dúvida por influência do ambiente familiar no qual cresceu, onde recebeu um intenso estímulo para a leitura e o estudo.

De acordo com o relato da tese, a trajetória dos bisavôs paternos de Candido, negociantes e fornecedores de gado para os mercados consumidores regionais e interprovinciais, se confunde com a evolução social e prosperidade dos municípios de Passos e Cássia. À semelhança das principais famílias tradicionais da região, sua fortuna e projeção foram amealhadas pela conjugação estreita de atividades agropastoris, comerciais e ocupação de cargos públicos. Embora a incidência de casamentos endogâmicos ou alianças com outras famílias de posses tenham garantido a manutenção do patrimônio material conquistado, o fracionamento das terras entre a extensa prole de herdeiros e a concorrência mercantil com regiões adjacentes foram responsáveis pela dilapidação do patrimônio financeiro e, também, pela reconversão de parte de seus membros às carreiras liberais, em especial a advocacia e a medicina.

“Com base no material apurado em Cássia e em publicações dispersas e de difícil acesso, foi possível espreitar o significado profundo das práticas, das relações e dos valores do universo rural nos interesses temáticos e na maneira como Candido os abordou em seus trabalhos sociológicos”, explica Rodrigo. A importância desse resgate histórico da infância do crítico no sudeste de Minas Gerais está no fato de, segundo ele afiança, nunca esse passado em Cássia ter sido explorado por parte daqueles que até então se debruçaram sobre a obra de Candido.

Em que pese a influência dessa dimensão familiar rural, não se pode deixar de considerar, pondera o pesquisador, que as teses sociológicas defendidas por Candido foram refratadas pela leitura dos principais estudos dos chamados intérpretes sociais do país que surgiram nas décadas de 1920 e 1930. Prova disso são as ementas do curso “Organização Social” oferecido por Candido aos alunos de Ciências Sociais da FFCL-USP entre os anos de 1952 a 1958: o conteúdo das discussões girou em torno dos fundamentos da organização social do país, apoiando-se na leitura dos principais clássicos do pensamento social brasileiro.

Mas por que razão intérpretes anteriores da produção de Candido dispensaram tão escassa atenção à avaliação das confluências examinadas em “A vida social das formas literárias: crítica literária e ciências sociais no pensamento de Antonio Candido”? De acordo com Rodrigo, é possível especular que declarações do próprio Antonio Candido, minimizando a importância da coexistência dessas áreas disciplinares no conjunto de sua produção intelectual, respondam em boa parte por essa lacuna na análise dos ensaios e estudos literários produzidos pelo consagrado autor de Formação da literatura brasileira: momentos decisivos.

Não obstante ao seu engajamento profissional e intelectual como primeiro professor-assistente junto à Cadeira de Sociologia II do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP, participando de eventos e congressos científicos, publicando artigos e balanços bibliográficos e lecionando disciplinas na graduação, transparece, da parte de Candido, um forte empenho em reduzir, na maior parte das vezes, a pertinência e o alcance das quase duas décadas de sua condição de sociólogo.

Para que se possam apreciar os termos em que o acadêmico coloca essa questão, basta a seguinte afirmação do próprio Candido, transcrita na tese:

Aliás, eu não me considero sociólogo. Assim como o professor de matemática não é necessariamente matemático, fui professor de sociologia, dei conta do recado, mas nunca me considerei sociólogo.

Na opinião de Rodrigo, no entanto, se, de fato, não houvesse afinidades eletivas e pontos de contato entre a sociologia e a crítica literária por Candido, seria o caso de congratulá-lo pela flexibilidade de espírito e pela personalidade múltipla fora do comum, posto ter ele suportado conviver, durante quase 20 anos, com duas atividades cognitivas e intelectivas completamente desligadas e distantes, sem que isso lhe tenha custado qualquer transtorno dissociativo.

“Na verdade, para usar uma imagem gasta porém expressiva, são o verso e reverso de uma mesma moeda, que se nutriram mutuamente e – estou cada vez mais convicto – responderam pelo próprio dinamismo de sua produção intelectual.”

 

Crítico fundou e dirigiu o IEL

Foi Antonio Candido quem sugeriu ao então reitor e fundador da Unicamp, Zeferino Vaz, a criação de um instituto que se diferenciasse das demais faculdades de letras do país. Nasceu desse modo, em 1977, o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), do qual Candido foi fundador, primeiro diretor e professor durante dois anos e meio.

O Instituto traduzia o propósito de abarcar na pesquisa e no ensino o mais amplo leque possível de disciplinas que têm a língua natural como objeto de estudo, promovendo a reflexão crítica sobre todas as manifestações das linguagens. A escolha do nome da instituição proporcionava, nas palavras do ensaísta, “um toque humanístico, mais flexível, e permitia afastar as concepções eventualmente um pouco pedantes do estudo das humanidades”.

Sobre esse comentário, é necessário lembrar que, na Unicamp, os estudos linguísticos se constituíram por meio do Departamento de Linguística, criado no âmbito do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em 1968, do qual se desmembrou posteriormente.

“Um grupo de linguística já havia sido formado pelo professor Fausto Castilho. Formei o grupo de teoria literária com especialistas que já haviam sido meus alunos. Eu quis apenas mestres e doutores que fossem especializados em teoria literária, de maneira que eu estava trabalhando em casa”, lembrou Candido em entrevista ao Jornal da Unicamp quando da comemoração dos 30 anos de existência da unidade.

Doutor honoris causa da Unicamp, Candido, em 1961, vivenciara experiência semelhante ao assumir a direção do curso de Teoria Literária e Literatura Comparada (TLLC), criado por iniciativa de um grupo de professores da FFCL-USP para abrigá-lo em sua nova área de atuação profissional, conseguindo promover a montagem e manutenção de uma infraestrutura acadêmica muito bem-sucedida.

 

Publicação

Tese: “A vida social das formas literárias: crítica literária e ciências sociais no pensamento de Antonio Candido”
Autor: Rodrigo Martins Ramassote
Orientadora: Heloisa André Pontes
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)