Imagem fundo branco com escrita a esquerda "Vozes e silenciamentos em Mariana. Crime ou desastre ambiental?", no lado direito mapa com a extensão do desastre.

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Perdem-se memórias, lembranças e vidas

Casos de suicídio e de transtornos mentais, depois da tragédia, não receberam a devida atenção

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A tragédia de Mariana deixou, em números oficiais, 19 mortos. Pelo menos é assim que até hoje se noticia ou mesmo que são divulgados os dados referentes ao acontecimento histórico. Marcas, contudo, foram deixadas tanto no meio ambiente, quando nas pessoas. Afinal, como todo momento trágico, as feridas são abertas e expostas, mas nem sempre são exibidas, e as cicatrizes permanecem.

Quem morava nas comunidades mais atingidas, especialmente os três subdistritos de Mariana (MG) – Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra Longa –, viu a própria história sendo devastada em questão de minutos. A onda levou a identidade de cada morador, bem como arrastou objetos, memórias e lembranças até então eternizadas nas paredes. A lama também levou vidas e continuou matando pelos seis meses que se seguiram.

Ao menos três pessoas cometeram suicídio, sendo dois trabalhadores da Samarco, que presenciaram o desastre, e uma moradora que trabalhava como bordadeira no distrito. Os dados divulgados pela Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais no dia 5 de abril de 2016 – data em que a tragédia completava seis meses – revelam ainda que outras oito pessoas tentaram se matar, dentre eles sete eram moradores e um funcionário da empresa.

Os dados da Secretaria Estadual de Saúde ainda apontam a existência de dois outros funcionários da Samarco que estariam em sofrimento mental grave. A situação pode ter relação com o estresse pós-traumático, uma doença que se dá como resposta a eventos ameaçadores e catastróficos.

O psiquiatra Sérgio de Lucca, professor assistente na Área de Saúde do Trabalhador da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, explica que o quadro costuma aparecer de dois a três meses após o acontecimento: “O estresse pós-traumático é um fenômeno que acontece depois de um determinado tempo. O impacto imediato é o estresse agudo”.

Nessas condições, o paciente apresenta uma memória persistente do fato e ao mesmo tempo evita o local e coisas que remetam ao acontecimento. Outros sintomas são a insônia, o pânico, a taquicardia e a sudorese. “O tratamento para isso é a partir de medicamentos e por meio da psicoterapia, afinal isso não é uma depressão, ocorre uma dissociação do aparelho psíquico”, explica o psiquiatra.

Sérgio de Lucca explica que não se pode afirmar, com precisão, o que motivou as mortes e as tentativas de suicídio: “É importante deixar claro que o estresse pós-traumático não leva ao suicídio. Nesses casos é importante falar com a família, mas nem sempre eles aceitam tratar facilmente desse assunto. As mortes e tentativas precisam ser analisadas pontualmente”.

Os dados sobre a saúde mental dos envolvidos revelam um cenário mais devastador do que o inicial, não pelo número em si, mas pela capacidade da tragédia de influir no contexto psicológico daqueles que foram prejudicados ou mesmo daqueles que presenciaram o rompimento da barragem.

O Brasil é o oitavo país do mundo com mais suicídios, conforme relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em setembro de 2015. Os dados apontam que o problema é global, uma vez que a cada 40 segundos uma pessoa se suicida em algum lugar do planeta. No entanto, a taxa de suicídios não é tão alta se comparada com outros países como o Japão, por exemplo. Aqui no Brasil são seis mortes a cada cem mil habitantes.

Na época da divulgação do Relatório, a diretora-geral da agência da ONU, Margaret Chan, disse que é preciso começar a agir para “lidar com um grande problema de saúde pública que tem sido visto como um tabu há muito tempo”. A declaração vai ao encontro da posição da OMS que recomenda aos governos que informem o público de forma responsável sobre essa situação.

Historicamente o suicídio realmente assume o papel de tabu na sociedade ocidental, conforme o pesquisador: “O suicídio é um evento que muita gente não consegue explicar. Sempre foi um tabu”. Com base na tradição judaico-cristã, a prática tem sido condenada. Na Idade Média, por exemplo, a Igreja Católica não permitia que os corpos de suicidas fossem enterrados em cemitérios, condenando-os a serem consumidos pelo tempo. Emile Durkheim, em seu trabalho sobre o tema, reconhece a influência da religião no controle de mortes provocadas pelo próprio sujeito.

Durkheim encara o suicídio a partir de uma visão sociológica, atribuindo como principal causa à falta de organização e de ordem na sociedade. Conforme essa visão, a interação social também é outro ponto fundamental para impedir ações contra a própria vida.

Esse ponto de vista abrange três formas de suicídio: o egoísta, que acontece quando a relação do sujeito com a sociedade se afrouxa; o altruísta, que se dá quando o ego se confunde com o exterior; e o anômico, que aparece em situações de crise e desordem.

No caso da tragédia de Mariana, os suicídios podem estar relacionados ao conceito anômico, já que a desestruturação do modelo social da população e dos trabalhadores levou a um choque pessoal, emocional e, assim, provocou a morte.

Esse contexto bastante importante não foi, contudo, um assunto de destaque na grande mídia do Brasil. Talvez porque a temática relacionada ao suicídio não é algo tão bem visto pelos jornalistas, que evitam noticiar esses fatos para não incentivar a prática. A orientação não parte do Código de Ética dos Jornalistas, que sequer menciona esse tipo de situação, a não ser pelo décimo terceiro artigo que diz: “o jornalista deve evitar a divulgação dos fatos: (...) de caráter mórbido e contrários aos valores humanos”.

Nos manuais de redação de determinados veículos e jornais, a orientação quanto ao suicídio costuma ser mais clara e explicitada. Há pontos em comum em praticamente todos: o suicídio só é divulgado quando se relaciona a personalidades ou caso a morte tenha algum tipo de repercussão no meio social, sem que se entre em detalhes.

O encaminhamento dado pelos veículos e pelo consenso da conduta dos jornalistas pode, em alguns casos, esbarrar na qualidade da informação, ainda mais quando esse tipo de orientação se transforma em um tabu ou mesmo em um dogma da profissão. No caso de uma tragédia, que se prolongou por meses e deixou marcas nos envolvidos, o tratamento midiático poderia ser outro.

A rede CBN foi um dos poucos veículos que apresentou os casos dos suicídios em destaque, tanto dentro da programação, quanto no Repórter CBN, um dos principais produtos da empresa. A informação, contudo, chamava a atenção para as tentativas de suicídio e só depois tratava das mortes ocorridas. O trecho da notícia é o que segue: “No dia em que a tragédia de Mariana completa seis meses, levantamento da Secretaria Estadual de Saúde aponta oito tentativas de suicídio e três mortes por esse motivo desde o rompimento da barragem de fundão no ano passado (...)”.

No jornal O Tempo (MG), a notícia divulgada sobre o caso levou o seguinte título: “Estado vai apurar aumento de casos de suicídio após tragédia”. Já que na linha fina se especificava: “Além de ocorrências de depressão, três mortes e oito tentativas foram registradas entre moradores”. No Estado de Minas (MG), a notícia recebeu como frase de destaque: “Tragédia de Mariana causou graves problemas emocionais às vítimas, diz especialista”. Entretanto na reportagem os dados só são apresentados no segundo parágrafo, ou seja, fora das informações destacadas no lead. O conteúdo se baseia na fala de uma diretora da Secretaria de Saúde do Estado, como se as informações fossem apenas um relato da servidora e não um levantamento do órgão, o que influi diretamente na compreensão da relevância dos dados.

Nos demais veículos de expressão na mídia brasileira houve silêncio referente a isso. Os gritos de socorro de tantos afetados que sofrem pelo desastre não foram propagados. Seja pelo medo de falar em suicídio ou pelo simples fato de não inflar o número de mortos pelo rompimento da barragem, as notícias trataram a memória da tragédia sem levar em conta as marcas que ainda estão na alma dos sobreviventes e trabalhadores. O que mais preocupa agora é que outros tantos poderão padecer na mesma situação e tudo isso pode passar despercebido pela opinião pública.

 



REFERÊNCIA

DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 


 

Gustavo Prado Gimenez - Jornalista graduado pela PUC-Campinas. Integrou o grupo de extensão em Análise do Discurso (PUC-SP, 2015) e foi aluno especial do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural no Labjor/IEL/Unicamp. É repórter da Record TV, em Campinas, e possui experiência como apresentador e editor. É professor de redação voluntário da rede pública de ensino do Estado de S. Paulo. 

 

 

Imagem de capa JU-online
Ruínas em Bento Rodrigues, distrito de Mariana-MG, dois anos após a tragédia do rompimento da Barragem de Fundão | Foto: José Cruz - Agência Brasil

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