Edição nº 549

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 10 de dezembro de 2012 a 16 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 549

Mercado ocupa lugar do público

Estudo relaciona urbanização
à expulsão de crianças e jovens da região central

 

Campinas tem passado, sobretudo a partir da última década, por processo acentuado de urbanização “corporativa”, que valoriza e desvaloriza o espaço urbano conforme os interesses de grandes empresas e corporações. E, como consequência deste processo, as populações pobres são retiradas, expulsas e contidas nas regiões mais distantes do centro da cidade. É o caso das crianças e adolescentes de rua do munícipio, como demonstra pesquisa da Unicamp desenvolvida pela assistente social Ana Tereza Coutinho Penteado.

“Há um choque entre as políticas sociais e urbanas em Campinas. Num dado momento, a política social constrói algo, mas a política urbana inviabiliza o que foi feito. Este ano o município aprovou lei que proíbe pessoas pedindo nos semáforos porque eles não podem ‘obstruir o trânsito’. É o caso também da operação urbana Tolerância Zero, instaurada em 2009. São exemplos de políticas higienistas retrógadas e autoritárias, amplamente impostas no começo do século 20, que são atualizadas não só no município, mas em outras cidades do país”, afirma a pesquisadora.

Essas políticas urbanas autoritárias podem se agravar, em âmbito nacional, com a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, teme a assistente social. “É uma preocupação porque estes eventos provocam valorização e disputa pelo território urbano. Na visão de muitos governantes e planejadores, estas cidades precisam estar ‘limpas’, pois vão atrair turistas. Isso alimenta a expulsão de pessoas pobres. Em São Paulo, por exemplo, elas são retiradas de uma rua, mas, em pouco tempo, se instalam em outras próximas. Portanto, isso não resolve o problema. A verdadeira gênese da pobreza não tem sido pensada”, expõe.

Ana Tereza Coutinho Penteado desenvolveu o estudo para obtenção de seu título de mestrado junto ao programa de pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. A professora Adriana Maria Bernardes da Silva, do Departamento de Geografia do IG, orientou o trabalho. A pesquisa obteve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Para a geógrafa e docente da Unicamp, na maioria das metrópoles brasileiras o espaço urbano é tratado como um grande negócio. “A cidade, tanto do ponto de vista fundiário, quanto imobiliário, passa por um violento processo especulativo. E isso atinge, principalmente, aqueles municípios que agora são sedes para os megaeventos. Ou que, não necessariamente vão abrigar os eventos, como Campinas, mas estão neste entorno valorizado, nesta região da macrometrópole de São Paulo”, reforça a especialista, que coordena na Unicamp linhas de pesquisas sobre a política urbana no eixo entre Campinas e São Paulo.

Ela sustenta que a política social realizada nos últimos anos no município foi desmantelada pelo poder público. Isso aconteceu, principalmente, a partir da implementação do programa Tolerância Zero, com a proposta de reduzir a criminalidade e a mendicância. A ação foi extinta no ano passado diante de denúncias de irregularidades e das mudanças políticas na cidade, com a cassação do prefeito Hélio de Oliveira Santos.

”Campinas, por alguns anos, buscou criar algo de interessante em termos de assistência social. Mas o Tolerância Zero desmantelou o que vinha sendo construído e levou a uma intervenção brutal no centro da cidade, usando, inclusive, o termo de uma política que é da cidade de Nova York. Na construção da política urbana brasileira prevalece, em geral, o mimetismo, copiando o que é feito lá fora e desconsiderando a especificidade dos problemas nacionais”, analisa.

“Antipedintes”

O desmantelamento das ações de assistência social ficou ainda mais visível a partir da revitalização em 2006 do viaduto São Paulo, conhecido como “Laurão”. Com a reforma houve a mudança, daquele local, da Casa Guadalupana, projeto social de suporte às crianças de rua, revela a assistente social Ana Tereza. “Para impedir a presença de moradores e crianças no viaduto Laurão havia seguranças fazendo rondas e os expulsando. Também foram colocadas pedras pontiagudas que demarcaram que aquele não é mais um espaço de convivência para eles”, lembra.

A partir de 2010 já era difícil, de acordo com ela, encontrar crianças e adolescentes de rua nas regiões centrais, reflexo do aumento da repressão. “Um dos dados que temos é que hoje estes meninos e meninas, em sua maioria, estão em instituições, como a Fundação Casa. Ou então, mudaram a forma de circular, se escondendo e se distanciando das políticas sociais e do acesso a direitos”, revela.

Viração

A estudiosa Ana Tereza resgata o conceito de “viração”, formulado pela cientista social da Unicamp Maria Filomena Gregori, para sustentar que era na região central que as crianças e adolescentes de rua possuíam mais serviços. “Era lá que eles estabeleciam a maior parte das redes de solidariedade e se ‘viravam’ de algum modo”, observa.

A pesquisadora pondera, no entanto, que o termo não está restrito somente às relações entre centro e periferia. “O conceito de ‘viração’ é mais abrangente e refere-se à circulação entre a casa, a rua, as instituições sociais, os diferentes espaços da cidade e os papéis sociais incorporados pelos meninos e meninas para se protegerem e sobreviverem”, esclarece.

A partir de 2001, de acordo com ela, Campinas estabeleceu uma série de políticas e ações sociais para as crianças e adolescentes de rua, sobretudo na região central. Ela cita a criação, em 2001, embaixo do viaduto “Laurão”, da Casa Guadalupana, numa parceria entre a instituição Padre Haroldo e a Prefeitura.

Houve também, conforme a assistente social, a implementação, em 2003, da Sala de Transição, projeto de vivência e reaproximação escolar para crianças e adolescentes em situação de rua. No ano seguinte, foi criado o serviço Pernoite Protegido, programa que oferece acolhimento, banho, alimentação, atividades pedagógicas, pernoite e encaminhamentos às redes socioassistenciais.

Neste ponto, a geógrafa Adriana Bernardes da Silva explica que o centro da cidade, da forma mais contraditória possível, ainda é o melhor lugar para estas crianças. “Eles estão vivendo na rua, portanto é uma condição de penúria, de limite para a sobrevivência, mas de algum modo estar ali ainda é melhor. Por quê? Porque no centro há uma organização da cidade com a presença de uma rede hospitalar, uma rede social e uma série de outros elementos públicos que eles se valem para sobreviver, construído a sua ‘viração’ e redes de solidariedades”, fundamenta.

Pacto federativo

Levantamento de dados para o estudo demonstrou significativa ampliação de leis, normas e serviços federais para garantir ações contínuas e políticas permanentes à população de rua. O problema, aponta a assistente social Ana Tereza, é que essas políticas federais sofrem adaptações e deformações quando são territorializadas nos municípios. E Campinas não é exceção, critica.

“Existem normas federais, mas em cada município elas são implementadas de uma maneira diferente, dependendo do choque de interesses políticos e econômicos da cidade. E corre-se o risco de uma política pública, como a da assistência social, acabar sendo implementada de uma forma assistencialista, repressiva ou mesmo descontinuada. Em Campinas, por exemplo, as ações das políticas sociais foram modificadas inúmeras vezes nos últimos 10 anos, provocando desassistência na vida dos meninos. É um cuidado que precisa ser tomado”, alerta.

A docente Adriana Bernardes da Silva aponta como origem deste problema a fragilidade do pacto entre municípios e federação. A solução passa por um entendimento para a conquista da cidadania territorial, indica. “A cidade precisa ser reorganizada, precisa haver uma política urbana séria que considere o interesse social. E os entes municipais estão, em geral, na contramão dessa política federal que há de se reconhecer: é importante”, admite. 

Milton Santos

“Cada homem vale pelo lugar onde ele está”. O geógrafo Milton Santos (1923-2001) foi a inspiração para o estudo de Ana Tereza. Ela explica que o interesse pela pesquisa surgiu a partir da leitura da obra “O espaço do cidadão” e do impacto da frase contida no livro em um momento de intensa reflexão sobre a sua prática profissional.

Na época, a pesquisadora trabalhava em uma entidade de acolhimento para crianças de rua, sob a gestão da Secretaria de Saúde e Assistência Social de Campinas. “A frase é importante, pois auxilia na compreensão deste movimento da cidade e da forma de tratamento dispensada a esta população”, pontua.

O primeiro passo após a leitura do livro foi procurar a docente Adriana Bernardes da Silva, que trabalhou durante 10 anos ao lado de Milton Santos, tendo sido, inclusive, orientada por ele em sua pesquisa de doutorado. “Ele desenvolveu o conceito de localização forçada; é uma definição que nos ajuda a compreender como as pessoas são forçadas a fixar, permanecer ou circular dependendo dos interesses econômicos que prevalecem na cidade”, complementa a professora, seguida por sua orientanda: “Com este trabalho, gostaria de sublinhar que a cidade deve ser pensada para todos os seus habitantes”.

 

Publicação

Dissertação: “Urbanização e usos do território: as crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Campinas, SP”
Autora: Ana Tereza Coutinho Penteado
Orientadora: Adriana Maria Bernardes da Silva
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
Financiamento: Capes