Edição nº 531

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 25 de junho de 2012 a 01 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 531

Na comissão de frente


 

A canção de Martinho da Vila “Pra tudo se acabar na quarta-feira” estampa uma das páginas iniciais e dá nome à tese. Ela fala da experiência daqueles que vivem de verdade o cotidiano de uma escola de samba que trabalha o ano todo na preparação de um desfile. Não são muitos. A maioria está de passagem. Faz menção àqueles que conhecem os ritos, a tradição oral, a memória e o respeito à velha-guarda. Yaskara Manzini é uma dessas pessoas. Meio por acaso, é verdade. Em 2000 ela aceitou ser coreógrafa da comissão de frente da Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba paulistana.  Atuou em onze carnavais na mesma escola e decidiu que a experiência poderia ser trazida para a academia em sua tese de doutorado. Assim, conversas informais que Yaskara teve na quadra da escola foram incorporadas ao texto, no formato de uma longa crônica. A pesquisadora se transforma em protagonista. Teóricos e outros pensadores com os quais ela trabalha são destaques, passistas, mestres-salas e porta-bandeiras. Capítulos são alas e a tese propriamente dita não é tese, mas um “desfile-tese”.

Do carro abre-alas (capítulo 1) à alegoria final, Yaskara, hoje coreógrafa da escola X-9 Paulistana, assume o discurso na primeira pessoa e desenvolve seu enredo: “Aproximações, diálogos e estranhamentos entre carnaval e teatro nas performances da comissão de frente”. A tese carnavalesca, orientada pelo docente Cassiano Sydow Quilici, do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes (IA), se desenvolve sobre dois eixos: o primeiro diz respeito às diferenças entre a produção de um espetáculo de artes cênicas e de um espetáculo na Passarela do Samba.

O segundo gira em torno do quanto a experiência modificou a autora/coreógrafa e as contribuições que Yaskara deu à Camisa Verde e Branco. “Houve primeiro um estranhamento, que durou cerca de quatro anos, e que se dava porque, normalmente, em artes cênicas, a atuação ou a dança tem um privilégio hierárquico em relação aos outros elementos da cena. Na escola não é assim. A fantasia e a organização espacial dos integrantes, muitas vezes, têm prioridade”.

Quando, a partir de 2004, definitivamente Yaskara vestiu a fantasia e caiu no samba, começou a desenhar as semelhanças entre as duas artes: carnaval e teatro. A palavra “evolução” soava “encenação”, “enredo” passou a ser “dramaturgia”. Yaskara ficou conhecida no meio como a coreógrafa que teatralizou o carnaval da Camisa Verde e Branco. Diante de si, em pleno desfile, enxergava centenas de atores em uma apresentação para 35 mil pessoas. “Na avenida, os componentes da comissão de frente têm muita força cênica, e eu me perguntava de onde vinha essa energia. Percebi que a quadra era uma das fontes e passei a frequentá-la cotidianamente, participando de todos os ritos. Ali há a construção de certa ‘persona’, no sentido primordial de máscara do ator: há o jogo entre o que a pessoa é e o que a ‘comunidade’ espera que ela seja, que influencia no que vemos na avenida, independentemente de coreografias”.

Exemplo, de acordo com Yaskara, é a “corte ao pavilhão” ou a reverência à bandeira da escola, que sempre deve ser feita à maneira dos antigos. Quem está no dia a dia da escola se relaciona com os outros integrantes como uma grande família. “Temos os personagens, baianas, crianças, compositores, passistas, é um carnaval que ocorre ao longo do ano e que não se vê na TV. Aprendemos sobre os outros carnavais com os mais antigos, pela tradição oral. O jogo entre presente e passado é muito forte e se estabelece por meio da oralidade. A quadra, ou ‘terreiro’ é o lugar do estar junto, do aprendizado intergeracional”. A escola é também o lugar onde começa a se desenvolver a narrativa do desfile carnavalesco, transportada para a tese.

Dois momentos

Uma surpresa é quando começa o desfile e a comissão de frente aparece na avenida. Dos momentos célebres da grande festa popular brasileira, muitos provêm dali. E houve transformações ao longo dos onze carnavais de Yaskara. Primeiro, o luxo estava nas fantasias exuberantes, e até muito grandes ou estranhas como frisa a pesquisadora. “As roupas duplicavam as costas, perdia-se mobilidade e era preciso pensar em como criar sentido para a apresentação com esse corpo que não era humano.” A partir de 2004, Yaskara observou que as fantasias começaram a diminuir. O destaque passou a ser o corpo e, com ele, o movimento. As danças se tornaram mais elaboradas com maior espaço também para o que mais interessava a coreógrafa: a teatralização. Foi possível arriscar.

Em 2006, influenciada pela arte da performance, a pesquisadora criou para a comissão de frente uma coreografia que falava de faunos e ninfas. Na tese, ela observa: “Dos trabalhos que encenei para a Camisa Verde, tenho especial carinho por este, foi a primeira vez que senti-me criadora no samba, experimentei  e ousei formas diferentes de trabalhar, de preparar o corpo dos performers e de organizar a cena” (...) “Ao escrever estas páginas vêm-me  flashes  do desfile: pessoas gritando, pedindo que eu jogasse uvas para elas, línguas de fora se insinuando, pessoas gritando coisas  licenciosas, noite e dia instalando a temporalidade na cena (começamos o desfile de noite e terminamos com dia claro), o espaço que eu praticamente saltava para fugir, o medo que sentia dos faunos quando aproximavam-se de mim (os rapazes pareciam ter crescido e havia nos olhares algo de não humano). Se eu procurava a comunhão com o público, penso havê-la encontrado”.

O trabalho teve destaque na transmissão dos desfiles pela TV, inclusive com comentários dos apresentadores. Mas, o resultado foi inesperado: a comissão de frente não manteve a nota 10 dos anos anteriores. Foi um ano em que a Camisa foi rebaixada para o grupo de acesso. E prossegue a crônica de Yaskara: “Instalou-se um drama na escola, a quadra foi depredada e a comunidade exigiu que a diretoria se afastasse”. No ano seguinte a coreógrafa narra que tentou ‘ousar’ menos, no paradoxo intuito de tentar levar a escola de volta ao grupo especial.

2008 foi o ano da redenção, pelo menos para a comissão de frente coreografada por Yaskara. De volta à performance, mas desta vez levando para a avenida o homem pré-histórico, com base no texto “Em busca de uma poética da performance”, de Richard Schechner. Os 14 componentes da comissão de frente, “homens da comunidade, que dificilmente frequentam o circuito teatral da cidade, que não fazem atividade física durante o ano, salvo o jogo de futebol dominical, que trabalham durante o dia e estudam à noite” deveriam se dividir e metade vestir-se de mulher.  A coreógrafa conseguiu convencê-los e, por fim, a nota foi 10.

“Carnavalizamos Schechner, recriamos jocosamente sua teoria sobre as primeiras manifestações performáticas, encontros ancestrais entre hordas pré-históricas, nossa comissão de frente e o público, para mostrarem-se e trocar danças, música e histórias”, afirma Yaskara no texto submetido à banca examinadora.

Yaskara recebeu prêmios. Por três anos seguidos: 2009, 2010 e 2011, o “Prêmio Melhor do Acesso - Gilberto Farias” como melhor comissão de frente. O prêmio é um reconhecimento ao trabalho das escolas do grupo de acesso.

O público

A comissão de frente é o cartão de visita da escola de samba e deve apresentar a escola e saudar o público. Sua função é gentil, diplomática, nas palavras de Yaskara. “A crítica que eu faço em relação ao carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo é quando você tem um espetáculo maravilhoso, mas a comissão não exerce seu fundamento. O público fica em um lugar passivo. Aprendi ao longo dos anos a trazer para a partitura da dança movimentos do cotidiano. Quando a comissão de frente entra na avenida, contagia o público, você vê a arquibancada repetir os seus movimentos, restaurando a função primordial do carnaval que é dançar junto”.

Ao mesmo tempo, ressalta que a comissão de frente tem uma função bélica, de estar “indo para uma guerra”. A ala que abre o desfile dialoga até com o último carro da escola. “Se entra mal, descompassada, fora de ritmo, isso vai reverberar em toda a apresentação”. Normalmente, a pesquisadora e coreógrafa atua, durante o desfile, como uma espécie de mestre de cerimônias da comissão de frente. Ela também saúda a corte do carnaval que vem ao encontro das escolas durante a passagem pela avenida. Yaskara acrescenta que o carnaval paulistano, até mesmo pela falta de dinheiro, ainda é feito de modo artesanal, diferentemente da maioria das escolas cariocas.

A noção de conhecimento ligado à experiência perpassa todo o trabalho desenvolvido pela coreógrafa em seu doutorado. Inicia-se no debate sobre a preparação do bailarino “para um lugar que não é só físico, técnico, mas da vivência cotidiana na quadra que é transformadora” e vai até as homenagens que a pesquisadora presta à velha-guarda e ao samba paulistano. A própria Yaskara, depois de uma década de muitas experiências percebeu que o vivido não pode ser guardado, mas passado adiante. “Nos  tornamos veículos da história e da memória”.

 

Publicação

Tese: “Pra tudo se acabar na quarta-feira: aproximações, diálogos e estranhamentos entre carnaval e teatro nas performances da comissão de frente”
Autora: Yaskara Donizeti Manzini
Orientação: Cassiano Sydow Quilici
Unidade: Instituto de Artes (IA)