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Projeto interdisciplinar fomenta avanços sustentáveis na cultura do café

Pesquisadores das áreas de climatologia, economia, comunicação e linguística entrevistam cafeicultores na Femagri, em Guaxupé (MG)

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Qual a percepção dos cafeicultores brasileiros em relação ao risco climático? De que maneira essa percepção influencia as técnicas e condições de produção e comercialização do café, uma das bebidas mais consumidas no mundo, que tem o Brasil como maior produtor e exportador?

Para ajudar a responder essas e outras questões relacionadas aos desafios e oportunidades do setor cafeeiro no contexto das mudanças do clima, o projeto Coffee Change reúne uma equipe de pesquisadores da Unicamp das áreas de climatologia, agronomia, comunicação, linguística e economia.

“Após décadas de experiência no estudo desse tema, a conclusão cientificamente mais importante a que cheguei foi que estudos com café e mudanças climáticas precisam ter uma abordagem interdisciplinar", diz a engenheira agrônoma Priscila Coltri, coordenadora do Coffee Change, que propõe uma análise integrada dos riscos, desafios e oportunidades da cafeicultura frente às mudanças climáticas, com apoio financeiro do CNPq.  

“Há 20 ou 30 anos, os estudos acabavam sendo direcionados a apenas uma área. Por exemplo: como o plantio do café se comportará com dois graus a mais? Essa pergunta científica direcionava os estudos. Hoje, com o avançar da ciência e do conhecimento, é muito complicado estudar o café e o clima sem entender, por exemplo, a percepção dos agricultores em relação às mudanças climáticas, ou mesmo como as possíveis estratégias de adaptação e mitigação propostas pela ciência podem ser viáveis ou não, dentro da realidade de cada agricultor”, diz a pesquisadora.

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Grupo de pesquisadores da Unicamp na Femagri durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa

O Coffee Change — trocadilho com a expressão Climate Change — surgiu, portanto, como um primeiro passo para que as análises do tema sejam beneficiadas por essa abordagem interdisciplinar. Além do Cepagri, o projeto envolve o Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri/Cocen) e o Instituto de Economia (IE) e conta com o apoio de estudantes do Instituto de Geociências (IG).

A integração de várias disciplinas com abordagens que se complementam contribui não apenas para uma maior riqueza científica na compreensão do tema, mas também para o fomento aos avanços práticos, tendo em vista a necessidade urgente de adaptação e mitigação, explica Priscila. 

“Por exemplo, não adianta a ciência dizer que Sistemas Agroflorestais para o Café sejam a melhor prática de mitigação e adaptação, se o produtor não ‘acredita’ em mudanças climáticas ou se o agricultor não sabe como manejar árvores no meio do cafezal. Ou, ainda, se essa prática é financeiramente inviável. Todos esses olhares devem ser conjuntos, para cada realidade. Não existe uma fórmula única”, complementa a coordenadora do Coffee Change.

Da consciência à excelência em sustentabilidade

O Coffee Change realizou sua primeira atividade de campo na Feira de Máquinas, Implementos e Insumos Agrícolas (Femagri), entre os dias 8 e 10 de fevereiro, em Guaxupé, Minas Gerais. Considerada um dos eventos mais importantes da cafeicultura brasileira, a Femagri voltou a ser realizada presencialmente este ano, após duas edições virtuais durante a pandemia.

Segundo organizadores, o reencontro presencial reuniu mais de 120 expositores e cerca de 34 mil cafeicultores. A feira é realizada pela Cooperativa Regional de Cafeicultores de Guaxupé (Cooxupé), maior cooperativa do setor no Brasil, com mais de 17 mil cooperados. Acompanhando as tendências globais de transformações nas formas de produção agrícola, a Cooxupé entrou em parceria com a Unicamp no Coffee Change.

Na Femagri, o grupo de pesquisadores aplicou mais de 100 questionários e realizou entrevistas sobre a percepção dos cafeicultores em relação ao risco climático, à influência dos fatores ambientais nos preços do café e outras questões ambientais e socioeconômicas.

"Observamos que os produtores já enxergam a questão climática como um fator com forte influência em sua atividade, inclusive em relação à maior incidência de eventos extremos, que podem prejudicar diretamente as lavouras. Há alguns anos, existia um ceticismo muito maior", diz Renata Gonçalves, pesquisadora do Cepagri que integrou a equipe da Unicamp na feira.

Renata observa que, quando o Cepagri começou a estudar as relações entre a produção de café e alterações climáticas — há cerca de 20 anos —, os cafeicultores eram mais resistentes a conversarem sobre o assunto. Em parte, essa dificuldade vinha da cultura familiar dos pequenos produtores, que tende a ser avessa a mudanças. Mas a realidade climática vem se impondo, e diversas adaptações na maneira de produzir já se verificam nos últimos anos. 

“A cafeicultura está caminhando para ser mais sustentável, com técnicas de manejo diferentes, adubação orgânica sem nitrogênio e uso de energia limpa. Toda a poda da cultura, que vira matéria orgânica, é deixada no campo. Esses são alguns exemplos de pequenas mudanças que vêm sendo feitas e ajudam a melhorar a cultura em relação à emissão de carbono e deixar a produção mais sustentável”, diz Renata.

A Cooxupé, por exemplo, vem desenvolvendo diversas iniciativas para promover a sustentabilidade do setor cafeeiro
A Cooxupé, por exemplo, vem desenvolvendo diversas iniciativas para promover a sustentabilidade do setor cafeeiro

A Cooxupé, por exemplo, vem desenvolvendo diversas iniciativas para promover a sustentabilidade da atividade. Uma das mais recentes foi a adoção do Protocolo Gerações. Para conseguir a certificação, o produtor deve cumprir requisitos e, de acordo com estes, subir quatro níveis: consciente da sustentabilidade; envolvido na sustentabilidade; praticando a sustentabilidade; e excelência em sustentabilidade.

Segundo Alexandre Monteiro, gerente de ESG (Environmental, Social and Governance) da cooperativa, a adesão dos produtores ao programa é dificultada pelo perfil punitivista da maioria das certificações ambientais, o que gera certa resistência prévia. Ele esclarece, porém, que a proposta do Protocolo Gerações não tem esse caráter, sendo mais educativa.

“Nossa preocupação não é apenas falar para o produtor que existe mudança climática, porque ele vai perguntar: ‘mas e daí? O que eu faço?’ Então, o objetivo do nosso protocolo é quebrar essa premissa de punição e proporcionar uma estrutura de apoio para o cafeicultor ter mais produtividade e qualidade, visando mais lucros, melhorias na propriedade e nas condições de trabalho”, diz Alexandre.

Cultura agrícola e cultura simbólica

Para obter dados mais consistentes, outros questionários serão aplicados em feiras de café e em visitas aos cafeicultores. O próximo evento a ser visitado será a Feira do Cerrado, nos dias 14 e 15 de março, em Monte Carmelo. A ideia é ter uma visão panorâmica do setor cafeeiro, englobando pequenos, médios e grandes produtores, e observar se há correspondência entre as percepções dos riscos climáticos e de preço com os dados de clima e de preço observados na região da pesquisa. Em paralelo, pesquisadores já vêm realizando análise climatológica passada e futura, para entender o comportamento e projeções do clima nas regiões de plantio.

Em outro momento, a equipe realizará grupos focais com abordagem voltada à análise do discurso e ao papel dos meios de comunicação — frente do Nudecri/Cocen, que abriga o Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) e o Laboratório de Estudo Avançados em Jornalismo (Labjor). Em tempos de proliferação de negacionismo científico e disparo de notícias enganosas por redes sociais, entender como os agricultores se informam e trocam conhecimentos sobre o risco climático é uma das peças importantes desse mosaico científico.

“Nossa participação visa à compreensão das relações entre, de um lado, a percepção sobre as mudanças e os riscos climáticos e, de outro, as alterações, adaptações ou inalterações nos modos de produção do café, nos modos de relação entre cafeicultores e entre esses produtores e aqueles que compram a produção, procurando entender, especificamente, se os meios de comunicação interferem nessas relações”, diz a linguista Claudia Pfeiffer, do Labeurb. 

A abordagem do Nudecri se aprofunda em aspectos simbólicos e de linguagem, nos significados da prática agrícola para os produtores, nas relações entre as diversas acepções de cultura. "Queremos compreender como as cafeicultoras e os cafeicultores significam a prática agrícola e, mais especificamente, como significam essa prática na relação com as mudanças climáticas. Partimos do pressuposto de que fatores sociais e históricos da prática agrícola fazem parte da maneira como as agricultoras e os agricultores produzem sentido para sua vida cotidiana ligada ao trabalho com a terra".

Os grupos focais serão formados de modo que contemplem a diversidade de gênero, idade, tempo de cultivo da terra, tamanho da produção e escolaridade dos produtores, além de considerar se são proprietários ou arrendatários da terra em que trabalham. “Do ponto de vista discursivo, não há uma relação direta, imediata e unívoca entre gênero, idade, escolaridade etc. e o modo de dizer e, portanto, de produzir sentido. Porém, é interessante poder compreender se, nesse caso específico, essas especificidades estariam sustentando os distintos modos de compreender as mudanças climáticas pelos agricultores”, diz Cláudia.

Laís Cristina do Carmo Leite cursa o 3º ano do ensino médio no Instituto Federal de Muzambinho: preocupação com as mudanças climáticas
Laís Cristina do Carmo Leite cursa o 3º ano do ensino médio no Instituto Federal de Muzambinho: preocupação com as mudanças climáticas

Nenhum café é igual

Uma das visitantes da Femagri 2023 foi Laís Cristina do Carmo Leite, que tem 17 anos, cursa o 3º ano do ensino médio e o técnico em Agropecuária, no Instituto Federal de Muzambinho. Ela mora em Cabo Verde com a família, que está na 4ª geração dedicada à produção de café arábica especial.

Os pés da propriedade têm aproximadamente 50 anos. “São bem antigos”, diz ela. A estudante afirma se preocupar com as mudanças climáticas e diz que já percebe o impacto na produção do café da região, que tem tido verões mais quentes e invernos mais frios.

Há 10 anos, a família se voltou à produção de cafés especiais e, agora, não depende tanto do mercado, porque consegue estabelecer o valor do seu produto. Há um ano e meio, junto com outras mulheres produtoras de café, a família criou a marca Carmella Cafés Especiais.

Logo, conseguiram boa pontuação na escala SCA (Special Coffee Association), empresa americana que desenvolve protocolo para cafés especiais, avaliando o produto segundo suas características mais marcantes. Por exemplo: notas muito diferenciadas ou exóticas, sabor de morango, caramelo, chocolate — ou até mesmo de enxofre, quando é muito ruim.

Laís explica que, para entrar na categoria de café especial, é preciso conseguir mais de 80 pontos na escala SCA. Já de início, o Carmella conseguiu 83. Em 2022, a pontuação subiu para 85. Neste ano, com melhorias nas tecnologias, pretendem alcançar a maior pontuação: 90.

“Trabalhamos em família, cada um numa área: minha mãe é empresária, eu sou técnica em Agropecuária, meu irmão é agrônomo e meu pai é cafeicultor. Trabalhamos com muito insumo biológico, sustentável, e preservamos mananciais. Ficamos de olho para não ter um excesso de insumos, não prejudicar o solo, não contaminar o produto. Então, temos esse selo de sustentabilidade”, afirma Laís.

Sobre a Carmella, a jovem diz que é uma marca coletiva da região vulcânica de Poços de Caldas, com propriedades que fazem parte do solo vulcânico, que está em constante estudo. Cabo Verde é o limite no estado de Minas Gerais, mas São Sebastião da Grama, em São Paulo, também faz parte de Poços de Caldas. Somente quem está dentro desses limites e produz cafés acima de 80 pontos possui o selo de exclusividade da região. Esse café é comercializado para cafeterias e, agora, até para exportação.

“Acreditamos que o excesso de enxofre do solo vulcânico altera diretamente o sabor, dá notas mais exóticas, como de frutas amarelas, carambola. Já tivemos até sabor de pera no café”.

Perguntada sobre o interesse em entrar nesse mercado, a jovem diz: “O café especial é um mundo à parte. Quando você entra, é difícil sair. Saber que um café tem gosto de morango é interessante, né? E quando nos aprofundamos, o café vira química. O que está no solo, o que vem da folha, o efeito climático, tudo isso altera o sabor do que você está bebendo. Nenhum café é igual”.

Laís finaliza dizendo que o diferencial de um café produzido por mulheres ajuda a abrir portas, porque há pesquisas que dizem que as mulheres podem ver mais tons de vermelho do que os homens. “Na produção, isso é muito diferente, porque você consegue detectar, na hora de selecionar o café ali no terreiro, os grãos que não são tão cor de cereja”.

Participe da pesquisa

Os interessados em participar da pesquisa que atuam na produção de café, podem acessar a página do projeto e colaborar com a pesquisa. Ao se inscrever, o voluntário participará dos grupos focais do Coffee Change.

Faça sua inscrição.

Matéria publicada originalmente no site da Cocen (Coordenadoria dos Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa)

Imagem de capa JU-online
O Coffee Change — trocadilho com a expressão Climate Change — surgiu, portanto, como um primeiro passo para que as análises do tema sejam beneficiadas por essa abordagem interdisciplinar

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