Edição nº 527

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de maio de 2012 a 27 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 527

Potável, porém contaminada

Pesquisa acusa presença de contaminantes emergentes na água fornecida em 16 capitais brasileiras

 

A água potável fornecida em 16 capitais brasileiras, onde vivem aproximadamente 40 milhões de pessoas, apresenta contaminação por substâncias ainda não legisladas, mas que podem ser potencialmente nocivas à saúde humana. A constatação é de uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA), que está sediado no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, em colaboração com outras instituições. Os pesquisadores identificaram, por exemplo, a presença de cafeína em todas as 49 amostras coletadas no cavalete (cano de entrada) de residências espalhadas pelas cinco regiões do país. “Esse dado é relevante, pois a cafeína funciona como uma espécie de traçador da eficiência das estações de tratamento de água. Ou seja, onde a cafeína está presente, há grande probabilidade da presença de outros contaminantes”, explica o professor Wilson de Figueiredo Jardim, coordenador do estudo e do Laboratório de Química Ambiental (LQA) do IQ.

Além de cafeína, os cientistas também encontraram nas amostras analisadas concentrações variadas de atrazina (herbicida), fenolftaleína (laxante) e triclosan (substância presente em produtos de higiene pessoal). No caso da cafeína, as duas capitais que apresentaram maiores níveis de contaminação pela substância foram, respectivamente, Porto Alegre e São Paulo. “A liderança de Porto Alegre nesse ranking foi uma surpresa. Há uma hipótese para explicar a situação, mas ela evidentemente depende de confirmação. Segundo essa conjectura, a contaminação estaria ocorrendo porque os gaúchos são grandes consumidores de erva mate, que, por sua vez, tem grande concentração de cafeína. Independentemente da origem, a presença da cafeína na água fornecida aos porto-alegrenses e aos demais moradores das capitais consideradas no estudo demonstra que os mananciais estão contaminados por esgoto e que as estações de tratamento não estão dando conta de remover este e outros compostos do produto que chega às torneiras das residências. Ou seja, é a prova inequívoca de que estamos praticando o reúso de água há muito tempo”, explica o docente da Unicamp.

De acordo com Wilson Jardim, por não serem legislados, esses contaminantes emergentes – são emergentes não porque são novos, mas porque estão cada vez mais presentes no ambiente – não são monitorados com frequência. Ademais, a ciência ainda não sabe ao certo qual o limite de proteção ao ser humano e nem que efeitos deletérios eles podem causar ao organismo do homem. “Entretanto, já dispomos de estudos científicos que apontam que esses compostos têm causado sérios danos aos organismos aquáticos. Está comprovado, por exemplo, que eles podem provocar a feminização de peixes, alteração de desenvolvimento de moluscos e anfíbios e decréscimo de fertilidade de aves”, elenca o professor da Unicamp.

Quanto aos humanos, prossegue Wilson Jardim, há indícios de que os contaminantes não legislados, especialmente hormônios naturais e sintéticos, como o estrógeno, podem provocar mudanças no sistema endócrino de homens e mulheres. Uma hipótese, que carece de maiores estudos, considera que esse tipo de contaminação poderia estar contribuindo para que a menarca (primeira menstruação) ocorra cada vez mais cedo entre as meninas. “Estabelecer esse nexo causal é difícil. Entretanto, temos que estar atentos para problemas dessa ordem. Acredito que, com o tempo, os contaminantes emergentes também terão que ser legislados. O trabalho que estamos realizando tem por objetivo exatamente fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas que possam assegurar à população o fornecimento de uma água potável de maior qualidade”, diz.


Na opinião do especialista, o melhor caminho a seguir, num primeiro momento, é dar continuidade às pesquisas com vistas ao estabelecimento de normas que concorram para preservar o ambiente. “Esse tema será discutido em congresso científico que será realizado brevemente. A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental [ABES] tem refletido sobre essa questão e deverá formular uma proposta de limiares de proteção da vida aquática. O passo seguinte, acredito, deverá estender esses parâmetros em relação ao ser humano”, prevê o docente.
Conforme Wilson Jardim, o trabalho de análise da água potável fornecida nas 16 capitais contou com a participação de 25 pesquisadores das seguintes instituições, além da Unicamp: Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e Universidade Federal do Paraná (UFPR).

CAPITAIS PESQUISADASDepois de coletarem as amostras de água nos cavaletes das residências, seguindo procedimentos previamente estabelecidos, os pesquisadores as enviaram à Unicamp, onde as análises químicas foram realizadas. Os métodos analíticos empregados atualmente, destaca Wilson Jardim, são bastante precisos. Tanto é assim que determinados contaminantes foram identificados em concentrações equivalentes a nanogramas por litro. Um dado interessante proporcionado pelo estudo, segundo o professor da Unicamp, é que as capitais costeiras, como Florianópolis, Vitória e Rio de Janeiro, apresentaram níveis de contaminação inferiores às demais. A explicação para isso, cogita o especialista, é o fato de esses municípios lançarem parte do esgoto diretamente no mar. “Desse modo, os rios de onde a água é captada para posterior fornecimento à população apresentam concentrações inferiores de poluentes”, argumenta.

No caso do Brasil, insiste o docente, a alternativa de curto prazo para enfrentar esse tipo de problemática é estabelecer novos valores de referência para a potabilidade da água. Wilson Jardim lembra que já existem tecnologias disponíveis capazes de remover os contaminantes não legislados. A própria lei brasileira, segundo ele, estabelece que as concessionárias de água devem adotar métodos de polimento mais sofisticados contra substâncias potencialmente nocivas, mesmo que elas não estejam legisladas. “É claro que um investimento desse tipo pode encarecer o custo de produção da água potável. Entretanto, temos que considerar que determinados compostos acarretam custos sociais ainda maiores, visto que podem trazer sérias sequelas não apenas ao ser humano exposto, com também aos seus descendentes”, pondera.

Wilson Jardim assinala que, se olharmos o cenário mundial, perceberemos que até mesmo os países que tratam 100% do seu esgoto enfrentam problemas de contaminação da água potável. Isso decorre de uma série de fatores, entre os quais o crescimento e adensamento populacional e a chegada ao mercado de novas substâncias. “Estudos indicam que 1.500 substâncias são lançadas anualmente no mundo. São moléculas novas, às quais não estamos tendo tempo de estudar. Além disso, o padrão de consumo da sociedade tem crescido freneticamente. Antes, uma pessoa usava, em média, três produtos de higiene pessoal antes de sair de casa. Hoje, usa dez. Há alguns anos, as pessoas passavam filtro solar apenas para ir à praia e à piscina. Agora, muita gente passa diariamente para ir trabalhar, inclusive por recomendação médica”, exemplifica.

Continuidade

De acordo com Wilson Jardim, as pesquisas em torno da qualidade da água potável das capitais brasileiras terá continuidade. O INCTAA vai se dedicar ao tema por mais dois anos. Nesse período, os pesquisadores trabalharão em duas frentes. Primeiramente, as análises realizadas nas 16 primeiras cidades serão repetidas, para verificar se houve alguma alteração. Em seguida, o trabalho será estendido para as demais capitais. “Queremos traçar um panorama geral do país por intermédio desses municípios. Penso que temos prazo suficiente para concluir essa tarefa”, calcula o docente da Unicamp. Ele informa que os estudos realizados pelo Laboratório de Química Ambiental (LQA) em conjunto com o INCTAA já têm contribuído para que as concessionárias considerem promover melhorias em seus sistemas de tratamento de água.

Em Campinas, por exemplo, a Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A (Sanasa) demonstrou interesse em adotar novas tecnologias que possam reduzir a presença de contaminantes não legislados na água fornecida aos campineiros. Além da Sanasa, outras concessionárias do Estado de São Paulo também estão iniciando conversações com Wilson Jardim com o mesmo propósito.

Comentários

Comentário: 

Atualmente existem cerca de 65 milhões de produtos químicos registrados na ACS-com CAS number. Nós analisamos 89 e dizemos que a água é potável, legalmente pode ser, no entanto quimicamente....
Por outro lado nossas estações de esgoto, quando existem,já que o último censo do IBGE, dava como tratados uns 30%,são de baixa eficiência, com o modismo de reatores anaeróbios, que transforma os efluentes líquidos em resíduos sólidos e emissões atmosféricas, que depois voltam para nossos rios.
Se tivermos um bom tratamento de efluentes com certeza, não vamos achar tanta "coisa".

joseantonio@mcleodferreira.com.br

Comentário: 

Isso é um assunto muito sério que deve ser tratado como tal, pois está em jogo não só a saude do ser humano como dos demais animais da natureza. Precisamos ficar de olho nos trabalhos que serão feitos daqui em diante em prol desta causa.

fermarialucia@gmail.com

Comentário: 

Com o aumento da variedade de substancias sintetizadas sendo que muitas destas são hidrossolúveis e estáveis, potencializa os risco de contaminação. Os métodos de tratamento de esgoto são precários ou inexistentes o que acaba aumentando a contaminação dos leitos aquosos.
Os sistemas de tratamento para potabilidade da água não foram planejado para atender uma grande variedade de contaminantes cada vez mais presentes.
Para se ter uma água de melhor qualidade se deve avançar primeiramente na implantação de sistema de tratamento de esgoto, assim como na sua eficiência, pois assim diminui a contaminação tornando a potabilidade mais acessível. O homem e o meio ambiente se beneficiaram com essas medidas. Tecnologias para isto já estão disponível embora elevaria muito os custos, assim uma alternativa é a inovação na busca de novas soluções de forma sustentável.

soares7@yahoo.com

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Muito bacana a matéria. Há algum tempo penso sobre o efeito disso na água. Tomara que as autoridades tomem providências.
Gente, só uma correção, a capital não é Distrito Federal, mas Brasília.

Comentário: 

Prezados,

Sou Engenheiro Químico da CEDAE e ressalto uma inconsistência gritante. A conclusão sobre os valores reduzidos de cafeína no Rio de Janeiro a partir da hipótese de que parte do esgoto da cidade ser jogada no mar não faz sentido. Cerca de 85 % da água distribuída na região metropolitana do Rio de Janeiro tem origem no Rio Paraíba do Sul, de modo que o esgoto produzido pelos cariocas não é lançado, de maneira alguma, no mesmo manancial de onde é retirado o suprimento de água. As contribuições poluentes para os mananciais do Sistema Guandu são oriundos, principalmente, da região do Vale do Paraíba, do Sul Fluminense e de parte da Baixada Fluminense. Assim, não cabe estender a conclusão para a região metropolitana do Rio.

joaoangelosouza@gmail.com

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O teor de atrazina permitido pela Portaria MS nº 2914/2011 é de 2 ug/L. Então a atrazina é sim "legislada".

ronilson.paz@gmail.com

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Além da menarca precoce, a crescente obesidade, observável até no Japão, poderia ser colocada como um nexo causal... Afinal, a administração de hormônios em aves e mamíferos causa comprovadamente o acréscimo de massa corporal.

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em Cuiabá/MT a captação é feita rio acima....existem algumas comunidades...mas gostaria de saber o nível de contaminação....abç...raphael curvo

Comentário: 

Eu e minha esposa, tempos atrás, suspeitamos de uma puberdade precoce em nossa filha mais velha, o que foi confirmado pelos exames endocrinológicos. Perguntando à médica endocrinologista que está fazendo o tratamento de nossa menina se isto era comum, pois minha sobrinha também havia passado por esse processo, ela respondeu-me que os casos cresceram em muito na última década. Nesse ínterim várias amiguinhas de escola de minha filha descobriram-se em puberdade precoce. Questionei, posteriormente, a médica se isto estaria relacionado à contaminação de hormônios femininos na água e ela disse-me que não há estudos conclusivos sobre isso. Também há estudos nesse sentido em ictiofauna levados a cabo por biólogos da UFPR, que conclui por uma substancial alteração endocrinológica de peixes (inclusive com alteração de características sexuais!) mais afetados. Como geocientista, sei que essas são evidências suficientes para definir como hipótese o nexo causal entre a contaminação da água, solos e, portanto, alimentos e as alterações endocrinológicas que estamos vivenciando, mas de forma silenciosa. Sugiro que o pessoal do INCTAA da UNICAMP se reúna com o pessoal especialista da Geomedicina da própria UNICAMP para ampliar as pesquisas. Creio que estudos da UNICAMP lançam luz sobre essa questão e devem ser continuados e aprofundados.

salamuni@ufpr.br